Deivid
não sabia que seu nome era Bíblico, pudera, seu pai o colocara como
um nome qualquer, um misto de anglicismo e cunho religioso, conforme
pesquisa feita por ele: Deivid. Na verdade, vira tantas coisas nestes
mundinhos de Deus, tanta foi sua relação com a vida que acabou
tendo um surto, já com trinta e poucos anos… Sucedeu que o
sofrimento veio a galope! A crueza da doença mental se manifestou,
foi tratado e controlado, passando a viver com suas limitações,
naquelas que se esperava internamente, com a inevitável reação
adversa da química, pois seu problema era grave, e a estabilização
de seu quadro igualmente, pois ele ainda não obtinha referências
muito válidas de alguma ajuda outra que não fosse a terapia com o
médico, e a companhia de seu irmão, Anailton, que lhe dava uma
companhia e uma paciência de Jó. Se davam bem, e Deivid tinha a
consciência de não poder sobrecarregar Anailton, pois este
trabalhava como vigilante e ainda fazia faxinas de dia para aumentar
seus ganhos. Deivid recebia um salário mínimo do INSS, por
incapacidade e fazia oficinas de arte e música em uma instituição
da Igreja Católica. Não havia ainda se tornado um devoto, mas aos
poucos foi se ambientando com os ritos. Ambos eram sozinhos, pois
haviam perdido os pais um pouco precocemente, e tinham um ao outro e
uma margem restrita de amigos. Anailton tinha uma paixão por
brinquedos de barcos de madeira, com uma oficina pequena no puxado
onde viviam, perto do mar.
À
medida que o tempo passava, ambos tinham suas pequenas manias, e as
de Deivid eram o desenho e a música. Sabia desenhar garranchos,
figuras bem simplificadas, mas dava a vida para elas com pequenas
historietas, pequenos diálogos, em uma simples visão do mundo, que
para ele significavam bastante. Na música tinha conhecimento de
alguns acordes que tocava no violão, arriscando solos de ouvido, no
revelar a si mesmo um talento que os outros não reconheciam pois,
tais como os desenhos, já vinham nele um ser especial, um ser
inferior, doente, enfermo mental. Um estigma, realmente inevitável,
e teria que carregar perpetuamente essa mácula que gerava uma visão
ao seu próximo, estereotipada, na verdade, mas apensa a confiar que
a sociedade respeitasse essa condição. Como tantos outros que vivem
nas cidades: os cegos, os surdos, os paraplégicos, os autistas e
etc. Afora as questões culturais, os povos, as etnias, ou seja, o
próprio estigma travestido em muitos outros, quando a condição
social busca não compreender as diferenças, seja de que ordem
forem. Na verdade, a condição de isolamento de Deivid fazia-o
procurar seus iguais, e muitos portadores de doenças psíquicas
passavam pelas oficinas da Igreja. Sentia-se bem saber de que os
mistérios da mente, no presente século, já existiam por melhores
atenções, e o grupo social era a vertente de estar-se mais
consciente dos problemas e desafios de conduta que sentiam por si e
pelos outros.
A
situação em uma casa onde reside alguém com males mentais
porventura não era tão distinta de outras, porquanto no caso de
Deivid e seu irmão, a serenidade pontuava mais do que algum tipo de
rebeldia, tão clássica onde há adolescentes. A juventude de ambos
já havia cedido lugar a uma espécie de maturidade onde não havia
propriamente uma hierarquia, mas o consentimento tácito de que
Anailton dava as rédeas da situação em decisões mais importantes,
na organização do lar e na administração da vida de ambos, mas
reiterando o espaço co participativo de Deivid na acepção de que
um dia viesse a morar só. O funcionamento da casa, os compromissos,
as possibilidades de adaptação a algum nível de stress eram quase
um treinamento para o objetivo de fazer com que Deivid se tornasse
independente, mesmo com seu problema e limitações. Deivid não
podia beber, e Anailton o punha a prova quando trazia um amigo ou uma
amiga, tomando cerveja ou vinho a fim de que Deivid se mantivesse
auto disciplinado, auto controlado, ou seja, permitindo que na
presença do álcool Deivid tivesse o controle sobre si mesmo. Eram
ensinamentos de convivência, a bem dizer, que a simplificação
disto encerra algum véu da literatura, mas que de bom alvitre se
supõe que a enfermidade, assim como o ser diferente na sociedade
seja compreendida, desde que não interfira em comportamentos que
sejam nocivos ao status quo. Dessa certeza algo confusa tomava
tento pouco a pouco, com os ensinamentos que a vida da religião lhe
dava o amparo existencial. De ser cristão, de se estar lendo o
Evangelho, onde a sabedoria de Lucas, Marcos e Mateus lhe desse
amparo. Esse Espírito Santo que via na história das artes, na
escultura de Miguel Ângelo, nas pinturas de Da Vinci e Rafael, ou no
surgimento histórico de Fra Angélico, com a transição da arte ao
Renascimento.
Que
Deivid buscasse, isso era certo, era um buscador, um eterno curioso,
um grande leitor. Admirava os alemães por seus gigantescos filósofos
e por sua gigantesca música, igualmente a França, ou seja, amava os
padrões da arte clássica, erudita, e ao mesmo tempo
transubstanciava em si mesmo a linguagem mais acessível. Por ventura
era esse o mundo de Deivid e de seu irmão Anailton, e por ventura
seriam muitos os destinos de milhões de pessoas em seu país e no
mundo. Apenas tinham em mente uma coisa: o bem querer sempre seria
progressivo, e a maldade, estanque porquanto anti social.