sábado, 19 de setembro de 2015

A VIAGEM

            Encontrei Adélia em frente ao meu portão... Estava sorrindo à passagem de alguns rapazes que faziam troça com tudo, meio que no divertimento irônico de assumirem posturas até então conflitantes com o padrão – tão controlado à época. Estava sorrindo trêmula, na rua, e aqueles não sabiam se faziam parte de um grupo. Eram grupos que se alternavam, encontrando na sua própria covardia algo de se preocupar com demasia com os propósitos das vidas dos outros. Repito, estava trêmula e não sabia como fazer para seus olhos encontrarem-se com os meus, numa atitude de reserva. Na verdade, tudo se passava como em épocas distantes sem o referencial exato. As coisas se pareciam por algumas vezes, e em outras a diversidade era gigante. Para quem analisasse por uma via produtiva, a cicatriz social meio que se fechava em conchas. No entanto, Adélia me olhava seriamente, e essa reserva espiritual me pôs inquieto.
            - Olá, querida, procurei por você ontem... Não houve aquela recepção no hall do Classique. Havia dois violinos ensaiando a Primavera, mas acabei indo tomar um trago no Adelto. Pera aí que abro com a chave.
            - Mattos, você com a mania das garrafas! – Disse ela, espantada. – Encontrei mais duas cheias d’água na pracinha. Olhe que lhe põem veneno...
            - Melhor assim de te encontrar mais crítica. Já está com o semblante mais atualizado.
            - Pudera, estou aqui. Sempre me dás um clarão nesta serenidade de teu jardim. Gostaria que me remetesses a um lugar como este. Como cá estou, já estamos, pois tua companhia é para mim um sacramento.
            - Entre, Adélia, sinta-se em casa. Que sejamos ambas as casas...
            Passou por mim taciturna, e eu sabia que não seriam boas as novidades... Os dias eram duros, estava compartilhando seu espaço com dois estrangeiros... Um casal. Como que quase não se falavam, pois seu francês era risível, e era ela uma mulher mais resignada, mais fechada. De tanto, por vezes, que chegava a não compreender a dimensão de um carinho sincero, obsedada por tantas as parcerias ilusórias, pensava eu. No entanto, mantinha um vigor sem par nas mulheres que houvera conhecido: em raro.
            Entrando a semana, aquele poderia ser um domingo à altura, pois que a semana começava realmente no domingo, em virtude de ser esse o dia para maiores reflexões, quando descansou o Criador, conforme um dos livros sagrados. Que haja resignação inteligente ao respeitarmos eles todos, assim acreditava eu. Os dias se sucediam sempre em um modo em que o tempo marcava justamente a atitude de muitos, como se o relógio fosse mais apenas do que um instrumento de medição daquele. Na verdade, muitos – incluindo Adélia – criam encontrar nesse mesmo fator a previsibilidade, incluso daquilo que não conhecemos muito, justamente: a programação científica e cultural de toda uma sociedade equivocada, ao pensar que essas duas vertentes da vida comportem-se através de planilhas ou mecanismos similares... Acerca desse mesmo propósito desse subconsciente das coletividades, não se atinha muito em minha situação de um pensar que acompanhasse a negação dessa realidade, pois minha própria ingerência como homem de produção mantinha-me atento às vantagens da mesma tecnologia em que nos dispomos em críticas insalubres sem perceber que na verdade estávamos vivendo um mundo em mudanças cabais e complexas. Adélia estivera um bom tempo na Inglaterra, e pousava as mãos nas minhas, olhando com reminiscência no olhar como algo maravilhoso à época. Nunca me disse sobre, mas como adivinhava um affair dos que se encontram sem tempo ou lugar, não importando nada que não fora o amar-se.
            Pareciam os novos tempos aqueles de dar explicações, de muitos buscarem sua fluência existencial em atitudes que revelavam um ciclo em que as referências se perdiam ou eram esquecidas pela linearidade do timer... As rotinas de programação cruas em sua própria demanda abriam margens a se agendar frações de comportamento – seja de homens ou objetos – que se assemelhavam a futuros desalinhados com as questões de raiz dos direitos humanos, ou às origens e causas dessa patologia consentida, desse admirável huxleyiano mundo. A sorte, para os que gostam de ler é que existiram bons como este, como Orwell, como Kerouac, como Martí, Mao, Che, Engels, Hobbes, Hegel, Freud e tantos e tantos outros. O problema é o que se faz hoje, como subproduto da indústria cultural, de renegar nossos patrimônios enquanto seres pensantes e reduzirem a arte a mero escape, e não um meio de vida e subsistência. O artista tem que dar continuidade em sua expressão como algo que remeta ao simbolismo, mas continua sem função em uma sociedade tecnocrata, como se tem estado até então, onde só a Economia é a validade onde vivemos. Não há, no entanto, facilidade de análise do que vivemos, pois grande parte nega os governos mais populares, por si só, como se a saída sempre tenha que ser privilegiar os mais ricos e poderosos, visto não haver o óbvio tão marcante, que a tentativa da oposição ao Governo Popular é justamente trocar a transparência que mostra quem são e o que fazem os corruptos, por governos que já mostraram serem os autores e mantenedores desse modal a uma cidadania tolhida e fracassada em negarem a existência da justiça social defendida pelos governos com opções mais populares. É a questão da independência real de um país, que só se dá quando as amarras que o colocam em situação de dependência das matrizes se rompem, tornando-o autossuficiente, não apenas nos setores produtivos, mas igualmente quando possui seus recursos energéticos, o que confere uma posição importante na geopolítica.
            A fantasia e a realidade submergiam no imaginário de Adélia... Tudo o que eu lhe dizia sobre nossas circunstâncias, sobre a questão do aparente e do fato em si, sobre as fronteiras que colocamos em nosso conhecimento, nos sistemas computacionais, na força que possuía a ciência de nos conhecermos, da importância de conhecermos da mesma forma nosso corpo como a uma seara, e sermos conscientes dela, nos colocava por vezes em situações diametralmente opostas. Por isso nosso diálogo se propunha tanto ao entendimento, de minha parte. Meu falso ego queria se pronunciar e eu sabia que não poderia provar minhas assertivas, pois nessa mescla ficcional ela sempre levava a vantagem. Era um diálogo com o anti mito do herói de redondilhas com a fortaleza do mito da Imperatriz... O homem evanescia em sua fortaleza e perdia para a mulher, e não uma apenas, mas todas, pois a iniciativa passava a ser feminina, com esse novo ser surgido já na entrada do novo século, não importando tanto a política como a diplomacia, mas o jogo de poder sexual entre os novos pares formados, em que a mulher comia agora o mingau pelas beiradas... A nova revolução feminina se processava longe, e a inteligência masculina não sabia dizer o quanto, mas passava muito pela questão da igualdade de competência profissional e financeira.
            Entre outras coisas, a intelectualidade que se fazia passar entre muitos daqueles que mantinham uma vida mais contemplativa, ausente de jogos, à revelia que o dito amor com novas roupas se fizesse necessário ou não, mostrava apenas um desprendimento que podia gerar uma opinião por vezes mais consistente do que aquelas onde a graduação se fazia condição para que fosse apreciada com comiseração e respeito. Essas inquietações faziam parte da minha vida, e Adélia não se importava muito com isso, dentro de sua simplicidade atávica de mulher que preservava o entusiasmo quase sempre. Um dia, falou-me:
            - Escute, Mattos... Engana-se aquele que vê nas condições mais difíceis pretexto para pausar. Digo, pode fazê-lo em ação, mas se for resultado de câmbio, há de justapor por outra equação, pois de sete pregos é melhor prepararmos fincando um em cada canto, no intermédio de cada qual, terminar até fixar e depois retomar o restante, incluindo, já que três é um bom número para o ensaio de quatro quando a prática não é grande. Prega-se por baixo antes, e que a madeira não arrebente, por isso os tamanhos têm que ser na média dos meios e materiais. Como com a voz: há que se saber o que dizer, mas o improviso sincero é sempre do frescor que estrutura uma ação enquanto pensamento existente como pano de fundo ao que se torne atuante de primeira linha. Por isso esta minha ficção, pois viajo nas palavras e sem compromisso atuo, me entendes? Essa mescla que dizes da minha fantasia no que julgas realidade para mim é algo um, apenas... Por vezes, a semântica de uma sílaba está presente em uma conexão com outra, de um livro qualquer, mas que se apaga da memória como um fogo fátuo que nunca existiu e que existe na lendária imaginação das crianças. Se isso é navegar, partir para um mar não consentido, não sei, porque por de menos já se consente, e o que o é, por demais será maior. Basta, que é o que eu lhe falo hoje, e que não calemos, pois sempre é acréscimo, meu querido peão de tabuleiro amplo. Já tens algumas raízes cravadas na selva de teu jardim: tiram as árvores mas ficam os arbustivos, e que em outros fios e ramos venham outros pássaros, pois é de seu canto que imitamos seu timbre, e de nossa voz que nos pronunciamos, qual seja, lendo, qual seja, na escrita falada, companheiro!
            Disse isso um dia, Adélia. E me faltara o ar, pois na graça de Deus pretendia eu esse monólogo, que ela continuasse ad eternum...

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