Acordara,
como sempre, com o rescaldo das medicações da noite anterior. Um
período de quase duas horas me servia apenas ao sofrimento que
sentia nas madrugadas do início da jornada diária. Não havia como
reduzir esse necessário sofrimento. As questões de ordem política
só me faziam sofrer mais e, como se não bastasse, eu tinha a leve
impressão de que as pessoas igualmente se perdiam no vale-tudo de
seus interesses egoístas. Não valeria a pena pensar demasiado sobre
os problemas do mundo, e eu gostava por vezes da filosofia como um
escape, até mesmo hoje gosto de pensar sobre os diversos assuntos
das humanidades, da Natureza, etc.
No
entanto, algo que pensei logo de manhã, naqueles dias de inverno, é
que teria de mudar um pouco o foco para algo espiritual… Não seria
diminuir a abordagem, mas justamente fazer brotar o amor que
esquecemos por Krsna, em Narayana que reside como Paramatma em nossos
corações. Talvez o passo fosse longo, mas descobri que escrever
sobre isso me trazia mais paz em relação à filosofia mundana e
especulativa: a Ciência Transcendental seria uma vereda inevitável
em minha vida de devoto. Mas, na verdade, um caminho que se trilha
quando o acesso é difícil importa que procuremos outros que nos
facilitem encontrar o mesmo passo na fonte, mesmo que por lados
distintos. É como quando os homens procuram por muito na vida. Cedo
ou tarde se perguntarão: quem somos, de onde viemos e para onde
vamos… Muitos sabem que isso induz a que não nos conformemos com
muita coisa e acabamos por nos refugiar em coisas outras que
igualmente não possuem verdade. De qualquer modo não vem ao caso
supor análise sobre nossa espécie pensante, argumentativa,
racional. Talvez a coisa seja mais gigantesca do que isso, e tal modo
de pensar que nos leve adiante, assim acho. Ainda mais hoje nos dias
contemporâneos, em que a Natureza mostra os sinais de exaustão nas
suas relações com o homem, ditando Ela suas próprias regras em que
aquele já não compreende a extensão do fato. Quando pensamos na
transcendentalidade, não significa que não tenhamos que agir, mas
sim que devemos agir na consciência de Deus, Krsna. Prestar serviço
amoroso a Ele, que é a raiz de tudo o que existe, dentro dos três
mundos, dentro do manifesto e do imanifesto, na origem de tudo o que
foi criado, no respeito sobre todas as criaturas do planeta, um
respeito tão grande que havemos de ter quanto o de sabermos de uma
vez que todos possuem um atma, uma centelha divina e
indivisível, presente até mesmo dentro da menor partícula da
matéria. Nada é superior a Krsna, em suas seis opulências: beleza,
sabedoria, força, fama, riqueza e conhecimento… Ele é o todo
atrativo e se manifesta em inúmeras encarnações, dentro deste e em
outros bilhões de planetas, dos materiais e em Vaikuntha, o céu
espiritual.
Sob
a égide desses conceitos de existência, na abertura do diálogo
necessário sobre a religião, logo cedo eu comecei esse diálogo
interno pensando no que está escrito nos Shastras sagrados, estava
em mãos com o grande livro Srimad Bhagavatam. É árduo um câmbio
tão profundo em nossas idiossincrasias nos alicerçar ao que seja o
mundo espiritual. No entanto, estava com meu tambor indiano –
mrdanga – e entoei um canto devocional. Isso de manhã me
deu força, e parti para arrumar meu quarto, limpar o altar com as
deidades, arrumar a sala onde está uma mesa com papéis de estudo, e
a cozinha. Mas em uma atitude de serviço devocional… Essa é a
prática de ação de consciência e serviço. Essa deve ser a
atitude e, a cada instante de dúvida, voltar os olhos para aquilo
que nos facilite a vida nesse sentido, sejam eles em direção a uma
imagem de Narayana, uma leitura de um verso do Gita, ou mesmo na
própria Natureza, que é mãe e divindade Suprema deste nosso
Universo. Comecei a reler a literatura védica, e tornei-me
“religado” com esse modo de portar-me perante as coisas do mundo,
o diálogo que pratico até hoje, mesmo sabendo que todas as
inquietações dos homens traçam estranhos destinos dentro de um
materialismo e ilusão sem par. Teria tempo como o tenho até hoje,
pois mesmo um operário em uma fábrica pode trabalhar nessa
consciência, sabendo que seu verdadeiro chefe é Krsna,
incontestavelmente.
Aqueles
dias frios lembraram-me de Prabhupada, com sua touca, com sua
serenidade, sua bondade sem par, de onde veio o conhecimento para o
Ocidente em toda a literatura e simplicidade de mahatma
grandioso. Isso me ensinava a ver a realidade com mais transparência,
como se toda a parafernália ilusória me fizesse sentido na sua
confecção, e me tornara muito crítico… Talvez não fosse de
forma pertinente, mas a investigação acurada do que tangencia a
ilusão de uma plataforma concreta me seduzisse extremamente. Mas
sim, naquelas noites geladas preferia falar de Krsna, este como a
força motriz que sempre guia a vida de um devoto, a inexistência da
solidão, pois estar frente a Ele mesmo quando vemos uma simples
pomba ciscando ao nosso lado, com uma fileira de formigas em
trabalho, não nos sentiremos sozinhos, mesmo que a própria
sociedade tangencie a vivência cotidiana de um enfermo no ostracismo
humano, no uso por vezes político que nos fazem, na consecução
sectária que a muitos abate e anula. Isso nos revela a grandeza de
sermos quem somos, companheiros de enfermidade, seja qual for aquela
outra, ou a mesma que muitos pensam que é o mesmo, quando tecem da
covardia de nos estigmatizar.
Contudo,
a felicidade não vem por possuírem, terem algo material, pois
sempre se deseja mais e mais, tantos foram os políticos que roubaram
de nosso país, do planeta, quantas pessoas extremamente ricas
deixaram seus rastros de destruição sobre a Natureza, sobre
populações, sobre famílias inteiras? A questão é que o serviço
continua sempre, a consciência pode estar com uma pessoa e ninguém
saber de seu nível. Em síntese, a felicidade mora ao nosso lado, só
temos que investigar a natureza espiritual adormecida. Procurar,
buscar, pois Krsna reside dentro de nosso peito e nada poderá ser
mais gigante do que Ele, que testemunha nossos atos enquanto
desfruta, pois que é o desfrutador Supremo. O mundo é de Deus,
somos apenas humildes servidores Dele e não possuímos nada, pois
tudo nunca foi de ninguém a não ser desse Ser Supremo! Essa
investigação deve ser continuada, e que abramos nosso coração e
nossa inteligência para uma vida mais austera, procurando não nos
contaminarmos com as ilusões que tão “competentemente” muitos
nos enredam, ou tentam...
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