quinta-feira, 22 de junho de 2017

DIAS FRIOS DO INVERNO

          Acordara, como sempre, com o rescaldo das medicações da noite anterior. Um período de quase duas horas me servia apenas ao sofrimento que sentia nas madrugadas do início da jornada diária. Não havia como reduzir esse necessário sofrimento. As questões de ordem política só me faziam sofrer mais e, como se não bastasse, eu tinha a leve impressão de que as pessoas igualmente se perdiam no vale-tudo de seus interesses egoístas. Não valeria a pena pensar demasiado sobre os problemas do mundo, e eu gostava por vezes da filosofia como um escape, até mesmo hoje gosto de pensar sobre os diversos assuntos das humanidades, da Natureza, etc.
          No entanto, algo que pensei logo de manhã, naqueles dias de inverno, é que teria de mudar um pouco o foco para algo espiritual… Não seria diminuir a abordagem, mas justamente fazer brotar o amor que esquecemos por Krsna, em Narayana que reside como Paramatma em nossos corações. Talvez o passo fosse longo, mas descobri que escrever sobre isso me trazia mais paz em relação à filosofia mundana e especulativa: a Ciência Transcendental seria uma vereda inevitável em minha vida de devoto. Mas, na verdade, um caminho que se trilha quando o acesso é difícil importa que procuremos outros que nos facilitem encontrar o mesmo passo na fonte, mesmo que por lados distintos. É como quando os homens procuram por muito na vida. Cedo ou tarde se perguntarão: quem somos, de onde viemos e para onde vamos… Muitos sabem que isso induz a que não nos conformemos com muita coisa e acabamos por nos refugiar em coisas outras que igualmente não possuem verdade. De qualquer modo não vem ao caso supor análise sobre nossa espécie pensante, argumentativa, racional. Talvez a coisa seja mais gigantesca do que isso, e tal modo de pensar que nos leve adiante, assim acho. Ainda mais hoje nos dias contemporâneos, em que a Natureza mostra os sinais de exaustão nas suas relações com o homem, ditando Ela suas próprias regras em que aquele já não compreende a extensão do fato. Quando pensamos na transcendentalidade, não significa que não tenhamos que agir, mas sim que devemos agir na consciência de Deus, Krsna. Prestar serviço amoroso a Ele, que é a raiz de tudo o que existe, dentro dos três mundos, dentro do manifesto e do imanifesto, na origem de tudo o que foi criado, no respeito sobre todas as criaturas do planeta, um respeito tão grande que havemos de ter quanto o de sabermos de uma vez que todos possuem um atma, uma centelha divina e indivisível, presente até mesmo dentro da menor partícula da matéria. Nada é superior a Krsna, em suas seis opulências: beleza, sabedoria, força, fama, riqueza e conhecimento… Ele é o todo atrativo e se manifesta em inúmeras encarnações, dentro deste e em outros bilhões de planetas, dos materiais e em Vaikuntha, o céu espiritual.
          Sob a égide desses conceitos de existência, na abertura do diálogo necessário sobre a religião, logo cedo eu comecei esse diálogo interno pensando no que está escrito nos Shastras sagrados, estava em mãos com o grande livro Srimad Bhagavatam. É árduo um câmbio tão profundo em nossas idiossincrasias nos alicerçar ao que seja o mundo espiritual. No entanto, estava com meu tambor indiano – mrdanga – e entoei um canto devocional. Isso de manhã me deu força, e parti para arrumar meu quarto, limpar o altar com as deidades, arrumar a sala onde está uma mesa com papéis de estudo, e a cozinha. Mas em uma atitude de serviço devocional… Essa é a prática de ação de consciência e serviço. Essa deve ser a atitude e, a cada instante de dúvida, voltar os olhos para aquilo que nos facilite a vida nesse sentido, sejam eles em direção a uma imagem de Narayana, uma leitura de um verso do Gita, ou mesmo na própria Natureza, que é mãe e divindade Suprema deste nosso Universo. Comecei a reler a literatura védica, e tornei-me “religado” com esse modo de portar-me perante as coisas do mundo, o diálogo que pratico até hoje, mesmo sabendo que todas as inquietações dos homens traçam estranhos destinos dentro de um materialismo e ilusão sem par. Teria tempo como o tenho até hoje, pois mesmo um operário em uma fábrica pode trabalhar nessa consciência, sabendo que seu verdadeiro chefe é Krsna, incontestavelmente.
          Aqueles dias frios lembraram-me de Prabhupada, com sua touca, com sua serenidade, sua bondade sem par, de onde veio o conhecimento para o Ocidente em toda a literatura e simplicidade de mahatma grandioso. Isso me ensinava a ver a realidade com mais transparência, como se toda a parafernália ilusória me fizesse sentido na sua confecção, e me tornara muito crítico… Talvez não fosse de forma pertinente, mas a investigação acurada do que tangencia a ilusão de uma plataforma concreta me seduzisse extremamente. Mas sim, naquelas noites geladas preferia falar de Krsna, este como a força motriz que sempre guia a vida de um devoto, a inexistência da solidão, pois estar frente a Ele mesmo quando vemos uma simples pomba ciscando ao nosso lado, com uma fileira de formigas em trabalho, não nos sentiremos sozinhos, mesmo que a própria sociedade tangencie a vivência cotidiana de um enfermo no ostracismo humano, no uso por vezes político que nos fazem, na consecução sectária que a muitos abate e anula. Isso nos revela a grandeza de sermos quem somos, companheiros de enfermidade, seja qual for aquela outra, ou a mesma que muitos pensam que é o mesmo, quando tecem da covardia de nos estigmatizar.
           Contudo, a felicidade não vem por possuírem, terem algo material, pois sempre se deseja mais e mais, tantos foram os políticos que roubaram de nosso país, do planeta, quantas pessoas extremamente ricas deixaram seus rastros de destruição sobre a Natureza, sobre populações, sobre famílias inteiras? A questão é que o serviço continua sempre, a consciência pode estar com uma pessoa e ninguém saber de seu nível. Em síntese, a felicidade mora ao nosso lado, só temos que investigar a natureza espiritual adormecida. Procurar, buscar, pois Krsna reside dentro de nosso peito e nada poderá ser mais gigante do que Ele, que testemunha nossos atos enquanto desfruta, pois que é o desfrutador Supremo. O mundo é de Deus, somos apenas humildes servidores Dele e não possuímos nada, pois tudo nunca foi de ninguém a não ser desse Ser Supremo! Essa investigação deve ser continuada, e que abramos nosso coração e nossa inteligência para uma vida mais austera, procurando não nos contaminarmos com as ilusões que tão “competentemente” muitos nos enredam, ou tentam...

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