sábado, 5 de janeiro de 2019

GERALDO E SUAS PREOCUPAÇÕES


          Tomara café cedo, por umas cinco e quinze. Haveria muito o que fazer, a começar por uma pilha de louças. Acordara com um humor sobressaltado… Havia visto notícias na véspera, um tipo de puritanismo geral o abateu, como uma ortodoxia religiosa. Mas depois de acordar, lembrara-se que os governos se sucediam e a liberação dos costumes era algo cultural, apesar de ser esse puritano que tantos desprezavam. Mas que não fosse por isso, seu lado puritano fazia parte de uma fé fervorosa que, vista por outro ângulo, talvez fosse até algo transformador na existência que não se simplifica, de tal subjetividade que o espírito impõe no modo de ser de cada qual. A louça era o fato concreto, depois a sua roupa, teria que lavá-la, teria que comprar alguns lençóis, sim, os lençóis! Na verdade, o dia, independente das circunstâncias, começara antes de uma previsibilidade de maiores descansos, pois dormira às onze…
          Não haveria como exemplificar muito a diversidade de sua vida, pois Geraldo havia optado por simplificações existenciais, e no entanto Clarissa já o advertia que viver conforme tempos idos, no viés da civilização não era bom. E, no entanto, ele advertia a si mesmo sobre idiossincrasias em que, para um consentimento de se viver em paz, seguiria a modalidade do conservadorismo, mesmo porque, em virtude de um status não conservador, seria considerado puritano, e no status conservador, quiçá bem ajustado. Mas amava Clarissa, que amava a outro. E a outra que amasse, já houvera, do seu desamor desaprendera Geraldo a se entregar. Esse negar-se dos inocentes, essa falta de malícia que pressupunha que ele não pudesse amar como os mortais, pois quando amava, se entregava demais ao ser amado. Talvez por isso gostasse tanto dos bichos: um afeto a uma borboleta, uma atenção a um gatinho, as refeições de seus cãezinhos. Clarissa gostava de Geraldo, mas o via como um amigo, e nisso chegaram a um tipo de acordo: ele, casto, ela, liberal.
          Geraldo era muito inteligente e criativo, criava estranhos laços com a ciência e a literatura, sempre pesquisando, sempre inquieto com as suas perguntas, e quanto a essa questão era um homem do seu tempo. Aprendia os idiomas com facilidade e estivera em uma casa de cultura sino-brasileira para aprender o mandarim, coisa que em questão de um ano e meio já conseguia rabiscar ideogramas e a cultura chinesa lhe era extravagante, em toda a sua história de milênios, assim como gostava de uma religião chamada vaishnavismo, da Índia, uma religião que adorava a Krishna como mantenedor de uma ordem que a profusão dos livros e ensinamentos como que enriquecia a vida de Geraldo: os incensos, o arati, as deidades, o próprio idioma sânscrito, tudo o embevecia. A própria questão da Inglaterra, dos EUA, para ele eram nações com fascínio, ou seja, era pudico no tratar-se, no resguardo da intimidade, mas abria-se ao mundo para o estudo e as descobertas a ele tão fascinantes… Sua identidade era como um leque que se abria com todo o conhecimento e gostava sobremaneira de ler as novelas de suspense como de Agatha Christie e Georges Simenon. Também gostava de literatura latino americana, especialmente de literatura brasileira, argentina, chilena, entre outras. Era aberto ao mundo mas, como sempre, com dificuldades para se relacionar afetivamente. Os animais não o cansavam, e estranhamente via um voo de pássaro como algo tão encantador como o quebrar das ondas do mar, a serenidade ou furor dos ventos e a sensualidade natural de uma mulher. Por isso diluía seu amor a tudo da criação: ao ser criado, à possibilidade da ciência em construir, à intenção bela de uma pincelada, ou ao significado de um ideograma oriental, e suas distinções.
         Quando perguntado sobre algo ou alguém, não sabia direito o que responder, pois a relativização do conhecimento, sua dinâmica e realmente a possibilidade de conhecer bem algo, impossibilitava de ter certeza sobre certas questões, e estas eram preocupações sobre como ser sucinto com relação a algo ou a alguém. Não tinha preocupações de ordem política, pois para ele um homem não necessariamente deveria ser uma entidade política, um ser político. Preocupava-se mais com os andamentos da economia, e era estrito nesses termos.
         No mais, Geraldo não se preocupava muito, apenas com relação ao afeto que sabia ser muito além do que ele mesmo previa… Então, que preferisse andar de bem com a vida, naqueles tempos onde o calor intenso nos diz para procurar a sombra e reservar o tempo a algo de boa monta.

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