PEÇA EM UM ATO
Se
passa em um cenário cinza, com faixas radiais azuis e
amarelas.
Antón: cidadão comportado, nos moldes de um
servidor público governamental.
Sélvio: lixeiro,
terceirizado, magro, com tendões de envergadura.
Dois
bancos centrais, no interior do cenário…
Antón
espera, olha para o relógio da parede, olha para o retrato da
parede: um homem sem face, uma medalha pendurada sob o retrato, uma
mesa de bilhar sem bolas e uma escrivaninha disposta diagonalmente na
sala.
Sélvio chega para reunir-se com Antón, e se depara
com um olhar turvo e frio, mas com um esgar de sorriso ensaiado como
se fosse amistoso, como em uma preparação. Senta-se no outro banco,
convidado pelo homem a sentar-se.
ATO:
Sélvio:
Procurei esta sala dentro de um departamento amplo, na rua Coronel
Sor. Disseram que me dirigisse aqui, nesta viela e me perguntei como
um edifício tão pequeno podia…
Antón: Não lhe
disseram nada?
Sélvio: Disseram para procurar dentro do
edifício no quinto andar. Perdoe, senhor, eu não o conheço, me
informaram seu nome e qual a sala, não sei se o senhor sabe, mas me
deram folga na empresa, eu tinha turno para esta manhã, está de
acordo?
Antón: A respeito de um saco de lixo azul, você
sabe, houve um registro, você colocou o saco na parte da frente do
caminhão… Obviamente deve estar lembrado.
Sélvio:
Como? Meus colegas sabiam que eu estaria de folga hoje para falar com
o departamento. Eu jamais fui para falar com o meu patrão…
Disse-me um que é uma sala informatizada, cheia de gente, assim, mas
eu não sei, pensei que a promoção, bem…
Antón: Não
sou diretor de nada, meu caro! Você só está aqui porque não
colocou o saco no lixeiro do caminhão. Onde se encontra o que havia
no saco? É essencial que você me responda isso, apenas isso, não
haverá nenhum acordo salarial, você deve saber que não está aqui
para promoção alguma, se é que me fiz entender.
Sélvio:
Mas eu não sei o que o senhor está me dizendo.
Antón:
Não minta, por favor, estou sendo delicado. Houve um registro.
- Antón saca de um
aparelho e mostra uma cena a Sélvio, este fica trêmulo, não sabe o
que fazer com as mãos.
Sélvio: Senhor, se é que me diga
algo, não compreendo, minha roupa, bem, o senhor sabe o dia dessa
filmagem?
Antón: Você é que há de me dizer qual foi o
dia, a hora, em que rua, em que casa e como e o porquê!
Sélvio:
Perdão!? O que é… Onde estou, o senhor, bem, caramba, ops, me
desculpe mas o que ou para que serve um saco azul?
Antón:
Você está bem reservado por aqui, meu caro camarada… Não é
assim? Não tente entender onde está, não importa onde seja, pois
assim como aqui estamos por todos os lados, não sei se entra esse
vocabulário em sua cabeça. Dou-lhe um conselho muito importante
para a sua existência, se é que você me entende… Pode até dizer
que não sabe, mas a imagem não mente, é você mesmo, pois seu
gesto, mesmo de costas foi identificado. Ainda não é um inquérito,
me entenda, digamos que também não seja repreensão.
Sélvio:
Ah, sim, agora estou lembrado… Se não me falha a memória…
Perdão senhor, a rua, agora me lembro, é que eu lembrava o que
tinha no saco quando separei o lixo junto com os meus colegas. Havia
uma cor laranja, o saco eu não percebi, assim, distraído, a sua
cor. Azul, é que eu cato para mim coisas que encontro por vezes, o
senhor sabe, há muito descartes!
Antón: Pois é, me diga
então.
Sélvio: Era um console de game que reservei para
meu filho, Estêvão, de cinco anos…
Antón: Congratulo,
então… Pode provar?
- Sélvio saca de um
aparelho e mostra uma fotografia onde está um menino jogando vídeo
game em uma sala pequena de madeira, com um pequeno armário no fundo
onde se vê roupas. Antón projeta a imagem no cenário cinza e este
toma as cores variadas, mudando as luzes do ambiente.
Antón:
Sim, de acordo, vejo que dá para ver inclusive o saco azul, vazio,
na direita da imagem… Você foi honesto e eu não vou repreender a
sua atitude.
Sélvio: Creio que não possa se repetir
isso…?
Antón: Contanto que você encontre mais
utilidade no resíduo orgânico, ou seja, separe o que pode ser
aproveitado, não se surpreenda…
Sélvio: Como?
Antón:
Indicarei sua promoção. Você será promovido a chefe do setor
nove, pavilhão quatro, das duas frotas que você passará a comandar
em seu turno nos veículos 754 e M57. M57 para materiais, a
distribuição futura é por conta da SP7, mas você não precisa
saber destas siglas, pois é coisa da empresa. Quando sair desta
sala, siga a faixa azul no chão até o elevador segundo da direita
para a esquerda e preencha a documentação com a secretária do
setor, e volte a trabalhar na terça, às duas como sempre. O chefe
da seção no pavilhão lhe avisará os novos procedimentos e lhe
dará um pequeno manual que você deve inteirar-se antes de começar
o turno, chegue uma hora mais cedo e estude as novas regras.
Sélvio:
E o que acontece agora?
Antón: Está liberado… Pode ir e boa sorte!
CAI O PANO
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