domingo, 6 de maio de 2018

OS DIAS MAIORES

           Qual não fosse a ideia, mas Adamastor esperava pelo correio, lendo obras, não propriamente de uma leitura convencional. Cartilhas talvez, apenas, pois era um cidadão de formação técnica. Exatamente qual ofício que exercia não era de um padrão corrente, mas sim que fosse uma espécie de far tutto. Gostava, aliás, tinha uma relação quase afetiva com objetos, coisas, máquinas, computadores, além de ser profundamente curioso com relação à ciência: sempre a newtoniana. Sempre havia coisas a chegar via postal, eram tempos de espera, pois Adamastor chegara à conclusão de que a internet realmente facilitava a disposição de materiais para seus estudos. Sempre havia o chamado up grade, como um liquidificador mais forte ou, na contraparte, um móbile mais descartável. Sua vida girava com intensidade em torno de peças, soluções e equações difíceis por vezes, mas que quase sempre resolvia. Casado com Edite, esta reclamava sempre que um homem tão sábio deveria ter se formado em alguma faculdade, e não o ofício de prestar serviços, aos quais nem sempre recebia do merecido. Esta, formada em letras, lecionava aulas particulares de português a estudantes e fazia revisões no campo de teses e peças literárias. Eram ganhos mais fixos, quando seu esposo não conseguia trabalho em alguns dias mais difíceis.
           Surgiam justamente dias mais temerários, dias em que não se sabia se as pessoas gostariam de prosseguir estudando, pois Edite – antes – lecionara em uma escola que posteriormente foi fechada por falta de verbas e descaso, levando-a a optar por ser autônoma, com os riscos inerentes em uma sociedade que enfrenta suas crises e dificuldades. No entanto, o casal se dava muito bem, estavam na casa do quarenta anos, e se conheceram na entrada de um cinema, quando Adamastor foi apresentado a ela por um amigo. O filme não dizia muito, era meio fantástico, com os efeitos em 3D, e a plateia estava infantil, nas suas reações, no modo como fixadamente seus olhos pousavam curiosos sobre a grande tela… O casal trocou olhares como se já se conhecessem, e Edite convidou-o para um café. Saíram antes do filme terminar, criou-se um idílio amoroso e despertaram juntos em um hotel do centro da cidade: absortos, apaixonados e esfomeados. Não haviam trocado muitas palavras, nem juras secretas, apenas assentiram com o prazer apaixonado, com o fruir de seus corpos, nada mais que não fosse desse tamanho e, no mês seguinte, já estavam morando juntos.
           Visto que a convivência desde o primeiro momento foi serena e de companheirismo mútuo, o casal enfrentava por vezes alguns atritos, mas por incrível fosse, estes cabiam na palma da mão, e sentiam ambos a tendência de uma compreensão cada vez maior e mais sólida. Não eram tempos de muitas flores nos jardins, parecia que os calçamentos tomavam conta da terra, não bastassem as ruas e as lajes, o asfalto cotidiano e as ervas raras brotando nos interstícios. Ao que vinha de qualquer panorama do mundo nos canais convencionais, se fosse pesado em uma balança de dois pratos, o trágico venceria. Mas os pratos não possuem nomes, qual fossem os da justiça, e para esses seria melhor não serem postos à prova. Aquele início de inverno chegava sempre pela manhã, em um frio metódico, e depois o sol, um sol sem ozônio. Por essas questões de que o mundo não estava lá sem alguma cólica era que Adamastor e Edite passavam como um exemplo de relacionamento… Falar-se de um exemplo, quem sabe, que o fosse dos dois, apesar de tanto relativizarem esse tipo de tema. Poder-se-ia dizer que eram uma dama e um cavalheiro, nessa posta mesa de hipocrisias e desavenças em que muitos se fartam, e um portar-se bem por vezes é tarefa difícil diante de idiossincrasias e preconceitos, patrulhamentos ideológicos e julgamentos sem razões aparentes. Mas a questão era que muitos são totalmente distintos de cada qual, e a individualidade e suas vivências misturavam-se por vezes a grupos, a times, ou equações de convivência a que nem todos possuiriam uma ideia geral, ou um consenso a respeito da existência de um particular como particular, um espírito e sua história, anímica propriamente, exponencialmente.
           Não se veria o caso da particular existência do casal o fato de que suas diferenças em relação à vida, a qualidade e virtude e defeitos que cada qual encontrasse diante de si, não se veria tanto como se não fora algo tão natural como o comportamento das conchas, onde nunca há um espécime igual. A casca é diferente, o molusco é diferente, obviamente fruto do Darwinismo e sua grandiosa ciência. Ele encontrou as formas e seu funcionamento. Não chegou a explorar o desenvolvimento do pensamento humano no correr da história, mas isso fica a cabo da filosofia. A um ponto científico da ciência, chega-se ao estudo do cérebro. Mas estamos mais perto dos cônjuges falando de amor, da compreensão, da revelação espiritual que ninava o relacionamento de Adamastor e Edite… Posto sendo o espírito muito maior do que a matéria, veremos a real possibilidade de um mundo onde uma máquina não precise gerar tanta soberba no que somos, animados por um piloto que mal conhecemos e que reside dentro de nós, o pivô mais nobre do rico e do miserável, do feio e do bonito, do que escolhe e do que rejeita, mas principalmente daquela inteligência que só existe quando permite que esse espírito desponte em nossos atos, posto ser uma mera e infinitesimal partícula de Krishna!

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