Tomara
café cedo, por umas cinco e quinze. Haveria muito o que fazer, a
começar por uma pilha de louças. Acordara com um humor
sobressaltado… Havia visto notícias na véspera, um tipo de
puritanismo geral o abateu, como uma ortodoxia religiosa. Mas depois
de acordar, lembrara-se que os governos se sucediam e a liberação
dos costumes era algo cultural, apesar de ser esse puritano que
tantos desprezavam. Mas que não fosse por isso, seu lado puritano
fazia parte de uma fé fervorosa que, vista por outro ângulo, talvez
fosse até algo transformador na existência que não se simplifica,
de tal subjetividade que o espírito impõe no modo de ser de cada
qual. A louça era o fato concreto, depois a sua roupa, teria que
lavá-la, teria que comprar alguns lençóis, sim, os lençóis! Na
verdade, o dia, independente das circunstâncias, começara antes de
uma previsibilidade de maiores descansos, pois dormira às onze…
Não
haveria como exemplificar muito a diversidade de sua vida, pois
Geraldo havia optado por simplificações existenciais, e no entanto
Clarissa já o advertia que viver conforme tempos idos, no viés da
civilização não era bom. E, no entanto, ele advertia a si mesmo
sobre idiossincrasias em que, para um consentimento de se viver em
paz, seguiria a modalidade do conservadorismo, mesmo porque, em
virtude de um status não conservador, seria considerado puritano, e
no status conservador, quiçá bem ajustado. Mas amava Clarissa, que
amava a outro. E a outra que amasse, já houvera, do seu desamor
desaprendera Geraldo a se entregar. Esse negar-se dos inocentes, essa
falta de malícia que pressupunha que ele não pudesse amar como os
mortais, pois quando amava, se entregava demais ao ser amado. Talvez
por isso gostasse tanto dos bichos: um afeto a uma borboleta, uma
atenção a um gatinho, as refeições de seus cãezinhos. Clarissa
gostava de Geraldo, mas o via como um amigo, e nisso chegaram a um
tipo de acordo: ele, casto, ela, liberal.
Geraldo
era muito inteligente e criativo, criava estranhos laços com a
ciência e a literatura, sempre pesquisando, sempre inquieto com as
suas perguntas, e quanto a essa questão era um homem do seu tempo.
Aprendia os idiomas com facilidade e estivera em uma casa de cultura
sino-brasileira para aprender o mandarim, coisa que em questão de um
ano e meio já conseguia rabiscar ideogramas e a cultura chinesa lhe
era extravagante, em toda a sua história de milênios, assim como
gostava de uma religião chamada vaishnavismo, da Índia, uma
religião que adorava a Krishna como mantenedor de uma ordem que a
profusão dos livros e ensinamentos como que enriquecia a vida de
Geraldo: os incensos, o arati, as deidades, o próprio idioma
sânscrito, tudo o embevecia. A própria questão da Inglaterra, dos
EUA, para ele eram nações com fascínio, ou seja, era pudico no
tratar-se, no resguardo da intimidade, mas abria-se ao mundo para o
estudo e as descobertas a ele tão fascinantes… Sua identidade era
como um leque que se abria com todo o conhecimento e gostava
sobremaneira de ler as novelas de suspense como de Agatha Christie e
Georges Simenon. Também gostava de literatura latino americana,
especialmente de literatura brasileira, argentina, chilena, entre
outras. Era aberto ao mundo mas, como sempre, com dificuldades para
se relacionar afetivamente. Os animais não o cansavam, e
estranhamente via um voo de pássaro como algo tão encantador como o
quebrar das ondas do mar, a serenidade ou furor dos ventos e a
sensualidade natural de uma mulher. Por isso diluía seu amor a tudo
da criação: ao ser criado, à possibilidade da ciência em
construir, à intenção bela de uma pincelada, ou ao significado de
um ideograma oriental, e suas distinções.
Quando
perguntado sobre algo ou alguém, não sabia direito o que responder,
pois a relativização do conhecimento, sua dinâmica e realmente a
possibilidade de conhecer bem algo, impossibilitava de ter certeza
sobre certas questões, e estas eram preocupações sobre como ser
sucinto com relação a algo ou a alguém. Não tinha preocupações
de ordem política, pois para ele um homem não necessariamente
deveria ser uma entidade política, um ser político. Preocupava-se
mais com os andamentos da economia, e era estrito nesses termos.
No
mais, Geraldo não se preocupava muito, apenas com relação ao afeto
que sabia ser muito além do que ele mesmo previa… Então, que
preferisse andar de bem com a vida, naqueles tempos onde o calor
intenso nos diz para procurar a sombra e reservar o tempo a algo de
boa monta.
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