Qual
não fosse a ideia, mas Adamastor esperava pelo correio, lendo obras,
não propriamente de uma leitura convencional. Cartilhas talvez,
apenas, pois era um cidadão de formação técnica. Exatamente qual
ofício que exercia não era de um padrão corrente, mas sim que
fosse uma espécie de far
tutto. Gostava, aliás,
tinha uma relação quase afetiva com objetos, coisas, máquinas,
computadores, além de ser profundamente curioso com relação à
ciência: sempre a newtoniana. Sempre
havia coisas a chegar via postal, eram
tempos de espera, pois Adamastor chegara à conclusão de que a
internet realmente facilitava a disposição de materiais para seus
estudos. Sempre havia o chamado up grade, como um liquidificador mais
forte ou, na contraparte, um móbile mais descartável. Sua vida
girava com intensidade em torno de peças, soluções e equações
difíceis por vezes, mas que quase sempre resolvia. Casado com Edite,
esta reclamava sempre que um homem tão sábio deveria ter se formado
em alguma faculdade, e não o ofício de prestar serviços, aos quais
nem sempre recebia do merecido. Esta,
formada em letras, lecionava aulas particulares de português a
estudantes e fazia revisões no campo de teses e peças literárias.
Eram ganhos mais fixos, quando seu esposo não conseguia trabalho em
alguns dias mais difíceis.
Surgiam
justamente dias mais temerários, dias em que não se sabia se as
pessoas gostariam de prosseguir estudando, pois Edite – antes –
lecionara em uma escola que posteriormente foi fechada por falta de
verbas e descaso, levando-a a optar por ser autônoma, com os riscos
inerentes em uma sociedade que enfrenta suas crises e dificuldades.
No entanto, o casal se dava muito bem, estavam na casa do quarenta
anos, e se conheceram na entrada de um cinema, quando Adamastor foi
apresentado a ela por um amigo. O filme não dizia muito, era meio
fantástico, com os efeitos em 3D, e a plateia estava infantil, nas
suas reações, no modo como fixadamente seus olhos pousavam curiosos
sobre a grande tela… O casal trocou olhares como se já se
conhecessem, e Edite convidou-o para um café. Saíram antes do filme
terminar, criou-se um idílio amoroso e despertaram juntos em um
hotel do centro da cidade: absortos, apaixonados e esfomeados. Não
haviam trocado muitas palavras, nem juras secretas, apenas
assentiram com o prazer apaixonado, com o fruir de seus corpos, nada
mais que não fosse desse tamanho e, no mês seguinte, já estavam
morando juntos.
Visto
que a convivência desde o primeiro momento foi serena e de
companheirismo mútuo, o casal enfrentava por vezes alguns atritos, mas
por incrível fosse, estes cabiam na palma da mão, e sentiam ambos a
tendência de uma compreensão cada vez maior e mais sólida. Não
eram tempos de muitas flores nos jardins, parecia que os calçamentos
tomavam conta da terra, não bastassem as ruas e as lajes, o asfalto
cotidiano e as ervas raras brotando nos interstícios. Ao que vinha
de qualquer panorama do mundo nos canais convencionais, se fosse
pesado em uma balança de dois pratos, o trágico venceria. Mas os
pratos não possuem nomes, qual fossem os da justiça, e para esses
seria melhor não serem postos à prova. Aquele início de inverno
chegava sempre pela manhã, em um frio metódico, e depois o sol, um
sol sem ozônio. Por essas questões de que o mundo não estava lá
sem alguma cólica era que Adamastor e Edite passavam como um exemplo
de relacionamento… Falar-se de um exemplo, quem sabe, que o fosse
dos dois, apesar de tanto relativizarem esse tipo de tema.
Poder-se-ia dizer que eram uma dama e um cavalheiro, nessa posta mesa
de hipocrisias e desavenças em que muitos se fartam, e um portar-se
bem por vezes é tarefa difícil diante de idiossincrasias e
preconceitos, patrulhamentos ideológicos e julgamentos sem razões
aparentes. Mas a questão era que muitos são totalmente distintos de
cada qual, e a individualidade e suas vivências misturavam-se por
vezes a grupos, a times, ou equações de convivência a que nem
todos possuiriam uma ideia geral, ou um consenso a respeito da
existência de um particular como particular, um espírito e sua
história, anímica propriamente, exponencialmente.
Não
se veria o caso da particular existência do casal o fato de que suas
diferenças em relação à vida, a qualidade e virtude e defeitos
que cada qual encontrasse diante de si, não se veria tanto como se
não fora algo tão natural como o comportamento das conchas, onde
nunca há um espécime igual. A casca é diferente, o molusco é
diferente, obviamente fruto do Darwinismo e sua grandiosa ciência.
Ele encontrou as formas e seu funcionamento. Não chegou a explorar o
desenvolvimento do pensamento humano no correr da história, mas isso
fica a cabo da filosofia. A um ponto científico da ciência,
chega-se ao estudo do cérebro. Mas estamos mais perto dos cônjuges
falando de amor, da compreensão, da revelação espiritual que
ninava o relacionamento de Adamastor e Edite… Posto sendo o
espírito muito maior do que a matéria, veremos a real possibilidade
de um mundo onde uma máquina não precise gerar tanta soberba no que
somos, animados por um piloto que mal conhecemos e que reside dentro
de nós, o pivô mais nobre do rico e do miserável, do feio e do
bonito, do que escolhe e do que rejeita, mas principalmente daquela
inteligência que só existe quando permite que esse espírito
desponte em nossos atos, posto ser uma mera e infinitesimal partícula
de Krishna!
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