domingo, 30 de dezembro de 2018

SAUDAÇÃO A DEIVID


           Deivid não sabia que seu nome era Bíblico, pudera, seu pai o colocara como um nome qualquer, um misto de anglicismo e cunho religioso, conforme pesquisa feita por ele: Deivid. Na verdade, vira tantas coisas nestes mundinhos de Deus, tanta foi sua relação com a vida que acabou tendo um surto, já com trinta e poucos anos… Sucedeu que o sofrimento veio a galope! A crueza da doença mental se manifestou, foi tratado e controlado, passando a viver com suas limitações, naquelas que se esperava internamente, com a inevitável reação adversa da química, pois seu problema era grave, e a estabilização de seu quadro igualmente, pois ele ainda não obtinha referências muito válidas de alguma ajuda outra que não fosse a terapia com o médico, e a companhia de seu irmão, Anailton, que lhe dava uma companhia e uma paciência de Jó. Se davam bem, e Deivid tinha a consciência de não poder sobrecarregar Anailton, pois este trabalhava como vigilante e ainda fazia faxinas de dia para aumentar seus ganhos. Deivid recebia um salário mínimo do INSS, por incapacidade e fazia oficinas de arte e música em uma instituição da Igreja Católica. Não havia ainda se tornado um devoto, mas aos poucos foi se ambientando com os ritos. Ambos eram sozinhos, pois haviam perdido os pais um pouco precocemente, e tinham um ao outro e uma margem restrita de amigos. Anailton tinha uma paixão por brinquedos de barcos de madeira, com uma oficina pequena no puxado onde viviam, perto do mar.
           À medida que o tempo passava, ambos tinham suas pequenas manias, e as de Deivid eram o desenho e a música. Sabia desenhar garranchos, figuras bem simplificadas, mas dava a vida para elas com pequenas historietas, pequenos diálogos, em uma simples visão do mundo, que para ele significavam bastante. Na música tinha conhecimento de alguns acordes que tocava no violão, arriscando solos de ouvido, no revelar a si mesmo um talento que os outros não reconheciam pois, tais como os desenhos, já vinham nele um ser especial, um ser inferior, doente, enfermo mental. Um estigma, realmente inevitável, e teria que carregar perpetuamente essa mácula que gerava uma visão ao seu próximo, estereotipada, na verdade, mas apensa a confiar que a sociedade respeitasse essa condição. Como tantos outros que vivem nas cidades: os cegos, os surdos, os paraplégicos, os autistas e etc. Afora as questões culturais, os povos, as etnias, ou seja, o próprio estigma travestido em muitos outros, quando a condição social busca não compreender as diferenças, seja de que ordem forem. Na verdade, a condição de isolamento de Deivid fazia-o procurar seus iguais, e muitos portadores de doenças psíquicas passavam pelas oficinas da Igreja. Sentia-se bem saber de que os mistérios da mente, no presente século, já existiam por melhores atenções, e o grupo social era a vertente de estar-se mais consciente dos problemas e desafios de conduta que sentiam por si e pelos outros.
          A situação em uma casa onde reside alguém com males mentais porventura não era tão distinta de outras, porquanto no caso de Deivid e seu irmão, a serenidade pontuava mais do que algum tipo de rebeldia, tão clássica onde há adolescentes. A juventude de ambos já havia cedido lugar a uma espécie de maturidade onde não havia propriamente uma hierarquia, mas o consentimento tácito de que Anailton dava as rédeas da situação em decisões mais importantes, na organização do lar e na administração da vida de ambos, mas reiterando o espaço co participativo de Deivid na acepção de que um dia viesse a morar só. O funcionamento da casa, os compromissos, as possibilidades de adaptação a algum nível de stress eram quase um treinamento para o objetivo de fazer com que Deivid se tornasse independente, mesmo com seu problema e limitações. Deivid não podia beber, e Anailton o punha a prova quando trazia um amigo ou uma amiga, tomando cerveja ou vinho a fim de que Deivid se mantivesse auto disciplinado, auto controlado, ou seja, permitindo que na presença do álcool Deivid tivesse o controle sobre si mesmo. Eram ensinamentos de convivência, a bem dizer, que a simplificação disto encerra algum véu da literatura, mas que de bom alvitre se supõe que a enfermidade, assim como o ser diferente na sociedade seja compreendida, desde que não interfira em comportamentos que sejam nocivos ao status quo. Dessa certeza algo confusa tomava tento pouco a pouco, com os ensinamentos que a vida da religião lhe dava o amparo existencial. De ser cristão, de se estar lendo o Evangelho, onde a sabedoria de Lucas, Marcos e Mateus lhe desse amparo. Esse Espírito Santo que via na história das artes, na escultura de Miguel Ângelo, nas pinturas de Da Vinci e Rafael, ou no surgimento histórico de Fra Angélico, com a transição da arte ao Renascimento.
           Que Deivid buscasse, isso era certo, era um buscador, um eterno curioso, um grande leitor. Admirava os alemães por seus gigantescos filósofos e por sua gigantesca música, igualmente a França, ou seja, amava os padrões da arte clássica, erudita, e ao mesmo tempo transubstanciava em si mesmo a linguagem mais acessível. Por ventura era esse o mundo de Deivid e de seu irmão Anailton, e por ventura seriam muitos os destinos de milhões de pessoas em seu país e no mundo. Apenas tinham em mente uma coisa: o bem querer sempre seria progressivo, e a maldade, estanque porquanto anti social.

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