quinta-feira, 18 de janeiro de 2018

PEDRO E EMANUELLE

            O dia estava mais do que pálido, com suas tonalidades sombrias, cinzas, a palidez da indiferença, do que parecia ser como outros, mas sim de outras garoas, a chuva fina que deixava um tênue lençol de cetim molhado sobre o asfalto, as gaivotas na praia mais tranquilas e um nada de quase tudo acontecendo no silêncio dos poucos carros, nas pedras do mar em suas posições, nas pequenas e grandes lutas de um povo que encimava suas intenções, um período de votos, de eleições, bem entendido, com as suas faixas, seus cartazes, sua solidão numericamente quase invisível. Um escritor inquieto buscava sua paz nas histórias que recriava de fragmentos, de partes dilaceradas de sua alma, da tristeza infinita que corria em suas veias. Seguia-se o rio das intrigas, não só a ele, mas ao de querer-se, aos negros, aos brancos simpatizantes de causas populares, de saberem em olhares que a solidão não era tão presente como se achava.
Época de mudanças de paradigmas, de revisão de conceitos, de um paralelismo de vidas que não se encontravam em suas veredas, do caminhar-se duro de um homem, da ternura brotada em uma mulher do povo. E Pedro escrevia. Sabia do encontro com sua companheira Emanuelle... Seu parecer, suas duas únicas existências, que o sabia mais ainda em torno das letras.
 Naqueles dias não soubera como trabalhar de outro modo que não fora na escrita. Esperava a mulher com o cansaço de uma noite mal dormida, passando a escrever também de madrugada, em virtude de panoramas meio trágicos em sua vida que passava a crer que esta não mais a pertencia, de tal monta como um escravo em um capitalismo antigo ou contemporâneo em que realmente a vida não pertence ao vivente. Propriedades. Quando reclamavam a ele do sistema, apenas achava fácil afirmarem que tudo estaria errado, e quando lhe falavam de tipos de revolução, por vezes achava que jogavam leite aos porcos. O único caminho para ele era o socialismo, visto ser no socialismo concreto que via germinarem suas letras, pois não era do tipo de escritor que fizesse auto ajudas, ou best-sellers; escrevia por necessidade intrínseca da arte e só assim vivia de sua existência o pivô de suas ideias. Pedro falava em demasia, e Emanuelle sempre o levantava a escrever, dizendo: “meu caro, se lhe faz bem em escrever faça-o, pois o que fará será acrescentar... Não em questão de ser mais um, mas pode ser milhares, ou centenas, ou que leiam dez, talvez sejam suficientes para tanto. Escreva: mestiere...” E não havia como não fazê-lo, pois se sentia como em casa, efetivamente estava em casa, precisando de uma bancada, uma caneta, papel, máquina de escrever ou um tosco processador de texto, recursos ínfimos em que a imaginação não era tão presente como suas histórias pontuadas por um realismo metafísico.
            Já era uma da tarde quando Emanuelle entrou com a sua chave. O apartamento ficava perto do mar, de frente, e as janelas do escritório davam para um muro com grades e tonéis de lixo laranja que Pedro disfarçava tapando com a cortina, mas deixando um respiro para fumar a quem quisesse, pois o seu espaço era organizado, um pouco, assim. Ele e Emanuelle resolveram dormir em quartos separados, porque Pedro de uns tempos até então levantava de madrugada para trabalhar, e ela tinha um sono muito leve. Ele se acostumara com as idas e vindas dela, e passara a sentir com naturalidade íntima e sincera a sua presença, igualmente para ela, como dois bons companheiros. No entanto, um véu pairava sobre os dois. Porém, de um barco duro que eram, ele o casco de ferro e ela as velas enfunadas, porém porque não se dizer que em vez de ferro ambos eram de fibra, de vida. Esse barco não era construído para naufragar. Pequenas tristezas adormeciam no colo das relações e não seria esta a única entre os pares: histórias de desfechos, de quedas por vezes inevitáveis, mas Pedro era uma pedra, além dos cascos, talvez a mesma que os rompe qual montanha de prata dentro do oceano. Não fazia por esperar, pois aqueles tempos não urgiam muito e cartazes eram apontados para o nada, e o nada segurava bandeiras, com seus números, seus candidatos numéricos... A metafísica anacrônica daqueles dias. E ele escrevia nos tonéis do tempo um vinho a ser degustado na mesma safra, que outros tonéis esperavam o crescer do sabor, o fermento leve da uva, de uma uva verde, de outras azuis no sentimento, da parreira de flores na primavera, as parreiras dos olhos de uma mulher quando sabe que fez efetivamente amor, e não um relax plastificado sobre um trem hedonista dentro de um túnel frio e sem pétalas... Por falar em todo o amor que houvesse, dos frutos do amor, da bênção em se amar em sincero, o inverso meio que acontecia no olhar dela:
            - Meu querido, não estou hoje para muita conversa...
            - O que se passa? – Perguntei, titubeante, pois justamente pensava em amor, não em pedras...
            - Acontece que não passou nada no dia. Absolutamente nada, e o tudo continuou me perseguindo de ante véspera, na conversa que tivemos outro dia, em outros termos, eu acho que você abusou naquele artigo, houve ameaça velada...
            - Que merda!?
            - Um cara me falou uma bobagem, e eu tive receio de lhe defender, pois não li tudo o que você escreveu, apenas me disse algumas entrelinhas.
            - Já lhe disse que essa gente só se trata com vermífugo! Não dê ouvidos, pois sabem que se a tocarem verão o fogo eterno. Escrevi o texto “Parafernália”, que versa sobre o mundo, você veja, não o mundo que todos creem satisfeito, bioquimicamente satisfeito, mas o mundo da bioquímica que não satisfaz quando há excessos, me entende? É um texto para a medicina moderna que é maravilhosa em seus aspectos mais essenciais, mas que extrapola quando se trata de biologia beligerante, me entenda bem...
            - Não me pegues nesses assuntos de guerra. Sei que não podemos fugir da realidade, mas prefiro pensar na natureza, que seja, humana, sei lá...
            - Não te preocupes, querida, mas é que não escrevo apenas para gentlemen... Teço por vezes cordões inumeráveis, quando sei o início e o fim deles. É um grande debate. Sei que pode parecer uma utopia, mas creio que uma sociedade se faz com isso, com o debate, não apenas com os formados, mas com a sabedoria popular mesclada, se me entendes, acabar com esse despropósito de ficarmos nos debatendo entre interesses dos ricos, interesses dos pobres, essa luta desigual, sabermos que temos que ser igualitários, ao menos na ideia de um debate solidário entre as gentes...
            - Você, com sua incursão como professor, ainda acredita nessa grande escola, não toma jeito, é um sonhador sem medidas, desculpe mas a vida pede passagem na luta de classes.
            Emanuelle estava furiosa, vi em seus olhos um cristal sólido de inquietude, que não me conformava a tudo, mas a opinião dela era fundamentada: cabalmente, dentro de uma lógica que mostrava uma riqueza devorando tudo, qual dragão, expelindo fogo. Mas a escola não era para ela nem para mim, seria para um conceito de justiça mais amplo, um debate sobre a religião do homem, suas vertentes, sua necessária tolerância. Urgia essa escola, de um mundo em que a guerra como nomenclatura inversa do tolerar fosse mencionada como insanidade, finalmente, no mundo em que o oxigênio começa a faltar, onde a água não se encontra mais tão tratada, onde o chão onde pisamos vira uma fábrica de carne, e os grãos enfrentam dificuldades em surgir de onde surgiam no passado, onde a horta caseira é feita em pneus a uma gente que merece mais terra do que isso, a escola onde brota uma tomada de consciência maravilhosa naquelas populações que sabem que não possuem a ainda fazem brotar o consentimento em prosseguir com a luz em seus peitos, que transcende governos, que vai desde um surfista democrata que salva uma tartaruga, vai de um barco que combate a pesca predatória, vai de uma organização política que deixa estufar a veia da ética em sua estrutura, vai, enfim, da preferência dos homens e mulheres, contudo que isso não torne muito exaustiva a bondade estrita e cabalmente necessária no justo que pretendemos em uma sociedade mais digna. Por isso havia falado de um aspecto de sujidade, o aspecto das armas biológicas. Sabia Emanuelle que dela eu poderia abrir mão se assim ela desejasse mas que, em virtude de circunstâncias maiores, ela criava em seu peito um afeto que eu mesmo não sei se possuía nem se possuo hoje. Mas era a escola sim. Isso crescia, era a minha experiência, sabia não faltar e tinha a certeza de que meus escritos já haviam atravessado fronteiras e ainda por cima estamos a um passo de uma grande revolução tecnológica, quando pensarmos que o que já temos seja usado com mais igualdade, pois não bastaram os teares e a máquina a vapor do século XIX para a apropriação do conhecimento humano, pois a exploração ficou mais latente sobre outros aspectos, mas hoje não há mais como utilizar a apropriação da exploração sem que saibamos que os erros cometidos não e nem jamais vão servir para que não se saiba onde está o trigo, e onde os joios se espalham... Tentava olhar para a minha mulher para que soubesse de algo a mais... Funcionava. Bastava nos olharmos, não importasse quanto tempo teríamos, nem os obstáculos, nem se éramos ativistas ou não. Nos queríamos, e isso bastava. Peguei na mesa uma garrafa de conhaque, servi para mim um trago... Ela consentiu, pois eu já dera mostras em que não abusava mais disso.
            - Meu querido, eu lhe amo, pois se um homem e uma mulher acreditam que podem ajudar a mudar o mundo, este mundo tão cruento, isso pode ser verdade, pois somos do tamanho de nossos sonhos quando sabemos torna-los concretos com os nossos trabalhos, não importando os óbices, não importando as dificuldades, pois saiba que nossas palavras são como um néctar precioso porque brotam de nosso suor, não esqueça jamais, querido, brotam de nossas lutas, saiba sempre disso, homem!
            - Fico sabendo sempre através de nosso amor, sem tropeços, querida... Dê-me mais um gole que fico contente.
            - Não! Basta! Coloque seu pijama e durma quieto em seu sono, pois preciso de você forte para amanhã, não se esqueça disso também... Eu durmo no seu quarto hoje, se você prometer não me importunar, com esse hálito de moleque. Durma, velho, que nos damos, como sempre...
            Aquiesci. Nada era complicado, justo, havia de se descomplicar, de se simplificar. Fui dormir, não sem antes deixar acesas as luzes para as madrugadas dos sonhadores mais algumas linhas de reflexão...

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