sábado, 16 de setembro de 2017

AS VITRINES DO CONTENTAMENTO

          Emília traçara rumos na cidade. Perscrutara as lojas, procurara informações em seu notebook, anotara pequenos rabiscos quase incertos, felicitara a si própria pelo contentamento da mesma cidade onde abrigara as novas, onde caminhava em suas descobertas. A cada rumor, por vezes alto de uma loja que tivesse anunciando algo a brados de seus sons, a cada passo meio que em silêncio ao verificar um preço que vinha no roldão de uma calça ou uma saia, cada vez que olhava para o alto e se altercava com um pombo em seu encalço, a vislumbrar arquiteturas, o que a motivava era algo de um deslumbramento quase vertical, mas muito de sua personalidade introspectiva para fora. Diziam alguns que uma sonata era rara, que um bom teatro não se encontrava com facilidade, mas ela pensava quase o oposto, a ver que a vida sem aparências parecia a ela como jornada alongada do conhecimento, de como processar esse conhecimento sendo um simples mortal, ser humano na verdade algo arrojado quando mais distante de sua superfície… Era justa a simplicidade de Emília, quando interpreta-se a vida simples com a mediação necessária do algo a mais contemplativo, ou das ações conscientes que nos pegam por vezes distraídos, no moto largo de estarmos quiçá apenas em um caminho sem compromissos quaisquer, que não sejam da própria vida e suas idiossincrasias.
          Por vezes Emília pensava encontrar um conhecido, mas essas vezes algo raras lhe mostravam que efetivamente poderiam inclusive saber o seu nome, mas jamais pensasse ser qualquer tipo de estrela, por mais diminuta e inalcançável fosse. Não seria jamais a hora da estrela, que por sinal gostava tanto do anonimato que qualquer mero cuco de parede já assustava a circunstância por ela alcançada. Parava no café – algum que houvesse – de quiosque, tomava um pouco, pagava e via as pequenas vitrines dos salgados, referia os nomes de uma banca de jornais próxima e particularmente lhe atraíam as manchetes de revistas sobre novelas televisivas que jamais vira, mas que em termos de rótulos fascinavam-na. No seu lado algo de erro por pensar alto sobre atitudes hostis, via sempre aqueles rostos rotos pela energia negativa, por um rancor, muitos de uma luta transparente como uma cortina de chumbo que pressentia jamais existir fora da ilusão, como sabia o fato, nos seus ocasos de mulher adulta. Para ela, chegar a meio século de existência já era o suficiente para assim sentir-se e, quando chegava nesses pontos, pensava em São Francisco, o santo de sua preferência, que tornava seus dias igualmente mais felizes, apenas por pensar na figura masculina generosa com os animais. Parecia a ela que o sinal de seu contentamento se espelhava nos outros. Ela, meio que de uma formação espiritual antiga de sua década de trinta, com a experiência do kardecismo, pensava por vezes nas blindagens espirituais, nas manifestações sutis e místicas, mas quando sabia de seus interesses pelas questões religiosas apenas guardava para si, pois muitas delas não lhe competiam nem lhe agradavam por inteiro.
          Emília talvez fosse multifocal… Talvez seu intelecto respirasse mais ousadia do que o fator vulgar da maior parte dos frutos de atitudes outras, quase inumanas, apesar de gentes, de ações pessoais, pois lhe ficava a impressão de que as novas empresas teriam fatores de ordem mecânica na inter relação pessoal em certas seleções de candidatos, justo, frígida como um cartesianismo atemporal, anacrônico, onde testava-se, na seleção de funcionários, até mesmo a tensão e as pressões que um trabalhador tem que estar preparado a enfrentar o famoso mercado de trabalho. Ela estivera sempre acostumada com profundos estudos e pesquisas sem a ordem de formalização ou administrativa cabal, pois improvisava a aquisição do conhecimento de fontes que sabiam confiáveis, e primava pela leitura quanto igualmente por exercitar o seu pensamento rico de ideias que porventura pudessem se contrapor a certas outras alturas de menor consistência. Sobremaneira, definitivamente, seus homens de outrora não acompanharam sua multifocalidade, e na verdade ela ressentia-se pouco por ter permanecido mais solitária, visto que a sua independência não comparecia obrigatoriamente com a presença masculina. Sua propensão existencial era observar o aqui, o agora, sem no entanto prever ou planejar o dia como princípio, em que se sobrasse o tempo importante para o planejamento de períodos mais longos, como saber que parar de beber, por exemplo – no seu viés de vantagens – traz frutos palatáveis igualmente a longo prazo.
          Talvez Emília fosse exemplo de virtuosidade existencial, mas apenas – reiterando – consentia em ser apenas mais uma aluna da vida e, nesses quesitos da vida, querer transformar o mundo talvez tenha sido o grande enigma malfadado ou equivocado da humanidade, pois as vidas exemplares, em qualquer função, fazem de uma sociedade o espelhamento sereno da correção e de ações que nos equiparam na justeza existencial de todos os seres vivos do mundo.  

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