domingo, 12 de julho de 2015

DESCRIÇÃO DE UMA OBRA

            A obra é de arte, premissa básica, mas não comecemos por lógica, pois havia um ponto, uma reta, Kandinsky talvez ensinasse cabalmente... O suporte, quadrado quase perfeito, com um detalhe: mal cabe no cavalete, mas este aprumasse no lugar de colocar os pincéis, podemos diluir as tintas com querosene, mas terebintina é mais clássico. Há um tom que se formou de uma antiga pintura, que fosse etrusca, algo assaz antigo, mas sim, talvez o suporte fosse antigo igualmente. Tracemos os desenhos, quais arabescos, reforçando para não perder o nexo da forma, a que tentemos dizer algo, como um suposto literato tenha para dizer.
            A obra está pronta, quase, mas parece inacabada, uma obra em aberto, os parênteses de suas funções na percepção, seja de onde esta vier, um peça de arte de tinta, tanto que dá para ver os relevos... Uma mancha azul recobre um nicho de aparente cinza que lembra o cimento, mais eis que se ergue um poste laranja, tecendo lindos contrastes, posto azuis e laranjas com várias nuances cromáticas, o que revela maestria do pintor. Miríades de pequenas pinceladas, feitas de borboletas crescem de cima para baixo, como em um pouso coletivo da Natureza fazem da transição entre as cores um ponteio poético e de lilases em fuga. Há apenas uma pincelada em vermelho encimando uma torre verde de marfim, entre verdes e cinzas coloridos que não se passa nada a que tivesse qualquer significado, pois é de um abstrato a pintura, mesmo sabendo-se que em um espaço vazio de outras quimeras há pontes que unem superfícies de cores várias, sempre dentro da complexidade de uma harmonia de vários timbres.
            Eis que surge um rosto, algo côncavo, traçado em três segmentos de linha, e outros, mais espaçados e curvos, com o pincel de um siena natural, pespontado com o siena queimado, e valorizado com turquesas nos olhos de quem vê, pois pode ser que não haja qualquer azul desse quilate, mas a palheta manda que simplesmente exista dentro do compasso dessa pequena música de cores... Assim é do que um interpreta, não queiram nunca que a crítica saiba o significado da arte, pois o maestro que desfruta pode nunca ter visto uma tela no xingú. Uma pintura para indígenas, mas eis que o índio olha dentro da tribo e vê, em um modo de alcance sem igual, que em seus passeios pela floresta tem visitado cores que existem... E, quando veio à cidade, viu muito daquele cinza, daquele cimento, e viu braços e mais braços dando fé de outras obras, e viu braços obreiros, e viu também, em sua passagem no sair da reserva outros serrando as seivas, roubando troncos, e nada viu mais, pois viu que não demarcaram ainda quando seria o tempo, e viu a televisão, e viu e sentiu o gosto da cachaça, e foi boia fria, e viu o calor do sertão, viu o sofrimento e sofreu, e mesclou-se na excludente vida. Eram anos de chumbo o que viu, percebeu as fronteiras, e nada mais do que havia em suas próprias que não existiam sequer, e viu o branco, e viu a morte, mas nada viu... A obra está largada na terra, meio enterrada, meio nua, a sentir na veia que passou por ali outro mestre da pintura que ninguém conheceu, pois que apenas vivenciou o túmulo da cultura em um país latino americano, e os rios se formaram de dentro da pintura, a Amazônia pediu ajuda e não a deram, e tudo o que se fez no país perdeu o sentido, e os homens não perceberam mais nada, pois ficaram articulando paraísos prometidos de dentro de celulares, ou mesmo fins do mundo de dentro de livros de capa preta. E não houve mais a arte, foi definhando pouco a pouco até que uma queda de um grande jacarandá destroçou o que restava da pintura, e as raízes abriram um grande buraco na seiva da terra, e esta pediu socorro, e não deram, e continuaram, e continuam...

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