Diego
era homem íntegro, ao menos na visão de seu comportar, sustendo uma
discrição, um trabalho simples de biólogo e uma amável gata. Não
pensava muito em ser um tipo que saísse para as farras, quase não
possuía amigos e era diletante também nas artes. No andar,
sobretudo, era profundamente consciente, quase sempre olhava bem por
seus caminhos, e amava caminhar. Tinha admiração pela vida que
sempre o encantava: nos seres quaisquer, plantas, insetos, pássaros,
e outros que só ele sabia da existência, conforme seu universo
acadêmico… Vinha a calhar sempre uma quase companhia, de ter a
aproximação tamanha com a natureza que se acreditava um pouco um
indígena. Pois isso lhe importava muitas coisas, sabia dos povos que
vivem em contato direto com a selva, daqueles que sobrevivem
manufaturando seus próprios utensílios, das culturas de seu imenso
país. Mas isso não vinha muito aos seus casos de homem cumpridor
das suas tarefas diárias, posto ser solteiro e não possuir filhos.
Sim, pois afinal vivia em um tempo que tamanhas e inacreditáveis
discrepâncias grassavam na sociedade que tentava acomodar seus
arroubos da tecnologia, onde a palavra técnica estava quase sempre
presente. Cumpria também, talvez em uma assertiva quase precisa, as
suas questões daquela ordem, navegando vez ou outra por meios da
rede mundial de computadores, que na verdade sabia ser algo pontual,
uma pequena realidade dentro da grandeza inenarrável do universo
manifesto aos seres animados e inanimados. Pois que a natureza da
técnica obviamente servia mais ao interesse do ser humano do que a
própria facilitação de uma justeza maior, de querer mudar para
melhorar a própria condição humana de existência, pensava. De
tanto que afirmava na arte a dimensão da sua vida, que cria liberta
das amarras, possuía em seu cerne um amor que lhe florescia na
natureza mesma da compreensão. Naquela imensa tarde marcara um
encontro com Mariana no salão quase gótico de uma grande cafeteria
local. Almoçara pouco, daquele feijão onde se coloca a costeleta
defumada com o louro óbvio, uma salada de radiche com pedacinhos de
bacon e um frango grelhado. Com parcimônia comera pensando: talvez
Mariana esteja com fome, ou mesmo uma vontade de algum doce, mas a
sabia bem apressada, aliás, cheia de ocupações para resolver. No
telefone ela fora breve, e no seu último encontro com ela, na semana
passada, riram muito do mundo que se apresenta algo torto, ou algo
certo quando afirmado, de não se desentortar! Mas houve pausas
resignadas, talvez um pouco do se elucidar quanto da compreensão de
ambas as realidades, mas que de saudade haveria pouco do se falar,
posto termos a certeza de que vivíamos na mesma cidade, e sabíamos
sobre as questões que norteavam nossas personalidades. Éramos
sinceros um com o outro, apenas isso… Certamente a independência
que cada qual conferia em sua casa, vivendo sozinho, era do real
algo tangível.
Diego
ligou para Mariana para confirmar o encontro no centro de Persépolis
na rua Antenor Coimbra, lotada quase sempre pelos viandantes. No
encontro vestiu uma jaqueta da Pierre Cardin, não muito quente, no
tom quase azulado e escuro, quanto de uma tarde cinza daqueles dias
de agosto. Sabia tanto de sua humildade em se vestir, que por vezes
sequer via a roupa, apenas se tapava: realmente não era tão zeloso
neste quesito, mas especialmente naquele dia vestiu-se de modo
apanhado, com rigor. Pegou o ônibus em seu bairro, admirava-se com o
número razoável de mulheres atraentes que encontrava naquele, e por
razão distinta procurava agora se concentrar mais no caráter
feminino que não era raro de encontrar, mas que porventura fosse
mais pleno ser de fidelidade, não aparente, mas concreta. Essa idade
em que muitos homens podem trocar o hedonismo egoísta pela vivência
mais cotidiana, de um tempo cotidiano em que os anos não sejam a
fração simbólica e carnal onde o novo convive com o descarte, mas
no próprio enriquecimento de uma vida experiente de ambos os lados,
que se seja da mesma cunha temperada no ouro, no enriquecimento
secular em que cada um representa a sua época e sabe de todo um
passado vívido ainda na memória e na cultura. Esse tanto que
falaria bastante à técnica é, no entanto, algumas páginas
essenciais à compreensão mesma do ser em nossas existências. Nesse
instante em que Diego elucubrava, os postes da ponte que unia o
continente à Ilha davam de se notar perante o tempo que passava, a
cada fração, porquanto o mar em silêncio jazia como um tapete de
vida maravilhoso na sua própria contradição em ser eterno. Nesse
cenário um tanto absurdo, mas vívido no poente de cada compasso
rítmico, Diego se via na sua solitária permanência de apatia
quando olhava o mesmo mar, os barcos iguais em seus dias mas em
posições distintas, e a descida do coletivo rumo ao terminal que
suava as flores da permanência e do contraponto. Estranha
harmonização e escalas, estranha a música sempre diferente, os
bancos de carros distintos, os gestos dos usuários urbanos, os
asfaltos remanufaturados… As sílabas que distavam da pronúncia, o
avizinhar de longos períodos, ou mesmo a recriação da literatura
única dessa estranha espécie bípede que somos. A parecença com um
tipo de vida a dois, ou apenas um encontro permeado por pensamentos e
palavras seria apenas uma das verdades em que quando se vê alguma
coisa não se possui a certeza do que seja a mesma coisa. Se é
igual, ou sempre mutável, se é do desejo, ou mesmo de uma projeção,
uma expectativa, um resultado. Sim, o bom e velho resultado, qual não
fosse, quiçá uma visão técnica, pois então quase um paradoxo…
Simples como um tonel de carvalho, mas por vezes sem um bom vinho que
o justifique.
Esse
arranjo em que pensava, ou tentava Diego organizar na sua mente,
vinha de reflexões profundas calcadas no fato de que para ele
encontrar com alguém da densidade espiritual de Mariana, teria
sempre o conteúdo emblemático de sentir que a simplificação torna
a vivência cotidiana mais fácil do que encontrar profundezas em
oceanos sem calado suficiente para sólidas e grandes embarcações.
A singrar-se conjuntamente com alguém a complexidade ou
simplificação tecnológica de um mundo em transformações talvez
muitas vezes ilusórias, estar com os pés fincados no real era
tarefa titânica de tentar sublimar a rede virtual, a nova e premente
realidade virtual. Como se fosse ou não, estar ou não incluído,
passante a mais de um destino em uma aparente mudança de paradigmas.
Como a se pensar em destruir um fato que não existe e colocar outro
que não é, estando ciente de que um ou outro estão em algum lugar,
talvez na história eterna, naquilo que seja sempre, em um homem e
uma mulher, uma estrutura quiçá redundante para diferenciar o sexo
que respira por poros sintéticos… Bem, em tese, Diego – pego em
devaneios mesclados com o percurso do lotação – já chegara à
estação central, acordando com a barafunda de gente, misturando-se,
misturando, sentindo as pernas de suas adiantadas décadas de
experiência fremirem, com os passos firmes de franciscano, a
saber-se mais feliz.
O
bamboleio das gentes era de olhar, de movimento, de sinal quase
verde, na espera uma vanguarda, os perfumes e carteiras vendidos, as
sombrinhas no comércio, espetinhos de carne dura, quase em um samba
sincopado, ou na ginga necessária e inconsciente do cotidiano. Assim
o tempo voava em cada gesto dos apressados ou dos perdidos, nos
estudantes ou nos trabalhadores, nas ferrugens que estão em
movimento, e chegando nas pausas, as pernas parando: o descanso, o
refrigério, ou um anúncio a se parar necessariamente. Subiu a
General Dutra e dobrou a Antenor. O café Ta Matete era na esquina
com a Dourados. Mariana estava conversando com alguém. Quando se
aproximou mais, Diego viu que era Olívia, a cunhada dela. Viera do
exterior fazia já mais de uma semana com o marido, e as duas riam um
pouco, bem desinibidas. O café estava medianamente frequentado e a
Dourados era uma rua de pedestres, com mobiliário urbano onde alguns
vendiam moeda, outros jogavam cartas ou xadrez, e vários sentavam-se
naquelas cadeiras de concreto com mesas para conversar. Quando o
viram entrar, Mariana e Olívia acenaram com um gesto casual,
levantando levemente os punhos. Diego se sentou à mesa, sem notar,
no entanto, que Olívia havia talvez chorado, pois a sua maquiagem
dos olhos estava um pouco borrada… Sua aliança não estava
na
mão. Cumprimentou-as e Olívia logo disse que estava de saída, que
tinha um compromisso inadiável, no que ele não estranhou, pois as
mulheres à mesa se olharam de modo confidente. Apesar de parecer um
processo de divórcio, Diego fingiu não notar. Despediu-se dela com
um aceno e chamou o garçom. Em seguida, serviu-se de um café
expresso e disse à Mariana:
-
Como vai? Tudo bom…? – Falou ele, tacitamente, como alguém que
pitorescamente aparece em um tabuleiro, um peão a conversar com uma
rainha.
-
Tudo o mais que se quer, um café, uma coxinha, um pouco de pimenta…
Está servido?
- Gostaria, óh meu Deus, que não precisássemos de tanto cerimonial…!
- Gostaria, óh meu Deus, que não precisássemos de tanto cerimonial…!
-
Estás aloucado hoje, mas foi o percurso que te fez pensar…?
-
Mariana… É o que estou pensando? Olívia e Netto…
-
Arranjou uma amante na Itália. Ficou de voltar ou ela virá morar
com ele na capital. Tem 22 anos e é de Roma.
-
Caramba, o cara é mais velho do que eu…
-
Acontece, é assim mesmo. Vejamos nós. Se passa algo parecido?
-
De que? Sequer começamos, ou se estamos juntos pode ser diferente.
Veja, quando supomos estar ausentes temos mais no que pensar, podemos
nos completar. Olhe que pensei em nós dois e muito haveremos de
saber de nós mesmos se nos permitirmos…
-
Também estou comprometida, Diego. O guapo está com 24 e é para
toda a obra… Se te ofendo, me desculpe. Não quero avançar mais
sobre teus pensamentos. Só não quero pensar e me recuso a não ser
feliz do meu modo.
Dito
isso, Diego olhou para ela e pensava que não se sentia ofendido.
Mariana pegou do celular e mostrou uma foto, mas a luz do lustre só
deixou ver os sapatos do cowboy. Se era de programa nunca
soube, saberia melhor talvez se não houvesse contestado na última
noite o celular para uma mulher de 55 anos. Ela estava em forma, mas
ele não se dava à questão. Pouco importava. Tomou seu café e saiu
sem dizer nada. No calçadão quis ser solidário ao receber um papel
de garotas de programa, pensou que no papel era mais “artesanal”.
Virando a esquina jogou no lixo sem ver sequer a tanga da foto da
bunda. Mergulhou no torpor de poucos, ou quiçá de todos. O dinheiro
valia, valia tudo de bom que há no mercado. Passou no mercado e
fumou um cigarro melhor do que todos os que havia fumado, logo em
seguida do Café Ta Matete, um ponto dentro da azáfama incrustada,
como qualquer outro…
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