Morandi tinha quase um carro nobre. Respirava a
uma lata de decência, um furgão de tração nas quatro, uma
vértebra que nosso personagem sempre desejara, assim, de se partir
para as ruas mais rápido, mais torque no peito, de dirigir, apenas…
No entanto, passavam-se já alguns dias e ele não coadunava bem com
os freios. Lembrara do caso de Camus e seu suspeitoso acidente, na
distante França, Argélia, não sabia muito da literatura
biográfica. Lhe diziam apenas isso, que fora suspeito o acidente,
mas isso não lhe dizia respeito, pois, acima de tudo, morria de
amores pelo seu motor. Como as rodas Scorpions, bem robustas e
vincadas.
Célia Dutra lhe esperava no café por aquela tarde,
e lhe falara para não faltar em atrasos maiores, mas ele aquiesceu e
por alguns instantes esqueceu do carro e pensou na mulher. Que
estranhas estranhezas se lembrar da mulher! Mas como, sua vida, seu
modus vivendi, sabia bem que o que se tornava acima dos livros que
lia era a concretude da ternura de uma mulher de verdade. Para ele,
ao menos, era o suficiente para ter uma vera esperança de olhar no
mano a mano um olhar feminino que se prestasse a conversar, afora a
vida que lhe era de praxe. Sem ressentires de expectativas, as
tentativas, meu deus, pensava, as “tentativas de minha vida!”
Sabia que não ofertaria nada, que o falar por vezes não existia,
morava em um ermo, e o café era a cinco quilômetros, sim, e havia
de ser um encontro: que auspiciosa ideia, que deus genial era o
amantíssimo Criador. O Espírito Santo, nosso senhor, o Cristo! Tava
valendo a fé da espera, se tava, o tapete rubro eram as pedras do
caminho, mas não tropeçara até então, porque o faria agora…
Bradava: garantia, irmãos!
Célia marcara na mesa quatro,
fervia o vilarejo e, por incrível que pareça, ele não atrasara,
britânico, chegou exatamente às nove. Na pressa apenas se esquecera
de se talhar mais composto e, quando a viu, na mesa externa, garantiu
o seu riso interior, daquele sorriso sincero, honesto e íntimo de um
homem, aquele orgulho de estar mais feliz, por uma razão concreta.
Cumprimentou-a sem muitas reservas, as mesas ladeadas estavam com
pouca frequência, dando de olhar o mar, os abetos e algumas flores
da estação em arbustivas da cercania. Foi um aceno com o olhar…
-
Olá, Célia, como estás?
- Senta aí, Morandi…
- É que
esqueço de que esse lugar tenha mudado tanto…
- Não vamos
ser muito formais agora, por favor, tenho os documentos aqui e já
lhe passo.
- Estás muito linda.
- Não te furtes, meu
amigo. - disse ela, incisiva. - Aceita uma bebida quente?
- Um
café seria bom…
- Pensei que gostarias de um conhaque, para
relembrar os tempos em que estivestes comigo… - O olhar dela estava
duro, vincado como os pneus.
- Não, querida…
- Não me
tomes por idiota, Cláudio me disse que te encontrou na rua com
amigos semana passada, com aqueles descartáveis.
- Dois meses
fazem, minha linda, eu não bebo há dois meses! - algo de melancolia
invadiu seu olhar…
Célia o fuzilava
com o olhar, talvez por acreditar, sabe-se lá a natureza da
humanidade, suas idiossincrasias, um fato simples como o irrequieto
farfalho da cortina que teimava em beijar o chapéu algo sujo do
pobre homem. Ele havia se esforçado, havia dado conta, procurou
ajuda em si mesmo e o amor relembrado lhe doeu na presença da dureza
de uma mulher que aguardava terna e doce. Sem mais…
- Você está com
um chuveiro no dedo… É de brilhantes? - mirou, estupefato para o
anel de Célia, quando um homem começa a perceber o traquejo do
destino.
- Estarei me casando semana que vem. Você assina e
eu parto. É só isso que quero.
- Dá-me cá o papel. Com
Cláudio, suponho…
- Sim, seu amigo me ensinou muito e me
disse que tipo de homem você é. - disse com tom frio e calculista.
- estava determinada a não ficar com nenhum tipo de laivo solidário,
algo meio cruento, sem recados, nem mensagens ulteriores, uma voz da
razão de uma razão para ele desconhecida.
- Me dá o papel
então, e uma caneta, por favor. - estranhamente ele não possuía
qualquer mágoa, qualquer rancor, tivera sido o descartável um grupo
de amigos tomando café depois de uma reunião festiva, qual não
fosse, Cláudio, seu amigo de infância, rico, influente… quase
casuístico! Não fora nada. Célia mudou o tom…
- Então é
isso, você vai assinar e finalizamos?
- Exato, é isso.
Simples.
O rosto de Célia murchou um pouco… Seu sobrecenho
meio que retraiu, franziu, desfranziu, a boca tremeu um pouco,
esticou a mão com o anel, olhava os brilhantes, o olhar de Morandi,
pros lados, pestanejou…
- Quer um tempo para pensar? - disse
Célia, algo súplice, algo ainda de fingimento.
- Não, parece
que você já pensou em tudo e vai se realizar. Meu único sentimento
é de congratulação, me perdoe. Pode me passar o papel, estou com
uma térmica no carro e vou beber um café na praça. Por favor,
agora tenho pressa…
- Tenha dó meu caro, tenha dó… Riu
nervosamente Célia.
- Tudo bem, minha cara, não tenho dó que
estou e que vou bem.
- Vejo que você emagreceu.
-
Prefiro não detalhar e não espero que acredites em mim em mais
nada, querida.
- Você quer prosseguir então sozinho, e assim
vai ficar, querido. - o olhar dela estava furioso, dentro daquela
carapaça de civilidade em público.
- Não se preocupe, Célia,
eu me arranjo bem…
A resignação tomou conta, assim era a
vida. Morandi seguiu no protocolo, saiu de cena, lembrou-se um pouco
da cor do ambiente, o anel que Célia exibira, um amigo que se fora,
não perguntou aonde iriam morar, mas certamente no exterior, mas não
era tão importante, posto onde há por vezes a expectativa de um
olhar terno, um retorno ao carro depois de tantos e tantos olhares
que sequer mantém a unidade do sentir uno, atemporal, faz que a
serenidade seja algo mais forte do que apenas sofrer o sofrimento de
quem ofende com vigor e depois se ressente por causas artificiais
verdadeiramente criadas através de todo um ensaio que vigora, por
segundos por vezes, nessas ciladas onde quem arma o bote se esquece
de trancar a si mesmo dentro do grilhão de um chuveiro de
brilhantes, ou de estar-se vivendo toda uma vida de expectativas em
que o que sobra é um recheio de desditas que partem dentro do
universo restrito de alguns viventes, apenas… O residual conforto
de premissas diárias e vazias, o pressuposto de que na verdade
alguns seres se tornam mais essenciais, quase comicamente se trocar o
grasnar de uma ave pelo caminhar silencioso de um inseto, ou,
simplesmente, unir essas coisas para viver a vida dentro de uma
solidão maravilhosa, posto apenas aparente, aos olhos vítreos das
câmeras do olhar condicionado de uma espécie que por vezes falha em
não perceber os olhos da Natureza e suas reais quantidades de vida!