sexta-feira, 17 de junho de 2022

O TÉPIDO GELO DO INVERNO

 

         Era um dia como outros, a vida pulsando assim, meio do avesso de dúvidas, o assoberbamento do que conhecemos, de um quesito, quase uma bandeira no olhar de um soldado, algo a se remontar na ordem de uma compreensão. Não que fosse tudo. Beirava um tipo de virtude da inocência, uma certeza inexperiente, uma voz participativa sobre questões meio gélidas, assim como ver no olhar de uma mulher a inquieta missão que se torna aparente sobre um tipo. Edgar rumava no gelo, no gelo inexistente, um gelo no peito, apesar do sobretudo de ébano, um expatriar-se de si mesmo, onde a própria vida respirasse opressa… Adelaide o encontrava sempre meio desconexo, por vias de encontrá-lo e o tempo urgia mas não tanto, que o tempo eterno reserva melhores recados ao espírito, mesmo contrito, das humanas condições da era, a era, um broto a se preservar dentro da eternidade do tempo citado, com o vento, com as limalhas do ferro de um barco que nunca se aproximava o suficiente, mas de porte forte e sereno. Um navegante barco, um atracadouro que o esperava, um suporte de olhar sereno como o díspar gargalho de uma gaivota em voo. Conseguia conseguir algo, de monta, Olavo, em sua enxerga, já de madrugada escrevendo para poder dormir sossegado, assim como um sopro, um afago necessário nas teclas.
          Era um vilarejo acinzentado, como uma germânia latina, um paradoxo continental: um pouco de ilha e um pouco de tudo. Mark Shultz navegava andando, por todos os pedriscos, observando o resíduo do lixo revirado à noite, de passantes crendo na malvadeza da crítica, passando rápido, sem endereçá-la, apenas ruminando rancores, cidadela de alguns vencidos pela carestia e outros vitoriosos no conforto. Antes fora… Mark, com seu quepe da marinha ganho pelo pai ou tio, não importava, pregava no semblante a distração de sequer olhar lindas mulheres que passavam. Lindas assim… Algumas, serenas ou atiladas com suas empreendedoras vidas, ativas, belas no porte e muitas vezes aprendizes ainda no caráter. A ele bastava a foto de uns dias atrás, os olhos perscrutando vazamentos, manilhas na praia, comunicando ao jornal detalhes de seu bairro, queria ser útil, mas vazava ele mesmo por entre os escaninhos urbanos. No entanto, o tempo seu era de andar por trechos cabalmente simples, conforme o itinerário rotineiro que nunca se repetia, pois meramente no céu bastante as nuvens nunca foram as mesmas e as cores lembravam repetições de Cèzzane. Mas os trabalhadores eram o fator, como um motor do bairro: o comércio, a representação dos veículos, as cores das fachadas, a geometria e seus espaços que mudavam a cada passada, o poste em primeiro plano, as câmeras internas, a vigilância matutina e o vespertino adormecer da mendicância por nichos desencontrados. O inverno, contudo, singrava aberto…
          Não havia porque falar, por vezes preços de desditas eram encontrados, mas nem tudo era fora de um diálogo consonante, as coisas continuavam, e uns faziam amor com as rochas, e outros, tergiversavam propostas, expondo tatuagens como pequenas formas envolvendo reptilicamente seus braços. Não havia mais jornais padronizados como antes, posto não haver sequer uma revistaria no bairro. Por vezes a necessidade dos seres e suas voltas pareciam revoares, no céu, mar e terra, afora os insetos pelos caminhos de Mark Shultz, perscrutador e fotógrafo. Fotografava abricós caídos no chão com folhas de amendoeiras da orla, o mar algo verde ou cinza, especialmente nas manhãs cinzentas, quando o verde fazia uma diferença capital. Passava recados sutis e postava a quatro ou três ou dois em uma linha de tempo em que apagava do seu gadget para esvaziar memória.
Assim se passava o inverno naquela plaga. Surge sempre a presença feminina, nos cafés, na verdureira, seus amantes e seus parceiros. A companhia era quase ausente mas, em cada lugar, em cada vereda, em cada lote de compras, o encontro cordial se passava com muitos e a companhia ao menos entrava em gestação, ou mesmo no nascituro das ideias.
           E assim se processava a aldeia e na citação de Cervantes, para quebrar o gelo da frieza intelectiva havia a proposta: “Conhece a tua aldeia e serás universal.”

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