quinta-feira, 16 de junho de 2022

CONVERSAÇÃO

 

PEÇA EM UM ATO


Se passa em um cenário cinza, com faixas radiais azuis e amarelas.

Antón: cidadão comportado, nos moldes de um servidor público governamental.

Sélvio: lixeiro, terceirizado, magro, com tendões de envergadura.

Dois bancos centrais, no interior do cenário…


Antón espera, olha para o relógio da parede, olha para o retrato da parede: um homem sem face, uma medalha pendurada sob o retrato, uma mesa de bilhar sem bolas e uma escrivaninha disposta diagonalmente na sala.

Sélvio chega para reunir-se com Antón, e se depara com um olhar turvo e frio, mas com um esgar de sorriso ensaiado como se fosse amistoso, como em uma preparação. Senta-se no outro banco, convidado pelo homem a sentar-se.

ATO:

Sélvio: Procurei esta sala dentro de um departamento amplo, na rua Coronel Sor. Disseram que me dirigisse aqui, nesta viela e me perguntei como um edifício tão pequeno podia…

Antón: Não lhe disseram nada?

Sélvio: Disseram para procurar dentro do edifício no quinto andar. Perdoe, senhor, eu não o conheço, me informaram seu nome e qual a sala, não sei se o senhor sabe, mas me deram folga na empresa, eu tinha turno para esta manhã, está de acordo?

Antón: A respeito de um saco de lixo azul, você sabe, houve um registro, você colocou o saco na parte da frente do caminhão… Obviamente deve estar lembrado.

Sélvio: Como? Meus colegas sabiam que eu estaria de folga hoje para falar com o departamento. Eu jamais fui para falar com o meu patrão… Disse-me um que é uma sala informatizada, cheia de gente, assim, mas eu não sei, pensei que a promoção, bem…

Antón: Não sou diretor de nada, meu caro! Você só está aqui porque não colocou o saco no lixeiro do caminhão. Onde se encontra o que havia no saco? É essencial que você me responda isso, apenas isso, não haverá nenhum acordo salarial, você deve saber que não está aqui para promoção alguma, se é que me fiz entender.

Sélvio: Mas eu não sei o que o senhor está me dizendo.

Antón: Não minta, por favor, estou sendo delicado. Houve um registro.

- Antón saca de um aparelho e mostra uma cena a Sélvio, este fica trêmulo, não sabe o que fazer com as mãos.

Sélvio: Senhor, se é que me diga algo, não compreendo, minha roupa, bem, o senhor sabe o dia dessa filmagem?

Antón: Você é que há de me dizer qual foi o dia, a hora, em que rua, em que casa e como e o porquê!

Sélvio: Perdão!? O que é… Onde estou, o senhor, bem, caramba, ops, me desculpe mas o que ou para que serve um saco azul?

Antón: Você está bem reservado por aqui, meu caro camarada… Não é assim? Não tente entender onde está, não importa onde seja, pois assim como aqui estamos por todos os lados, não sei se entra esse vocabulário em sua cabeça. Dou-lhe um conselho muito importante para a sua existência, se é que você me entende… Pode até dizer que não sabe, mas a imagem não mente, é você mesmo, pois seu gesto, mesmo de costas foi identificado. Ainda não é um inquérito, me entenda, digamos que também não seja repreensão.

Sélvio: Ah, sim, agora estou lembrado… Se não me falha a memória… Perdão senhor, a rua, agora me lembro, é que eu lembrava o que tinha no saco quando separei o lixo junto com os meus colegas. Havia uma cor laranja, o saco eu não percebi, assim, distraído, a sua cor. Azul, é que eu cato para mim coisas que encontro por vezes, o senhor sabe, há muito descartes!

Antón: Pois é, me diga então.

Sélvio: Era um console de game que reservei para meu filho, Estêvão, de cinco anos…

Antón: Congratulo, então… Pode provar?

- Sélvio saca de um aparelho e mostra uma fotografia onde está um menino jogando vídeo game em uma sala pequena de madeira, com um pequeno armário no fundo onde se vê roupas. Antón projeta a imagem no cenário cinza e este toma as cores variadas, mudando as luzes do ambiente.

Antón: Sim, de acordo, vejo que dá para ver inclusive o saco azul, vazio, na direita da imagem… Você foi honesto e eu não vou repreender a sua atitude.

Sélvio: Creio que não possa se repetir isso…?

Antón: Contanto que você encontre mais utilidade no resíduo orgânico, ou seja, separe o que pode ser aproveitado, não se surpreenda…

Sélvio: Como?

Antón: Indicarei sua promoção. Você será promovido a chefe do setor nove, pavilhão quatro, das duas frotas que você passará a comandar em seu turno nos veículos 754 e M57. M57 para materiais, a distribuição futura é por conta da SP7, mas você não precisa saber destas siglas, pois é coisa da empresa. Quando sair desta sala, siga a faixa azul no chão até o elevador segundo da direita para a esquerda e preencha a documentação com a secretária do setor, e volte a trabalhar na terça, às duas como sempre. O chefe da seção no pavilhão lhe avisará os novos procedimentos e lhe dará um pequeno manual que você deve inteirar-se antes de começar o turno, chegue uma hora mais cedo e estude as novas regras.

Sélvio: E o que acontece agora?

Antón: Está liberado… Pode ir e boa sorte!

CAI O PANO

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