domingo, 1 de outubro de 2017

EMÍLIA ARRANJA UM EMPREGO

          Foi em uma tarde de início de primavera, mais precisamente nos últimos dias de setembro, naquele Sul, de um inverno não mais paradoxal em seu calor, por saber bastante sobre as aberrativas variantes climáticas. Pois sim que essa jaça nos faz regredir até mesmo em linhas que deveriam ser mais da esperança em termos cuidados necessários. Passam as gentes a refletir. É hora… No entanto, naquele dia especial de 25 de setembro Emília conseguira um emprego de balconista em uma padaria. Estivera lendo muito desde dezembro, suas inquietações a respeito davam margem a apenas usufruir, que tanto admirava, o talento dos escritores, a Era Vitoriana, histórias de reis e rainhas, lendas, livros de comércio… A propósito, revelava-se muito boa comerciante, e seu emprego na padaria fora resultado dessa fama conquistada sem muito esforço, mas com muita intuição. Trabalharia servindo os fregueses, e nisso contava com certa inibição, assim, de uma exposição, mas pagariam mil e quatrocentos, o que daria para pagar o aluguel de trezentos e setenta, comprar o gás de sessenta e cinco, comer, enfim, com os dividendos de sua poupança que somava mais de cinquenta mil viveria mais garantida, principalmente naqueles tempos difíceis para quem tinha que ser funcionário. Começaria na outra semana, assinaria um contrato de três meses de experiência e, enquanto isso, navegaria por seus sonhos de um contato mais humano. Sempre conhecera na padaria Vittore o caixa Emiliano, que pegava o que seria seu mesmo turno: das três às nove. Vittore, o proprietário, era um italiano atarracado, sanguíneo, com cara de poucos amigos, mas muito gentil no trato com os clientes e fornecedores. De certa forma era um bom homem, fervoroso em sua fé, decente em seus arcabouços morais, fiel à esposa, bom gestor, atualizado, contemporâneo e ciente das mudanças em seu mundo. Que todos seriam do mesmo mundo, mas não, sabia ele que as diferentes manias… Bem, que não fossem manias, mas que haviam diferenças… Na Carta Magna, que todos fossem iguais, mas era também diferente a própria Carta que muitos lhe diziam, que diziam que lançavam fora, rota, sem sentido! Vittore não se preocupava com novos quadros na sua padaria, de aparência ou tal de tais critérios, mas não suportava a incompetência e primava por bons reflexos humanos, assim, na atitude e nos gestos, reflexos motores igualmente. Naquilo de se pretender certa etiqueta, o modo de bem servir os pratos de salgados e doces, o café e porventura, não que fosse muita, a cerveja. Mas o café era seu forte, servia-o com os melhores grãos da cidade, indiscutivelmente, naquele bairro ainda cravejado pela poeira das lajotas recém calçadas. O mutirão dera certo em muitas ruas, e o barro cedera lugar ao areião.
          Emília estava contente, esse era seu sentimento maior, de mudança, de um painel em sua consciência mais aflorado, onde parecia que suas rédeas domavam dois puros sangues que a puxavam, mas não de maneira inconforme, porém refreando-se com a serenidade típica de uma mulher mais madura. Não que não fossem os cavalos assaltados por uma performance do tempo, mas levava a vida com dedicação, isso sim, dedicada como quando tinha aulas de piano com Cláudia. Nessas horas brotava-se-lhe a paixão pela vida, a música como outro lado do sentimento, sentindo fremir o pulsar de um reflexo que sentia, a cada corda tocada, uma própria vértebra adormecida do conhecimento e da arte. De sua maturidade neste pequeno trecho, digamos, que a remontasse aos 38 anos – estudados – sobre a latitude da existência. Seu ser individual era compreendido dentro de si mesmo, e seria alheio a que outros coletivizassem o não coletivo, o não controle, posto seus pensamentos mais secretos não dispunha que se fossem escoar pelas bravatas que outros sequer pudessem confirmar ainda que, no pretenso justo coletivo, fossem de firmar pé. Alheia a qualquer aventura externa, sua intimidade como mulher independente mostraria sempre ao padrão coletivizante chauvinista seus olhos de mulher e seu corpo de rainha. Nada se sabia da existência, escravizavam artistas enquanto no poder: no empoderamento tão cobiçado. Mas não: existia Emília, seu novo emprego, seus modos de atuar, sua sagrada arte da poesia que tanto lera e lia, e via, nos seus arremedos de eterna iniciante no amor, o verdadeiro sufrágio que demanda o tempo da atualidade e suas correntes atitudes solidárias consigo e com o próximo.

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