Seria muito cedo afirmar que um
velho barco estaria no mar àquela hora. Paulo madrugara, mas não ligara seus motores
completamente, e que existissem para navegar... O rádio apontava canções de uma
noite continuada, e seus olhos estavam meio baços, tomara um remédio forte pela
manhã, pois seu psiquiatra assim achara que devia ser e, no entanto, mesmo com
a forte medicação, a época era de uma ciência igualmente consolidada no aspecto
da medicina.
Pegou de seus chinelos e Pulpo, seu
cão, o acompanhava em seu sono invejável, que vira muito na véspera daquela
sexta-feira. Paulo possuía a compreensão de seu mundo nas coisas que via ao
redor, um imediatismo, na prática não em se projetar muito, mas as questões de
trabalho mostravam que, em seu ofício de artista diletante – mesmo assim – as pinceladas
seriam uma mostra de que o término de sua pintura era algo de mistério, como,
aliás, era de mistério muito do que se passava naquele bairro antigo como as
pedras arredondadas que brotavam do mar a cada movimento das luzes. A cada
caminhada matutina via os reflexos de uma simplicidade na arquitetura, nos
nichos, nas portas, nas gentes que perscrutavam os companheiros de jornada, e
no caminhar que não forçasse demasiado suas pernas que já cansavam por causa de
suas sessenta primaveras. E fosse mais, não mais seria tanto do que já
exaustivamente cumpria sua missão por aqui, neste globinho, tão afeito a mares
e terras, a anacronismos por vezes salutares, por outras, algumas
contemporaneidades meramente circunstanciais... Sabia de gerações que nasciam
frente à possibilidade do conhecimento e da pesquisa, de igualmente sua própria
geração que vivera partes turvas da história, mas cria na navegabilidade do
mundo como um todo e, no que fosse possível de ajudar, permitiria o aprumo em
mais um leme: apenas isso.
Mas do que se trataria um prumo, ao
barco sem destino, apenas a singrar, e esta era a viagem que Paulo
consubstanciava em seu modo de ser, que fossem, talvez, vários os destinos.
Para ele, mais claro era dizer uma palavra, um monossílabo, a saber que,
proferida, existiria a fala como tal, para ele, na Verdade. De seu modo
particular. O ego lhe partia o bom senso para outras águas e, a saber-se um grão
de areia no oceano, voltava a aprumar o leme, pois a egolatria participava dos
tempos deste nosso século em que outras luzes pintavam a comunicação entre um
servidor remoto e seus milhões de serviçais, onde quem não acreditasse que
fosse vital esse portar-se na dependência tecnológica talvez respirasse do ar
saudável da capacidade de contestação, ao menos... No entanto, espiritualmente vivia absorto, por estar na companhia
de Krsna, e esse era incontestavelmente um ego que lhe dava alento, já que essa
certeza aos olhos de si mesmo refletia-se no seu coração, dava insumos
existenciais e a aproximação com as coisas da Natureza, como os seres, o mar,
as pedras, o concreto, as vigas, as colunas, tudo que fazia parte do mundo, seus
homens e suas mulheres. O Senhor Cristo também era a sua grande referência, um
exemplo a que todos deveriam seguir...
No entanto, seu barco precisava de
consertos, pois de um casco muito antigo sabemos de seus desenhos, de suas
nervuras, de sua estrutura, e um bom capitão mantém sua embarcação nos padrões
permitidos pelas capitanias. O barco seria como um corpo, que o temos muito
mais complexo, que somos nervuras, mais do que casco somos, com um coração onde
reside o Criador, igualmente na sua plataforma de testemunha de nossos atos,
por mais intimistas que sejam, nem que o pensamento nos fuja em intenções
parcas, pois nossa atitude perante o próximo há que estreitar os laços, e não
estabelecer dúvidas que gerem contendas. O pressuposto de que estamos
relacionados intimamente com o nosso entorno reza que preservemos as praças,
que plantemos mais árvores e que a cenografia de tapumes e edifícios, somente, não
trazem no oceano material uma qualidade de vida que sempre será e deve ser
conquistada em qualquer território de nosso mundo, e isso gera menos contenda,
mais espaço e mais humanidades, pois a qualidade de vida deve ser resguardada a
todos, em direitos e atitudes, principalmente entre as gentes que sofrem com
duras carestias.
Dora aparecera um dia na casa de
Paulo, trazendo flores tão lindas: um ramalhete de rosas vermelhas, que o
deixou vexado pela generosidade sem limites de sua companheira. Depois de sair
a comprar cigarros, a encontrou no sofá, com um jornal antigo, que ele guardava
estes papéis para forrar o chão de seu atelier. A arte era seu grande barco, um
navio imensurável, onde encontrava a paz necessária para criar seu mundo,
navegando pela expressão própria da coragem em ver a mesma arte sem limites jamais imposta por quaisquer academias, ou conceitos em farsas ditas vanguardas, mas
que estas não passavam da mesmice de “ismos” e rótulos, fossem eles objetos ou instalações. Dora sorriu quando seu amante se aproximou e o beijou
carinhosamente. Dizia-se um pouco cansada, mas renovava o espaço ao vê-lo...
- Meu caro amigo... Faz tempo que não
nos falamos, as rosas eu as trouxe, mas vi um roseiral que você não
acreditaria, lá no norte.
- Para lá que mostra meu ponteiro da
bússola, e eu não sei se devemos aprumar este nosso barco... – Paulo estava,
como sempre, fantasiando uma história repleta das metáforas enriquecidas
toscamente por uma poética na verdade – ela – sem rumo. Na verdade, o diálogo
entristecia-se um pouco no cerne lógico, pois desse rumo padrão é que Dora se
acostumara em toda a sua vida, e a lógica de seu companheiro não era por ela
compreendida, pois este quebrava o seu pensamento em frases por vezes muito
longas, sem as pausas importantes. Mas que não se notasse, pois a expressão de
um ser basta a que um olhar mostre algo, a um gesto de mão, a um resmungo
qualquer, à liberdade de termos verdade ao falar, que seja, seu significado
primeiro, sem metalinguagens de ocasião. Como se o privilégio de poucos seja
controlar a voz de outrem. Ele olhou para ela com um gesto afável, sabia que
ela por vezes era bem condescendente, e sorriu como quem descobre algo. Dora
estava com um pouco de sono, e fez de um bocejo a própria pronúncia:
- Tenho sono um pouco, Paulo. Não
ligue não, não nos cabe nos ligarmos em nada que não seja o que dizemos
simplesmente...
- Eu sei, me perdoe...
- Nada a ver, é que às vezes parece
difícil. Êta mundo este, nosso, que tanto amamos. É só isso, apenas isso,
querido; quero que saibas; no entanto você me faz crer que enquanto não esteja
bom para alguns, todos não estão bem. O mundo não é assim. Se é de se aprumar,
que aprumemos as nossas vidas, pois os que vêm se agregam.
- Pois é... Se fantasio, é um
recorte de minha experiência, pois que ritualizo um pouco, como um índio que se
perdeu em solo de genes europeus, talvez... Ou talvez não, que eu tenha vivido
como um cidadão da idade média e contestado algo, ou inventado alguma estrela
inexistente aos olhares: gosto da ciência artesã, me entendes? Assim acerto meu
prumo, que o céu já está repleto de estrelas e nos vemos em cada uma delas.. Se
minha lógica é transversal é porque assim fica mais fácil para mim compreender
a base do meu pensamento, que é minha própria fé, nada além.
- Siga assim, companheiro, pois para
existirmos não se paga o frete, nem o pedágio... E se o veículo é longo, há
avisos na carroceria. Se é de barco, aprumemos, pois, que é bom, é
interessante, lindo.
Assim seguiram, de tudo o que
quisessem criar, pensar, expressar, viver... Era aberta a temporada dentro de lúcidos
espíritos, pois de luta não se pensava aos de bem, já que quando algo sobra
demais na panela, há que aliviar o tacho e repensar, e esfriar o arroz. É
grande a atitude que leva à paz e inequívoco o sentido dessa paz, pois o
conflito gera mais conflitos, e a preeminência desse códice traz abalos dos
quais os reflexos são sentidos em dimensões continentais, maiores do que o que
se supõe ser verdade ou farsa nesse estranho jogo de amarelinha onde o manco
sempre leva desvantagens, ou em um xadrez sem rei, de três peças, há muito
tempo inacabado!
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