sexta-feira, 29 de setembro de 2017

ESPERA DE DIAS SEM CONTAR

          Emília trouxera sua bagagem da viagem à Europa. Entre seus itens, variados objetos, pequenas esculturas, um pouco da outra boa bagagem do mundo velho, de muitas heranças, enfim, ela se tornava mais – aparentemente – a um tempo e a uma experiência maior: por quantas foram as histórias da civilização que encontrara… O que foi a civilização, e como esta estabelecia seus padrões mais atualizados, pois a eletrônica lá oferecia a passagem mais verdadeira, ou melhor, uma realidade em muitos e muitos lugares, sem, no entanto, sacrificar a tão necessária arte.
          Encontrou Emília seu apartamento como o deixara, em que os cuidados de Clarice foram fundamentais. Clarice havia saído para comprar pães e iogurte. Encontrou com Emília já dentro do apartamento, e seria redundante dizer que ela estaria deitada se espreguiçando em sua cama, em seu lar, saudosa de seu canto. Viera como sempre, sem maquiagem, de jeans um pouco desbotado e uma blusa de algodão com um pequeno colete de linho, azul-turquesa, combinando com seus olhos. Ambas tinham mais de cinquenta anos, de boa e cúmplice maturidade, naquele sentido em que grandes amigos por vezes em um mero olhar encontram nobres reflexos. Clarice a olhou descansando um pouco, eram oito e meia, guardou a bicicleta nos fundos, pendurou uma roupa lavada com poucas peças, e garimpou suas notas observando perscrutadora que o dinheiro fora suficiente, aquele que lhe deixara Emília antes quanto de ter saído há um pouco mais de mês. Não contara os dias, apenas esperara por muitas coisas, a rotina, o jornal do dia seguinte, uma carta qualquer, a melhor hora de ir ao banco, ou a paciência de ignorar quando se jactavam em ofensas em pensar que era solitária, e que, no entanto, pudera ser por opção. A vida depois de seu divórcio litigioso fazia lembrar algum filme, quiçá uma anedota, das partes de fora de sua existência, posto ainda ser muito atraente e infelizmente naquele bairro só encontrava um chauvinismo renitente. Vá lá, que a vida poderia ser mais equilibrada, mas considerava por vezes a opinião alheia. Os vizinhos como Eliseu, por exemplo, viviam se perguntando o que se passava em casa de Emília, por motivos maiores que não passavam da curiosidade típica dos vizinhos incultos saberem mais sobre a vida daqueles que são autênticos por natureza. Aquilo de ritmos, de acentuação em horas de fala, do destoante, idiossincrático, quem dera, um pensamento mais intenso sem tantos verbos… Um acobertar-se na realidade do cobertor, lã, vértices do conforto, quem sabe, se não houvesse um cidadão descoberto.
          Emília esperava. Alice esperava. Não temiam uma vida mais rebuscada, pois naqueles tempos os gadgets preenchiam os seus tempos de outros, de uns mais, a função quase obrigatória e os índices de curiosos caminhos alternativos. Mas porventura não seria a vitalidade de um display internacional que ajudasse? A eletrônica versava tanto no mundo… Seria indiscreto dizer de alguns ou muitos que não estivessem participando dessas inovações, pois as mudanças tecnológicas existiam nos estabelecimentos em geral, como em uma instituição de fornecimento de água, por exemplo, no mercado e igualmente nas TVs. Tudo seria tão próximo. Até a Europa, com suas fotos de 360 graus, seus filmes e museus. Mas Emília vira o impressionismo, vira o tachismo francês, suas pinceladas com volumes, a luz, a diferença de ver uma tela a dois metros, ou se deslocar para apreender a pintura e sua inerente realidade de ser, de objeto existente, e não o bitmap dos pixels que sem sombra de dúvidas não representa uma obra de arte como ela é. A literatura por sinal se revelava o bastião da nova imprensa, da nova galáxia de Gutenberg, da universalidade das letras e sua consonância primorosa nos avanços da arte, a mesma palavra literatura que não esmorece. Talvez não fosse muito afirmar que o meio abstrato da palavra rege até mesmo quaisquer sistemas digitais, quais não sejam os números que vêm como acréscimo fundamental, no que a música signifique a sua natureza essencial: o ritmo, o compasso, as notas! A união de ambos – número e palavra – segue-se à não espera, pois se contamos, no tempo podemos ler, e se lemos, nas páginas contamos por vezes, quando a tarefa é longa. Assim, sem esperar de dias, a que Emília não contara, pois agregara conhecimento, e este é tão importante que passamos pelo mundo a adquiri-lo sem muitos contratempos, já que a sede que muitos tem por ele é retroalimentadora. Nunca é demais conhecermos, e de um bom diálogo reside o fato e de sem contar-se a uma leitura das boas é vertente cabal que não termina, assim seja, sempre. Esse mar digital ensombra, deveras, e é nele que devemos estar atentos para não esquecer daquele que emerge de suas profundezas para ensinar ao homem o nome do Oceano. Emília o atravessara, em lócus, permanente viagem pelo insondável, pois um pequeno inseto por vezes não consegue atravessar um fragmento de terra. A Natureza não espera, nossas reverências a ela.

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