domingo, 19 de junho de 2022

A ASSERTIVA DE MORANDI

 

         Morandi tinha quase um carro nobre. Respirava a uma lata de decência, um furgão de tração nas quatro, uma vértebra que nosso personagem sempre desejara, assim, de se partir para as ruas mais rápido, mais torque no peito, de dirigir, apenas… No entanto, passavam-se já alguns dias e ele não coadunava bem com os freios. Lembrara do caso de Camus e seu suspeitoso acidente, na distante França, Argélia, não sabia muito da literatura biográfica. Lhe diziam apenas isso, que fora suspeito o acidente, mas isso não lhe dizia respeito, pois, acima de tudo, morria de amores pelo seu motor. Como as rodas Scorpions, bem robustas e vincadas.
         Célia Dutra lhe esperava no café por aquela tarde, e lhe falara para não faltar em atrasos maiores, mas ele aquiesceu e por alguns instantes esqueceu do carro e pensou na mulher. Que estranhas estranhezas se lembrar da mulher! Mas como, sua vida, seu modus vivendi, sabia bem que o que se tornava acima dos livros que lia era a concretude da ternura de uma mulher de verdade. Para ele, ao menos, era o suficiente para ter uma vera esperança de olhar no mano a mano um olhar feminino que se prestasse a conversar, afora a vida que lhe era de praxe. Sem ressentires de expectativas, as tentativas, meu deus, pensava, as “tentativas de minha vida!” Sabia que não ofertaria nada, que o falar por vezes não existia, morava em um ermo, e o café era a cinco quilômetros, sim, e havia de ser um encontro: que auspiciosa ideia, que deus genial era o amantíssimo Criador. O Espírito Santo, nosso senhor, o Cristo! Tava valendo a fé da espera, se tava, o tapete rubro eram as pedras do caminho, mas não tropeçara até então, porque o faria agora… Bradava: garantia, irmãos!
         Célia marcara na mesa quatro, fervia o vilarejo e, por incrível que pareça, ele não atrasara, britânico, chegou exatamente às nove. Na pressa apenas se esquecera de se talhar mais composto e, quando a viu, na mesa externa, garantiu o seu riso interior, daquele sorriso sincero, honesto e íntimo de um homem, aquele orgulho de estar mais feliz, por uma razão concreta. Cumprimentou-a sem muitas reservas, as mesas ladeadas estavam com pouca frequência, dando de olhar o mar, os abetos e algumas flores da estação em arbustivas da cercania. Foi um aceno com o olhar…
         - Olá, Célia, como estás?
         - Senta aí, Morandi…
         - É que esqueço de que esse lugar tenha mudado tanto…
         - Não vamos ser muito formais agora, por favor, tenho os documentos aqui e já lhe passo.
         - Estás muito linda.
         - Não te furtes, meu amigo. - disse ela, incisiva. - Aceita uma bebida quente?
         - Um café seria bom…
         - Pensei que gostarias de um conhaque, para relembrar os tempos em que estivestes comigo… - O olhar dela estava duro, vincado como os pneus.
         - Não, querida…
         - Não me tomes por idiota, Cláudio me disse que te encontrou na rua com amigos semana passada, com aqueles descartáveis.
         - Dois meses fazem, minha linda, eu não bebo há dois meses! - algo de melancolia invadiu seu olhar…

         Célia o fuzilava com o olhar, talvez por acreditar, sabe-se lá a natureza da humanidade, suas idiossincrasias, um fato simples como o irrequieto farfalho da cortina que teimava em beijar o chapéu algo sujo do pobre homem. Ele havia se esforçado, havia dado conta, procurou ajuda em si mesmo e o amor relembrado lhe doeu na presença da dureza de uma mulher que aguardava terna e doce. Sem mais…

         - Você está com um chuveiro no dedo… É de brilhantes? - mirou, estupefato para o anel de Célia, quando um homem começa a perceber o traquejo do destino.
         - Estarei me casando semana que vem. Você assina e eu parto. É só isso que quero.
         - Dá-me cá o papel. Com Cláudio, suponho…
         - Sim, seu amigo me ensinou muito e me disse que tipo de homem você é. - disse com tom frio e calculista. - estava determinada a não ficar com nenhum tipo de laivo solidário, algo meio cruento, sem recados, nem mensagens ulteriores, uma voz da razão de uma razão para ele desconhecida.

         - Me dá o papel então, e uma caneta, por favor. - estranhamente ele não possuía qualquer mágoa, qualquer rancor, tivera sido o descartável um grupo de amigos tomando café depois de uma reunião festiva, qual não fosse, Cláudio, seu amigo de infância, rico, influente… quase casuístico! Não fora nada. Célia mudou o tom…
         - Então é isso, você vai assinar e finalizamos?
         - Exato, é isso. Simples.
O rosto de Célia murchou um pouco… Seu sobrecenho meio que retraiu, franziu, desfranziu, a boca tremeu um pouco, esticou a mão com o anel, olhava os brilhantes, o olhar de Morandi, pros lados, pestanejou…
         - Quer um tempo para pensar? - disse Célia, algo súplice, algo ainda de fingimento.
         - Não, parece que você já pensou em tudo e vai se realizar. Meu único sentimento é de congratulação, me perdoe. Pode me passar o papel, estou com uma térmica no carro e vou beber um café na praça. Por favor, agora tenho pressa…
         - Tenha dó meu caro, tenha dó… Riu nervosamente Célia.
         - Tudo bem, minha cara, não tenho dó que estou e que vou bem.
         - Vejo que você emagreceu.
         - Prefiro não detalhar e não espero que acredites em mim em mais nada, querida.
         - Você quer prosseguir então sozinho, e assim vai ficar, querido. - o olhar dela estava furioso, dentro daquela carapaça de civilidade em público.
         - Não se preocupe, Célia, eu me arranjo bem…
         
         A resignação tomou conta, assim era a vida. Morandi seguiu no protocolo, saiu de cena, lembrou-se um pouco da cor do ambiente, o anel que Célia exibira, um amigo que se fora, não perguntou aonde iriam morar, mas certamente no exterior, mas não era tão importante, posto onde há por vezes a expectativa de um olhar terno, um retorno ao carro depois de tantos e tantos olhares que sequer mantém a unidade do sentir uno, atemporal, faz que a serenidade seja algo mais forte do que apenas sofrer o sofrimento de quem ofende com vigor e depois se ressente por causas artificiais verdadeiramente criadas através de todo um ensaio que vigora, por segundos por vezes, nessas ciladas onde quem arma o bote se esquece de trancar a si mesmo dentro do grilhão de um chuveiro de brilhantes, ou de estar-se vivendo toda uma vida de expectativas em que o que sobra é um recheio de desditas que partem dentro do universo restrito de alguns viventes, apenas… O residual conforto de premissas diárias e vazias, o pressuposto de que na verdade alguns seres se tornam mais essenciais, quase comicamente se trocar o grasnar de uma ave pelo caminhar silencioso de um inseto, ou, simplesmente, unir essas coisas para viver a vida dentro de uma solidão maravilhosa, posto apenas aparente, aos olhos vítreos das câmeras do olhar condicionado de uma espécie que por vezes falha em não perceber os olhos da Natureza e suas reais quantidades de vida!


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