sábado, 7 de novembro de 2015

TEMPO E CONHECIMENTO

            - Pois bem, Marcel, há quanto tempo estamos nesta sala, e você a escrever, um lunático propriamente, talvez mais do que isso, você não vê que não tem condições, que é um enfermo mental?
            - Eu sei disso, Luciana, mas me dá nos tiques, que não aguento... Ademais, seria hora de ligar para alguém, e transfiro essa ansiedade pela comunicação em escrever, talvez mais gente possa me escutar, publicando talvez por quatro vinténs de mundo... Aliás, é promessa, é a hora que tenho para me expressar, enquanto muita gente gostaria de me ver no ostracismo da acumulação das telas. Saiba que não sou muito ingênuo mais, e me basta a companhia das letras.
            - Tudo bem, se você quer o tempo, por que não se instrui mais um pouco? Quem sabe ombreia com os doutores de casaca, ao invés de falar pelos quatro cantos como foi o seu dia. Quem sabe dá a volta por cima, pois creio que nas vezes em que escreve barbaramente não sabe ou ignora que o viés vem a galope.
            - Olhe, minha cara... Não ligo mais para nenhum ser se não for do meu sangue, da minha família. Posso ligar para alguém a trabalho, mas na hora de compartir, como você mesma diz, não há alma que aceda com o meu propósito de viver a minha loucura como quero. Meu médico é excelente, e minha vida tem sido um livro aberto, a quem quiser que consulte, pois a mensagem sei que não é das piores. Tanto que, agora, resolvo escrever para Krsna. Krsna e Cristo, os dois seres que admiro enquanto devoto. São grandes, mais ainda prefiro Vishnu, e essa é a minha verdade, mas podemos falar do tempo inexorável, ou de livros, tudo é um tipo de olaria dos nossos pensamentos, igualmente...
            - Você não gosta quando eu lhe falo delicadamente, com uma voz em falsete imitando uma ternura?
            - Estou no terceiro parágrafo, e pretendo terminar um princípio de livro de centenas destes, pois o dia a quem não interessa me foi duro, como sempre, e guardo no meu peito o tesouro de minhas lutas diárias, a prosseguir vivendo com minha autenticidade e minha fé, nas minhas relações com o céu e suas nuvens, como um judeu me ensinou na cidade de São Paulo, que só possuía o recorte do céu, mas internamente ele está presente, é só olhar pela redoma de dentro do sky line. Mas aqui temos muito do céu e seu horizonte, pois saiba que quando saímos, cara cidadã, você não vê um átomo do que eu vejo, pode ter certeza disso.
            - Tá certo, eu não lhe importunarei e deixarei você escrever vossas bobagens sem conta. Agora, a única vantagem que você leva sobre mim é que não senta mais sobre seus óculos, pois os meus foram para a cucuia hoje, e estamos no sábado, a ótica em Floripa só abre na segunda. E quanto ao seu Krsna, Vishnu ou Brahma, você é quem dita, adeus por enquanto que saio para tomar uma brahma!
            Fechava o pano por enquanto. A credenciar, uma personagem é como um marionete, na visão da dramaturgia simpática a um certo realismo de sonhos... Temos que ser marionetes enquanto escrevemos, pois que sejamos cavalos, pais de santos, católicos, evangélicos, budistas, ou um ateu crente, que crê na vida: o que dá de fé também, igual e nada patibular... Marcel era um homem sem pretensão, talvez por isso o resultado de seu imenso trabalho de diletantismo nas artes não o enredava nos frutos deste. Gostava de saber do muito a se dizer, mas sempre com a utilidade dos adaptados, com certa postura de oprimido, mas na realidade com as asas de suas liberdades, ampliadas dia a dia na consecução de sua íntima e secreta inteligência. Já possuía um canal e negava conexões, pois para ele isso era coisa de plugues, no mais que se bastassem em seu hardware, em sua máquina, apenas da eletrônica visceralmente necessária. Agora, havia na verdade uma conexão maior, e a loucura da sua idiossincrasia era tamanha que nem em um inquérito existencial teria validade, e isso não lhe causava paranoia, apenas o ensinava a viver melhor, questão facilitadora de viver como se lhe bastasse, e agora – repetindo – vivia no seu próprio shopping center natural: sem bichos, com bichos, com biomas poluídos, com motoqueiros de gangues, com mescla de cores, pastéis chineses, advogados bons e outros um pouco distraídos, o stress recorrente, cães, gatos, gaivotas e os insetos que o maravilhavam, desde uma carocha cor do jade a um mísero mosquito. Essa era a vida e seu conhecimento, a sentir na pele florescer a cada dia que passava a juventude que não vivera enquanto estudante aficionado das exatas, das humanas e imensamente das artes.
            Luciana voltava do chopp... Sempre a mesma lenga-lenga. Agredia, criticava, pegava onde pensava que era o ponto fraco, mas Marcel – renitente – não percebia, ou fingia fazê-lo, por comodidade. Certas coisas que as mulheres, mesmo as mais independentes não suportam que é a indiferença do homem quando sabem que talvez o prazer intelectual para alguns seja maior do que o sexual, não por falta da libido, mas por uma questão da própria emancipação desta na ação da mente e do espírito. Para ele a zona de conforto era a literatura, e muitos preferiam não tocar no assunto, mesmo que o que nos aproxime seja a realidade cotidiana e cultural de uma cidade na forma inequívoca de quase reportarmos o que vivemos em um dia, que seja...
            - Marcel, - disse ela, depois de muito observar os textos – você não acha que colocar as questões desse modo faz você virar uma página extremamente dura sobre o que você pensa da realidade cotidiana? Aqui, em outra parte, você cita a necessidade da palavra e ação do destemor – abhayam, em sânscrito -, como sendo sua plataforma de existência? Não se exponha, meu caro, você é autobiográfico ou está afundado na ficção do absurdo sem limites?
            - Como queira, Luciana, o livro é uma obra em aberto. Pense em Felini, a fantasia, o extremo realismo levado ao absurdo, a beleza dos cenários. Aqui, penso sempre em algo de ensinamento, quem sou eu, mas algo que leve a uma reflexão a partir do que se escreva, sem a âncora tão frequente e indispensável a alguns, o dogmatismo.
            - Mas, creia-me, esse seu olhar não tem fundamento lógico a maior parte das vezes...
            - A lógica não é necessária na arte. A quebra do surrealismo de Brèton se dá no sonho, em uma mitologia que não existe, mesmo no livro O Século das Luzes, de Alejo Carpentier, um grande escritor latino-americano a lógica existe, mas mesclada com um fôlego narrativo gigante, a história em si, os detalhes. Quem dera eu tivesse um por cento de um talento gigantesco como esse, mas certas coisas vão saindo meio no automático, como um esvaziamento, um fôlego que tenho que acaba no fim do dia e no começo da noite. Se for útil para um casal que se ame e encontre algumas luzes melhor, mas ainda creio que ditar uma vivência cotidiana não é muito fácil para a própria arte da literatura, do jornalismo, da crônica, do ensaio e etc. Não quero me comparar, apenas sobrevivo porque gosto de escrever, e encontro mais feedback do que se estivesse falando palavras controladas pelo telefone, entende?
            Luciana aquiesceu, aquietou-se um pouco, e sabia que ele optara pelo lado mais inofensivo das palavras, e que no entanto não discorriam sobre todas as ofensas que ele recebia, e que tantos outros recebem. Pois que me viesse o lado cristão, que eu podia apenas perdoar, e me arrependia de querer responder à altura. Já era noite e Marcel cansara. Duas páginas seriam mais do que suficientes para dormir vazio, com o suporte de um carinho no leito do papel, enquanto se escutava na cidade o regurgitar da azáfama, a orgia de um sábado noturno...

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