- Pois bem, Marcel, há quanto tempo
estamos nesta sala, e você a escrever, um lunático propriamente, talvez mais do
que isso, você não vê que não tem condições, que é um enfermo mental?
- Eu sei disso, Luciana, mas me dá
nos tiques, que não aguento... Ademais, seria hora de ligar para alguém, e
transfiro essa ansiedade pela comunicação em escrever, talvez mais gente possa
me escutar, publicando talvez por quatro vinténs de mundo... Aliás, é promessa,
é a hora que tenho para me expressar, enquanto muita gente gostaria de me ver
no ostracismo da acumulação das telas. Saiba que não sou muito ingênuo mais, e
me basta a companhia das letras.
- Tudo bem, se você quer o tempo,
por que não se instrui mais um pouco? Quem sabe ombreia com os doutores de
casaca, ao invés de falar pelos quatro cantos como foi o seu dia. Quem sabe dá
a volta por cima, pois creio que nas vezes em que escreve barbaramente não sabe
ou ignora que o viés vem a galope.
- Olhe, minha cara... Não ligo mais
para nenhum ser se não for do meu sangue, da minha família. Posso ligar para
alguém a trabalho, mas na hora de compartir, como você mesma diz, não há alma
que aceda com o meu propósito de viver a minha loucura como quero. Meu médico é
excelente, e minha vida tem sido um livro aberto, a quem quiser que consulte,
pois a mensagem sei que não é das piores. Tanto que, agora, resolvo escrever
para Krsna. Krsna e Cristo, os dois seres que admiro enquanto devoto. São
grandes, mais ainda prefiro Vishnu, e essa é a minha verdade, mas podemos falar
do tempo inexorável, ou de livros, tudo é um tipo de olaria dos nossos
pensamentos, igualmente...
- Você não gosta quando eu lhe falo
delicadamente, com uma voz em falsete imitando uma ternura?
- Estou no terceiro parágrafo, e
pretendo terminar um princípio de livro de centenas destes, pois o dia a quem
não interessa me foi duro, como sempre, e guardo no meu peito o tesouro de
minhas lutas diárias, a prosseguir vivendo com minha autenticidade e minha fé,
nas minhas relações com o céu e suas nuvens, como um judeu me ensinou na cidade
de São Paulo, que só possuía o recorte do céu, mas internamente ele está
presente, é só olhar pela redoma de dentro do sky line. Mas aqui temos muito do
céu e seu horizonte, pois saiba que quando saímos, cara cidadã, você não vê um
átomo do que eu vejo, pode ter certeza disso.
- Tá certo, eu não lhe importunarei
e deixarei você escrever vossas bobagens sem conta. Agora, a única vantagem que
você leva sobre mim é que não senta mais sobre seus óculos, pois os meus foram
para a cucuia hoje, e estamos no sábado, a ótica em Floripa só abre na segunda.
E quanto ao seu Krsna, Vishnu ou Brahma, você é quem dita, adeus por enquanto
que saio para tomar uma brahma!
Fechava o pano por enquanto. A
credenciar, uma personagem é como um marionete, na visão da dramaturgia
simpática a um certo realismo de sonhos... Temos que ser marionetes enquanto
escrevemos, pois que sejamos cavalos, pais de santos, católicos, evangélicos,
budistas, ou um ateu crente, que crê na vida: o que dá de fé também, igual e
nada patibular... Marcel era um homem sem pretensão, talvez por isso o
resultado de seu imenso trabalho de diletantismo nas artes não o enredava nos
frutos deste. Gostava de saber do muito a se dizer, mas sempre com a utilidade
dos adaptados, com certa postura de oprimido, mas na realidade com as asas de
suas liberdades, ampliadas dia a dia na consecução de sua íntima e secreta
inteligência. Já possuía um canal e negava conexões, pois para ele isso era
coisa de plugues, no mais que se bastassem em seu hardware, em sua máquina,
apenas da eletrônica visceralmente necessária. Agora, havia na verdade uma
conexão maior, e a loucura da sua idiossincrasia era tamanha que nem em um
inquérito existencial teria validade, e isso não lhe causava paranoia, apenas o
ensinava a viver melhor, questão facilitadora de viver como se lhe bastasse, e
agora – repetindo – vivia no seu próprio shopping center natural: sem bichos,
com bichos, com biomas poluídos, com motoqueiros de gangues, com mescla de
cores, pastéis chineses, advogados bons e outros um pouco distraídos, o stress
recorrente, cães, gatos, gaivotas e os insetos que o maravilhavam, desde uma
carocha cor do jade a um mísero mosquito. Essa era a vida e seu conhecimento, a
sentir na pele florescer a cada dia que passava a juventude que não vivera enquanto
estudante aficionado das exatas, das humanas e imensamente das artes.
Luciana voltava do chopp... Sempre a
mesma lenga-lenga. Agredia, criticava, pegava onde pensava que era o ponto
fraco, mas Marcel – renitente – não percebia, ou fingia fazê-lo, por
comodidade. Certas coisas que as mulheres, mesmo as mais independentes não
suportam que é a indiferença do homem quando sabem que talvez o prazer
intelectual para alguns seja maior do que o sexual, não por falta da libido,
mas por uma questão da própria emancipação desta na ação da mente e do
espírito. Para ele a zona de conforto era a literatura, e muitos preferiam não
tocar no assunto, mesmo que o que nos aproxime seja a realidade cotidiana e cultural
de uma cidade na forma inequívoca de quase reportarmos o que vivemos em um dia,
que seja...
- Marcel, - disse ela, depois de
muito observar os textos – você não acha que colocar as questões desse modo faz
você virar uma página extremamente dura sobre o que você pensa da realidade
cotidiana? Aqui, em outra parte, você cita a necessidade da palavra e ação do
destemor – abhayam, em sânscrito -, como sendo sua plataforma de existência?
Não se exponha, meu caro, você é autobiográfico ou está afundado na ficção do
absurdo sem limites?
- Como queira, Luciana, o livro é
uma obra em aberto. Pense em Felini, a fantasia, o extremo realismo levado ao
absurdo, a beleza dos cenários. Aqui, penso sempre em algo de ensinamento, quem
sou eu, mas algo que leve a uma reflexão a partir do que se escreva, sem a
âncora tão frequente e indispensável a alguns, o dogmatismo.
- Mas, creia-me, esse seu olhar não
tem fundamento lógico a maior parte das vezes...
- A lógica não é necessária na arte.
A quebra do surrealismo de Brèton se dá no sonho, em uma mitologia que não
existe, mesmo no livro O Século das Luzes, de Alejo Carpentier, um grande
escritor latino-americano a lógica existe, mas mesclada com um fôlego narrativo
gigante, a história em si, os detalhes. Quem dera eu tivesse um por cento de um
talento gigantesco como esse, mas certas coisas vão saindo meio no automático,
como um esvaziamento, um fôlego que tenho que acaba no fim do dia e no começo
da noite. Se for útil para um casal que se ame e encontre algumas luzes melhor,
mas ainda creio que ditar uma vivência cotidiana não é muito fácil para a
própria arte da literatura, do jornalismo, da crônica, do ensaio e etc. Não
quero me comparar, apenas sobrevivo porque gosto de escrever, e encontro mais
feedback do que se estivesse falando palavras controladas pelo telefone,
entende?
Luciana aquiesceu, aquietou-se um
pouco, e sabia que ele optara pelo lado mais inofensivo das palavras, e que no
entanto não discorriam sobre todas as ofensas que ele recebia, e que tantos
outros recebem. Pois que me viesse o lado cristão, que eu podia apenas perdoar,
e me arrependia de querer responder à altura. Já era noite e Marcel cansara.
Duas páginas seriam mais do que suficientes para dormir vazio, com o suporte de
um carinho no leito do papel, enquanto se escutava na cidade o regurgitar da
azáfama, a orgia de um sábado noturno...