sábado, 30 de junho de 2018

O QUE SE DIZ DE UMA LETRA?

         Cláudio se portava de modo estranho… Seu nome? Sim, havia em sua barba de indigente algo que não se remetesse a esse nome: talvez um nome clássico, talvez propriedade da nomenclatura de uma “boa” família. Mas era o seu nome, e dizia coisas, e andava de outros modos, e catava lixos que talvez lhe trouxessem algo de comer pela manhã, e pernoitava no frio, à sombra de diuturna esperança. Não, efetivamente não havia emprego, e a mão ferida revelava que trabalhara na semana passada com uma betoneira, e que agora – já – a realidade era a mesma do que nunca soubera que seria. Não, efetivamente não possuiria um lar e, por mais que evitasse a cachaça lhe impunham questões de comportamento simplesmente na prática de escarrar-lhe na face a indiferença profundamente atuante, nos gestos, no olhar de nojo, e que nem negro era, posto branco, mas na igualdade dos enjeitados que fosse, era miserável e não era puro de qualquer raça, posto nem de raça humana, qual, a raça humana: uma semana do trabalho de Deus! E onde Este estaria na sua realidade? Pois sim, andemos, que ele tinha a dizer algo que, de monta, era o sacrário de sua existência, quando encontrava Leandro, este de outra classe, mais abastado, e no entanto, apesar de apolítico, possuidor de sensibilidade. Humano. Disse Cláudio a Leandro:
         - Pois que vejamos só. Se me tenhas como no sábado passado que eu lhe vi, me darias um cigarro, e do fogo, que eu teimo em fumar do tabaco e, veja, que da bebida não sabes, nem saberás!
         - A mim não me importa, posto, que bebas, pois na minha família de um par, de dois, de três pares damos para não sabes o que um dinheiro que nos sobre, sobre cobres que não existem. Sei que não há emprego, grande Cláudio, mas me coloco no seu lugar… - Disse Leandro, com uma ponta renitente das palavras que chegavam em qualquer destino. Não que não soubesse de alguma aproximação. Por estranho que parecesse, Cláudio parecia um Grande Irmão orwelliano às avessas: o olhar, a aproximação inevitável a face da sociedade que todos gostariam de tentar controlar, terminar, um códice de representação que remetia, ao que não era. No entanto, era real e forte. Fruto de sentimento observável, como se Leandro percebesse o sofrimento humano pelos poros… Disse a Cláudio que “o que antes fosse de ti o meu encontro com a vida tão curta que aparentemente temos, meu caro, na verdade é um infinito, como costumo que possa ser infinita certa bondade.”
         - Leandro, veja como a vida nos encerra no mesmo latifúndio cercado onde só o que funciona é o que tem funcionado para gentes como eu. Sempre em uma função derradeira, sempre a suprir faltas, uma carestia insana, o preço da liberdade das ruas é o que se tem como látego incandescente da incompreensão.
         - Preconceito, incompreensão, dá no mesmo. A trilogia: pobreza, raça, loucura… Três máculas criadas, arraigadas, tornando e massificando segregação sem conta. Não sou negro nem pobre, mas o estigma da loucura talvez seja o pior, pois por mais que você tenta provar a tua lucidez, batem com sal grosso na ferida e, das duas uma, quando a fama é boa dá para conviver, mas o isolamento subsiste, mas nos bastamos às vezes pois enfermidade compartida com outras é mais difícil suponho, e andar solitário é por vezes a questão principal da cura. Saber-se da vida solitária, do que veio a mim a religião, quiçá, na opinião dos que se dizem fortes, apanágio dos fracos.
          - Essa é a questão, Leandro, bastemo-nos com nossos diálogos, por vezes entrecortados. Concretamente sei de melhores vidas, na acepção dos padrões usuais, e que saibas que já li muito, e isso me valeu de monta, pois a literatura me deu a história e como as pessoas conviveram com processos de mudanças em suas sociedades, e como na verdade as letras da filosofia ajudam a gente a pensar, e eu não sobreviveria nas ruas se não soubesse como vive a rivalidade que se oferece pungente com seus atrasos e o mesmo preconceito de que falávamos.
         - Pois bem, sigamos firmes então e, veja, aqui no céu os urubus estão atrás de algo, mas sobremaneira convivem bem com as gaivotas. Sigo em companhia destas rochas marinhas e, se você quiser, eu lhe convido, para a direção que desejares ir, a que veja em cada face de uma rocha suas próprias e fortes pernas, pois estas te permitem caminhar, e veja na vastidão do céu que cada nuvem possui uma história recontada pelos ventos, e que as embarcações sempre te revelem que o homem conquistou o saber imantado de flutuar sobre as águas, e que isso é mais antigo do que duzentas gerações atrás e, se não me falha a memória, muito mais do que isso! Boa ventura, grande amigo das ruas…
         - Sigo, Leandro, como bem vier, a que conversemos sempre!!!

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