Emília
trouxera sua bagagem da viagem à Europa. Entre seus itens, variados
objetos, pequenas esculturas, um pouco da outra boa bagagem do mundo
velho, de muitas heranças, enfim, ela se tornava mais –
aparentemente – a um tempo e a uma experiência maior: por quantas
foram as histórias da civilização que encontrara… O que foi a
civilização, e como esta estabelecia seus padrões mais
atualizados, pois a eletrônica lá oferecia a passagem mais
verdadeira, ou melhor, uma realidade em muitos e muitos lugares, sem,
no entanto, sacrificar a tão necessária arte.
Encontrou
Emília seu apartamento como o deixara, em que os cuidados de Clarice
foram fundamentais. Clarice havia saído para comprar pães e
iogurte. Encontrou com Emília já dentro do apartamento, e seria
redundante dizer que ela estaria deitada se espreguiçando em sua
cama, em seu lar, saudosa de seu canto. Viera como sempre, sem
maquiagem, de jeans um pouco desbotado e uma blusa de algodão com um
pequeno colete de linho, azul-turquesa, combinando com seus olhos.
Ambas tinham mais de cinquenta anos, de boa e cúmplice maturidade,
naquele sentido em que grandes amigos por vezes em um mero olhar
encontram nobres reflexos. Clarice a olhou descansando um pouco, eram
oito e meia, guardou a bicicleta nos fundos, pendurou uma roupa
lavada com poucas peças, e garimpou suas notas observando
perscrutadora que o dinheiro fora suficiente, aquele que lhe deixara
Emília antes quanto de ter saído há um pouco mais de mês. Não
contara os dias, apenas esperara por muitas coisas, a rotina, o
jornal do dia seguinte, uma carta qualquer, a melhor hora de ir ao
banco, ou a paciência de ignorar quando se jactavam em ofensas em
pensar que era solitária, e que, no entanto, pudera ser por opção.
A vida depois de seu divórcio litigioso fazia lembrar algum filme,
quiçá uma anedota, das partes de fora de sua existência, posto
ainda ser muito atraente e infelizmente naquele bairro só encontrava
um chauvinismo renitente. Vá lá, que a vida poderia ser mais
equilibrada, mas considerava por vezes a opinião alheia. Os vizinhos
como Eliseu, por exemplo, viviam se perguntando o que se passava em
casa de Emília, por motivos maiores que não passavam da curiosidade
típica dos vizinhos incultos saberem mais sobre a vida daqueles que
são autênticos por natureza. Aquilo de ritmos, de acentuação em
horas de fala, do destoante, idiossincrático, quem dera, um
pensamento mais intenso sem tantos verbos… Um acobertar-se na
realidade do cobertor, lã, vértices do conforto, quem sabe, se não
houvesse um cidadão descoberto.
Emília
esperava. Alice esperava. Não temiam uma vida mais rebuscada, pois
naqueles tempos os gadgets preenchiam os seus tempos de
outros, de uns mais, a função quase obrigatória e os índices de
curiosos caminhos alternativos. Mas porventura não seria a
vitalidade de um display internacional que ajudasse? A
eletrônica versava tanto no mundo… Seria indiscreto dizer de
alguns ou muitos que não estivessem participando dessas inovações,
pois as mudanças tecnológicas existiam nos estabelecimentos em
geral, como em uma instituição de fornecimento de água, por
exemplo, no mercado e igualmente nas TVs. Tudo seria tão próximo.
Até a Europa, com suas fotos de 360 graus, seus filmes e museus. Mas
Emília vira o impressionismo, vira o tachismo francês, suas
pinceladas com volumes, a luz, a diferença de ver uma tela a dois
metros, ou se deslocar para apreender a pintura e sua inerente
realidade de ser, de objeto existente, e não o bitmap dos
pixels que sem sombra de
dúvidas não representa uma obra de arte como ela é. A
literatura por sinal se revelava o bastião da nova imprensa, da nova
galáxia de Gutenberg, da universalidade das letras e sua consonância
primorosa nos avanços da arte, a mesma palavra literatura que
não esmorece. Talvez não fosse muito afirmar que o meio abstrato da
palavra rege até mesmo quaisquer sistemas digitais, quais não sejam
os números que vêm como acréscimo fundamental, no que a música
signifique a sua natureza essencial: o ritmo, o compasso, as notas! A
união de ambos – número e palavra – segue-se à não espera,
pois se contamos, no tempo podemos ler, e se lemos, nas páginas
contamos por vezes, quando a tarefa é longa. Assim, sem esperar de
dias, a que Emília não contara, pois agregara conhecimento, e este
é tão importante que passamos pelo mundo a adquiri-lo sem muitos
contratempos, já que a sede que muitos tem por ele é
retroalimentadora. Nunca é demais conhecermos, e de um bom diálogo
reside o fato e de sem contar-se a uma leitura das boas é vertente
cabal que não termina, assim seja, sempre. Esse mar digital
ensombra, deveras, e é nele que devemos estar atentos para não
esquecer daquele que emerge de suas profundezas para ensinar ao homem
o nome do Oceano. Emília o atravessara, em lócus, permanente viagem
pelo insondável, pois um pequeno inseto por vezes não consegue
atravessar um fragmento de terra. A Natureza não espera, nossas
reverências a ela.