sexta-feira, 16 de agosto de 2019

O DILEMA DE ANA CLÁUDIA


          Todos a conheciam por Cláudia, sem meio termo, em que Ana nem parecia fazer parte de seu nome. Podia ser Clô, e por esse nome a reconheciam igualmente… Portanto, que seja: Cláudia, sem Ana. Namorava o suficiente para ser feliz, e tantas eram as invejosas que a colocavam em xeque ao menor sinal de fraqueza, dessa mulher que vivia além de seu tempo, libertária, feminista e independente, razões pelas quais os homens não a compreendiam muito nos seus trejeitos de menina em uma mente e corpo maduros, pois contava com 42 anos. Não seria justo afirmar que ela era mais madura do que tantas outras, pois essa questão não parecia tão genérica se não fosse algo pontual, diminuto, relativo. O que seria a maturidade, se não saber ao menos que se vive um tempo em que não se sabe o que há realmente, ou se tem a certeza de que algo vem com o mesmo tempo, ou mesmo o afã de ser feliz possa ser a maturidade de ser quase infantil? Cria a mulher em um tipo de conduta onde se requer certa prudência, pois sempre afirmava categórica o que pensava ser verdadeiro, e levava uma vida sob a sombra brilhante de uma autenticidade cabal. Visto ser sombra, ao que a outros parecesse, mas respirava sempre o ar magnífico da discrição e da sinceridade. Por vezes franzia o sobrecenho, meio que ao respirar algum outro ar que fosse amargo, mas relutava ao não consentir que o fosse sempre, pois era acima de tudo uma buscadora, uma mulher mais da luta, não se abandonava a questões de adaptações forçadas, pois que fosse, e lhe bastava ser…
           Em um dia que não apontava para a sensatez, fugia por outros cantos e encontrava uma planta, em um vaso, de repente, a firmar o olhar, como quem redescobre ao menos um capim, a ver que a planta mesma possuísse o triunfo de também existir, e lhe bastava derivar para esse simples lado, mesmo que a princípio recusasse a oferta generosa que por vezes o prazer se nos apresenta em uma bandeja de ouro, e que por vezes vira um engradado de lata. Gostaria de pensar de outro modo, como lhe falavam para ser, mas o viés de sua personalidade era da derivação, não muito do cálculo, apesar de amar os números. No entanto, viera a seu mundo o dilema do céu e da terra. Esse dilema de saber-se fixa no chão e querer voar como um animal, querer construir suas asas… Pensava mesmo que poderia voar mais alto de um modo filosófico, como se o pensamento lhe trouxesse o azul, as nuvens, a chuva e o sol. No céu encontrava seus escapes, e na terra deitava-se por vezes para sentir as texturas da Natureza e por ela acreditava que estaria talvez até mesmo encanecendo seus cabelos. Seus brancos, seus volantes de pelos, sua idade que crescia e irradiava experiência, na vida isolada e não necessariamente solitária, pois tinha a dimensão da Criação como aliada fiel de seus braços, ombros e coração. No que tocasse já se refazia, na veste de uma alfombra de ervas, ao acariciar seu gato, nas vertentes do querer não mais do que o simples, do que o básico, que tomava por seu lado a dimensão de importância capital em sua vida. O seu querer não era tanto, não desejava homens muito belos, não era rica e nem gostaria de viagens e gostava de uma vida simples, e de seu elevado pensamento. As paixões pelas quais vivia era a sua arte do desenho, no que transcrevesse o painel irrequieto, mesmo que sua capacidade para tal fosse limitada, posto saber profundamente que a poética fazia parte de seus signos, de maneira apropriada, no que se conhecesse, mesmo que não houvesse em seu diletantismo saltos maiores da qualidade esperada do tal mercado, que tanto lhe falavam sobre e, ela, meio que o desconhecia.
          Sabia Cláudia de suas compras, que a reconheciam, sabia o que era o comércio, mas as leis que regem um futuro equidistante do passado não lhe diziam muito a respeito da engrenagem por vezes necessária em que os sistemas contemporâneos nos colocam termos, nos impõem certas condições. A isso a proposta de sua vida lhe antepunha as barreiras que a separavam da existência da maior parte das gentes que passava a conhecer, quando passeava com seu cão, quando via os trajes, vivenciava circunstâncias, sedava seu comportar-se no detrimento de outros que exerciam um certo fascínio por existirem nos seus passos, por se ver e presenciar os modos, e a diferença bárbara entre várias gentes, mesmos estas com roupas parecidas, algo turvas, algo cinzas, de se rir deslocada, posto algo tristes. Talvez os carros lhe falassem mais na mesmice da velocidade, do ímpeto, de uma máquina que a ela lhe parecia girante sobre um mundo bem plano: na rótula, nas faixas dos pedestres, nos estacionamentos, em uma luta de carros vazios, de latas coloridas, no negrume de sua aparência, nos carros brancos, nas placas e nos sinais. Meio que ignorassem sua presença, e ela permanecia fiel a essa felicidade do anonimato que desconhecia, por estar alheia à fama ou ao desconhecimento das regras que pungentemente abraçam esses veículos. Seus ritmos eram o andamento dos ruídos, dos sons que lhe chegavam pelas portas da percepção, uma sirene, um rangido, uma música, uma frase solta, um latido, este que lhe parecia sempre mais sensato, por mais ruidoso, pela ansiedade canina, pelos versos de rimas que soletrassem por fim esse modo de existência. Uma vez alguém apareceu para ela empunhando um celular, já na onda 7G, e lhe falou com um capacete digital porque ela andara tanto por suas próprias pernas, e ela veio a se mostrar ignorante dessa condição, começou a perceber que estar conectada à Natureza começava a esfriar o temperamento de sua independência… Jamais pensara que estivesse tão desconectada à natureza material: do objeto construído, o sim e o não, do que talvez não existisse porventura na sua clemência em pedir algo maior ao que houvesse em uma gôndola de supermercado. Esse super mercado que vinha para ficar, e ela pensava que a industriosa forma da ilusão participava de alguns caminhos, e o dilema crucial para ela seria pensar que o céu e a terra finalmente estariam conectados, ou as conexões capitais para os que estavam com certas maquininhas seriam a face deslumbrante de finalmente separarem céu e terra, mesmo que no ar o voo de uma andorinha fosse mais silenciosa do que o de um drone verticalizado pela ausência do fator humano que jamais conhecera em sua integralidade…

Nenhum comentário:

Postar um comentário