terça-feira, 2 de agosto de 2016

A BREVE HISTÓRIA

            Como em algo de narrativa, Adaílton saíra de casa para conversar, quem sabe, com uma alma viva que encontrasse. Passou pela rua, esteve na frente de um bar – ainda fechado – e caminhou em direção à praia, com afã de uma curiosidade em ver o mar, seu status, sua expressão de águas, naqueles ventos algo de um inverno meio indefinido... Na praia via os nichos das rochas, quase ninhos donde podia enxergar, com os olhos já meio cansados de estudos, pesquisas e algo de informática que lhe assombrava sempre seu espírito mais inibido que os demais. Encontrasse com Adele, quem sabe, seria mais simples, ela com suas manias e trejeitos no andar, sua conversa que fluía sem os ensaios tão presentes até aqueles dias, que talvez efetivamente seria melhor encontrá-la. Seu cão apareceu, o cão de Adele, que sempre a acompanhava, e a que Adaílton não sabia bem o nome, pois parecia uma ovelha, em um desgarre proposital, visto o caminhar do cão ser meio temeroso, talvez pelo frio. Fez um carinho no animal, perguntou pela dona deste, meio que falando a si mesmo, como um caráter de se encontrar com o ser... Se fosse dono de algo, mas não via a propriedade na Natureza, pois o que se criou, na sua concepção, não se concebia que tivesse dono, pois a existência até mesmo do plástico remontava os fósseis de milhões de anos, e a terra era mais antiga do que as convenções. Mas esse pensamento era de um pensar, apenas, pois justamente eram as convenções que delimitavam não apenas uma embalagem plástica como as fronteiras em torno do mundo. Eis que do concreto, da matéria, se plasmava um edifício, mas essa mesma matéria era combinação de um muito que já existe, nada que transformasse, afora as ilusões humanas, algo de novo, algo proprietário.
            Adele não aparecia, e seu sentimento por ela se revelava intenso, por saudade, por ausência, por algo que não traduzia, por sim que fosse algo, já era um pouco, quiçá! De sentirmos muito a presença, uma vida, duas, um fogo no olhar, uma serenidade igualmente no espelho esse da alma, um toque do porquê de prosseguirmos em uma vereda diamantina, e assim se perscrutava o mistério da existência, numa concepção algo de quase tríade, de um acorde, de um contraponto melódico. Pois sim que essa mulher o encantasse, pois era verdadeiramente encantadora, de um timbre suave, de uma bondade encantadora, a que o nosso herói não dispusesse muito de si para ela, ela era maior do que sua existência, e o que antes passava a ser um tipo de solidão tornava-se preenchimento, amor, ternura, nem que os fatos fossem do fraterno gesto, de uma relação irmanada. A vida de Adaílton seria mítica? Será que ele não combatia de frente com as convenções, apenas se imaginando algo que não existia? Talvez fosse verdadeiro esse paradoxo existencial... Talvez em suas passadas pelas ruas lembrasse da prática budista da recordação, em que um passo nunca poderia ser o mesmo do anterior, pois não buscava ganhar os metros, mas vivenciar o caminho. E isso poderia destoar, mas a medicina que igualmente o encantava mostrava que a mente seria quase infinita, na sua própria descoberta enquanto ciência. Que fosse, no íntimo, e por que não, se o que gostava era da expressão nem que o fosse no caminhar, no modo sereno em que não se distraía, pois os motores passavam ao seu lado com seus outros projetos: um senão, um porque, um motivo qualquer de estarem todos funcionando, em povoado decente, destarte fossem todos eles assim... Suas questões eram tão íntimas e sobretudo ínfimas no seu pressuposto de ser ou não ativo enquanto homem que, para muitos, que esperavam, que o suportavam, que não o notavam, e era essa a sua plataforma de querer, um não poder o assoberbava, lhe inflava quase uma ponta de ego, de tal modo que parecia ver a poesia quase estancada quando ia às compras, nas suas relações de mercado, mas voltava a si, e a poesia retornava ao seu quadrante, ao seu leito, às suas linhas. Um intervalo de tempo talvez o separasse de um mundo, mas que o mundo não o separava, ele estava imerso, fazendo brotar não a produtividade laboral, mas a arte em si, circunspecta, rejeitada quiçá, mas verdadeira enquanto necessidade intrínseca do ser e do fazer daquela. Sabia que o tempo o segurava em ondas, um tempo relativo, um espaço tempo, a ver, quando via as coisas marinhas, seus seres, os cães e os gatos, um rato na areia, um grupo de formigas, um besouro maravilhosamente rico de cores com as asas em suas carapaças que se abriam, uma erva rente a uma pedra, um caco de vestígio de um vidro humano, uma lavra na obra, um garçon, uma atendente, um gole de café... Isso via, sentia, como uma generosidade de Deus, por saber, mas que o mendicante quebrava, existia, e eram tantos, que pensava em não pensar mais em Adele, na ponta de angústia que naturalmente um homem ou uma mulher sentem ao ver uma carestia, ao ver um sofrimento, seja de quaisquer lados. Como um agente da saúde vê quando um serviço que atende a toda uma população sofre com más administrações ou falta de insumos. O não saber lidar com isso fragmentava o querer mudar, pois não há como saber lidar com certos fatos.
            Mas Adele apontava na praia, estava de rosa como uma pequena rosinha, linda, um pouco fortinha, pois fazia musculação em uma academia e esboçava sua ternura desde sempre, desde então que Adaílton a conhecia. Era uma eterna estudante de gramáticas latinas, e escrevia correntemente o idioma italiano. Professora na Universidade Federal da província, conhecia a cultura de Roma como ninguém, da Roma antiga, da Roma atual, Firenze, Veneza e tantas outras cidades. Mas era brasileira nascida em São Paulo, que abandonara com onze anos, depois do falecimento de seu pai. Gostava de ver o mundo de modo abrangente, cosmopolita, na vanguarda de seu tempo. Tinha parentes que negociavam moda com Milão e, não que ensombrecesse o fato, mas sua família tinha as posses dos mercadores.
            Avistou Adaílton de longe e acenou para ele. Seu cão desceu uma escada que dava para a praia, latindo, e a foi buscar com uma saraivada de latidos, num estrépito bem ruidoso. De qualquer modo, interagiam com as distâncias, com as posições, o cão, o mar, os postes, carros, tudo sempre distinto, como é distinta a vida que se destina para cada qual. Cada quadrante inumerável, cada abóbada celeste, cada espaço infinito, cada pensar: os gestos, um olhar, um encontro, uma passada, um texto qualquer caído no chão, um rótulo, um refrigerante, um carinho... Não importasse, ali era um país, como são tantos os países com suas idiossincrasias, seus modos, seus portares, seu sul, seu norte, as montanhas, os plantios, as feiras e a urbe. Como em uma descrição anacrônica assim nascia o novo do velho, assim uma geração entrava em contato com outra, assim se conheciam os modos da vida de uma comunidade de uma rua ou de um bairro, em começos sinceros quando da intenção de compartir. E assim, nesta pequena história haverá um encontro, e que o leitor teça o seu próprio, a começar consigo mesmo, com seu entorno, que comece a ver o que está ao lado, quiçá, aquele próximo que dista dele, um evento sem rótulos, um caminhar de lembranças, um ausentar-se do litígio, uma força que brote de um bom rumo, um aprumar-se o leme, que o encontro de bem é importante, até para que vejamos com o olhar alheio de uma hipocrisia em que não precisemos que se torne um modus vivendi, pois que se faça a tríade e que nela espelhemos ao próximo que basta um poste que nos distanciamos ou nos aproximamos, a nos termos referências concretas, como a existência de um banco em uma praça nos faz refletir que pode haver algo de descanso, algo de reflexão, algo em se meditar... E lutemos, portanto, a que as cidades possuam cada vez mais parques, pois a rua é lugar comum, público, a uso de quem quer que seja!

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