sábado, 8 de dezembro de 2018

AS APARÊNCIAS DO DESENGANO


         Diego era homem íntegro, ao menos na visão de seu comportar, sustendo uma discrição, um trabalho simples de biólogo e uma amável gata. Não pensava muito em ser um tipo que saísse para as farras, quase não possuía amigos e era diletante também nas artes. No andar, sobretudo, era profundamente consciente, quase sempre olhava bem por seus caminhos, e amava caminhar. Tinha admiração pela vida que sempre o encantava: nos seres quaisquer, plantas, insetos, pássaros, e outros que só ele sabia da existência, conforme seu universo acadêmico… Vinha a calhar sempre uma quase companhia, de ter a aproximação tamanha com a natureza que se acreditava um pouco um indígena. Pois isso lhe importava muitas coisas, sabia dos povos que vivem em contato direto com a selva, daqueles que sobrevivem manufaturando seus próprios utensílios, das culturas de seu imenso país. Mas isso não vinha muito aos seus casos de homem cumpridor das suas tarefas diárias, posto ser solteiro e não possuir filhos. Sim, pois afinal vivia em um tempo que tamanhas e inacreditáveis discrepâncias grassavam na sociedade que tentava acomodar seus arroubos da tecnologia, onde a palavra técnica estava quase sempre presente. Cumpria também, talvez em uma assertiva quase precisa, as suas questões daquela ordem, navegando vez ou outra por meios da rede mundial de computadores, que na verdade sabia ser algo pontual, uma pequena realidade dentro da grandeza inenarrável do universo manifesto aos seres animados e inanimados. Pois que a natureza da técnica obviamente servia mais ao interesse do ser humano do que a própria facilitação de uma justeza maior, de querer mudar para melhorar a própria condição humana de existência, pensava. De tanto que afirmava na arte a dimensão da sua vida, que cria liberta das amarras, possuía em seu cerne um amor que lhe florescia na natureza mesma da compreensão. Naquela imensa tarde marcara um encontro com Mariana no salão quase gótico de uma grande cafeteria local. Almoçara pouco, daquele feijão onde se coloca a costeleta defumada com o louro óbvio, uma salada de radiche com pedacinhos de bacon e um frango grelhado. Com parcimônia comera pensando: talvez Mariana esteja com fome, ou mesmo uma vontade de algum doce, mas a sabia bem apressada, aliás, cheia de ocupações para resolver. No telefone ela fora breve, e no seu último encontro com ela, na semana passada, riram muito do mundo que se apresenta algo torto, ou algo certo quando afirmado, de não se desentortar! Mas houve pausas resignadas, talvez um pouco do se elucidar quanto da compreensão de ambas as realidades, mas que de saudade haveria pouco do se falar, posto termos a certeza de que vivíamos na mesma cidade, e sabíamos sobre as questões que norteavam nossas personalidades. Éramos sinceros um com o outro, apenas isso… Certamente a independência que cada qual conferia em sua casa, vivendo sozinho, era do real algo tangível. 
         Diego ligou para Mariana para confirmar o encontro no centro de Persépolis na rua Antenor Coimbra, lotada quase sempre pelos viandantes. No encontro vestiu uma jaqueta da Pierre Cardin, não muito quente, no tom quase azulado e escuro, quanto de uma tarde cinza daqueles dias de agosto. Sabia tanto de sua humildade em se vestir, que por vezes sequer via a roupa, apenas se tapava: realmente não era tão zeloso neste quesito, mas especialmente naquele dia vestiu-se de modo apanhado, com rigor. Pegou o ônibus em seu bairro, admirava-se com o número razoável de mulheres atraentes que encontrava naquele, e por razão distinta procurava agora se concentrar mais no caráter feminino que não era raro de encontrar, mas que porventura fosse mais pleno ser de fidelidade, não aparente, mas concreta. Essa idade em que muitos homens podem trocar o hedonismo egoísta pela vivência mais cotidiana, de um tempo cotidiano em que os anos não sejam a fração simbólica e carnal onde o novo convive com o descarte, mas no próprio enriquecimento de uma vida experiente de ambos os lados, que se seja da mesma cunha temperada no ouro, no enriquecimento secular em que cada um representa a sua época e sabe de todo um passado vívido ainda na memória e na cultura. Esse tanto que falaria bastante à técnica é, no entanto, algumas páginas essenciais à compreensão mesma do ser em nossas existências. Nesse instante em que Diego elucubrava, os postes da ponte que unia o continente à Ilha davam de se notar perante o tempo que passava, a cada fração, porquanto o mar em silêncio jazia como um tapete de vida maravilhoso na sua própria contradição em ser eterno. Nesse cenário um tanto absurdo, mas vívido no poente de cada compasso rítmico, Diego se via na sua solitária permanência de apatia quando olhava o mesmo mar, os barcos iguais em seus dias mas em posições distintas, e a descida do coletivo rumo ao terminal que suava as flores da permanência e do contraponto. Estranha harmonização e escalas, estranha a música sempre diferente, os bancos de carros distintos, os gestos dos usuários urbanos, os asfaltos remanufaturados… As sílabas que distavam da pronúncia, o avizinhar de longos períodos, ou mesmo a recriação da literatura única dessa estranha espécie bípede que somos. A parecença com um tipo de vida a dois, ou apenas um encontro permeado por pensamentos e palavras seria apenas uma das verdades em que quando se vê alguma coisa não se possui a certeza do que seja a mesma coisa. Se é igual, ou sempre mutável, se é do desejo, ou mesmo de uma projeção, uma expectativa, um resultado. Sim, o bom e velho resultado, qual não fosse, quiçá uma visão técnica, pois então quase um paradoxo… Simples como um tonel de carvalho, mas por vezes sem um bom vinho que o justifique.
          Esse arranjo em que pensava, ou tentava Diego organizar na sua mente, vinha de reflexões profundas calcadas no fato de que para ele encontrar com alguém da densidade espiritual de Mariana, teria sempre o conteúdo emblemático de sentir que a simplificação torna a vivência cotidiana mais fácil do que encontrar profundezas em oceanos sem calado suficiente para sólidas e grandes embarcações. A singrar-se conjuntamente com alguém a complexidade ou simplificação tecnológica de um mundo em transformações talvez muitas vezes ilusórias, estar com os pés fincados no real era tarefa titânica de tentar sublimar a rede virtual, a nova e premente realidade virtual. Como se fosse ou não, estar ou não incluído, passante a mais de um destino em uma aparente mudança de paradigmas. Como a se pensar em destruir um fato que não existe e colocar outro que não é, estando ciente de que um ou outro estão em algum lugar, talvez na história eterna, naquilo que seja sempre, em um homem e uma mulher, uma estrutura quiçá redundante para diferenciar o sexo que respira por poros sintéticos… Bem, em tese, Diego – pego em devaneios mesclados com o percurso do lotação – já chegara à estação central, acordando com a barafunda de gente, misturando-se, misturando, sentindo as pernas de suas adiantadas décadas de experiência fremirem, com os passos firmes de franciscano, a saber-se mais feliz.
          O bamboleio das gentes era de olhar, de movimento, de sinal quase verde, na espera uma vanguarda, os perfumes e carteiras vendidos, as sombrinhas no comércio, espetinhos de carne dura, quase em um samba sincopado, ou na ginga necessária e inconsciente do cotidiano. Assim o tempo voava em cada gesto dos apressados ou dos perdidos, nos estudantes ou nos trabalhadores, nas ferrugens que estão em movimento, e chegando nas pausas, as pernas parando: o descanso, o refrigério, ou um anúncio a se parar necessariamente. Subiu a General Dutra e dobrou a Antenor. O café Ta Matete era na esquina com a Dourados. Mariana estava conversando com alguém. Quando se aproximou mais, Diego viu que era Olívia, a cunhada dela. Viera do exterior fazia já mais de uma semana com o marido, e as duas riam um pouco, bem desinibidas. O café estava medianamente frequentado e a Dourados era uma rua de pedestres, com mobiliário urbano onde alguns vendiam moeda, outros jogavam cartas ou xadrez, e vários sentavam-se naquelas cadeiras de concreto com mesas para conversar. Quando o viram entrar, Mariana e Olívia acenaram com um gesto casual, levantando levemente os punhos. Diego se sentou à mesa, sem notar, no entanto, que Olívia havia talvez chorado, pois a sua maquiagem dos olhos estava um pouco borrada… Sua aliança não estava
na mão. Cumprimentou-as e Olívia logo disse que estava de saída, que tinha um compromisso inadiável, no que ele não estranhou, pois as mulheres à mesa se olharam de modo confidente. Apesar de parecer um processo de divórcio, Diego fingiu não notar. Despediu-se dela com um aceno e chamou o garçom. Em seguida, serviu-se de um café expresso e disse à Mariana:
          - Como vai? Tudo bom…? – Falou ele, tacitamente, como alguém que pitorescamente aparece em um tabuleiro, um peão a conversar com uma rainha.
          - Tudo o mais que se quer, um café, uma coxinha, um pouco de pimenta… Está servido?
          - Gostaria, óh meu Deus, que não precisássemos de tanto cerimonial…!
          - Estás aloucado hoje, mas foi o percurso que te fez pensar…?
          - Mariana… É o que estou pensando? Olívia e Netto…
          - Arranjou uma amante na Itália. Ficou de voltar ou ela virá morar com ele na capital. Tem 22 anos e é de Roma.
          - Caramba, o cara é mais velho do que eu…
          - Acontece, é assim mesmo. Vejamos nós. Se passa algo parecido?
          - De que? Sequer começamos, ou se estamos juntos pode ser diferente. Veja, quando supomos estar ausentes temos mais no que pensar, podemos nos completar. Olhe que pensei em nós dois e muito haveremos de saber de nós mesmos se nos permitirmos…
          - Também estou comprometida, Diego. O guapo está com 24 e é para toda a obra… Se te ofendo, me desculpe. Não quero avançar mais sobre teus pensamentos. Só não quero pensar e me recuso a não ser feliz do meu modo.
          Dito isso, Diego olhou para ela e pensava que não se sentia ofendido. Mariana pegou do celular e mostrou uma foto, mas a luz do lustre só deixou ver os sapatos do cowboy. Se era de programa nunca soube, saberia melhor talvez se não houvesse contestado na última noite o celular para uma mulher de 55 anos. Ela estava em forma, mas ele não se dava à questão. Pouco importava. Tomou seu café e saiu sem dizer nada. No calçadão quis ser solidário ao receber um papel de garotas de programa, pensou que no papel era mais “artesanal”. Virando a esquina jogou no lixo sem ver sequer a tanga da foto da bunda. Mergulhou no torpor de poucos, ou quiçá de todos. O dinheiro valia, valia tudo de bom que há no mercado. Passou no mercado e fumou um cigarro melhor do que todos os que havia fumado, logo em seguida do Café Ta Matete, um ponto dentro da azáfama incrustada, como qualquer outro…  

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