Como em algo de narrativa, Adaílton saíra
de casa para conversar, quem sabe, com uma alma viva que encontrasse. Passou
pela rua, esteve na frente de um bar – ainda fechado – e caminhou em direção à
praia, com afã de uma curiosidade em ver o mar, seu status, sua expressão de águas, naqueles ventos algo de um inverno
meio indefinido... Na praia via os nichos das rochas, quase ninhos donde podia
enxergar, com os olhos já meio cansados de estudos, pesquisas e algo de
informática que lhe assombrava sempre seu espírito mais inibido que os demais.
Encontrasse com Adele, quem sabe, seria mais simples, ela com suas manias e
trejeitos no andar, sua conversa que fluía sem os ensaios tão presentes até
aqueles dias, que talvez efetivamente seria melhor encontrá-la. Seu cão
apareceu, o cão de Adele, que sempre a acompanhava, e a que Adaílton não sabia
bem o nome, pois parecia uma ovelha, em um desgarre proposital, visto o
caminhar do cão ser meio temeroso, talvez pelo frio. Fez um carinho no animal,
perguntou pela dona deste, meio que falando a si mesmo, como um caráter de se
encontrar com o ser... Se fosse dono de algo, mas não via a propriedade na
Natureza, pois o que se criou, na sua concepção, não se concebia que tivesse
dono, pois a existência até mesmo do plástico remontava os fósseis de milhões
de anos, e a terra era mais antiga do que as convenções. Mas esse pensamento
era de um pensar, apenas, pois justamente eram as convenções que delimitavam
não apenas uma embalagem plástica como as fronteiras em torno do mundo. Eis que
do concreto, da matéria, se plasmava um edifício, mas essa mesma matéria era
combinação de um muito que já existe, nada que transformasse, afora as ilusões
humanas, algo de novo, algo proprietário.
Adele não aparecia, e seu sentimento
por ela se revelava intenso, por saudade, por ausência, por algo que não
traduzia, por sim que fosse algo, já era um pouco, quiçá! De sentirmos muito a
presença, uma vida, duas, um fogo no olhar, uma serenidade igualmente no
espelho esse da alma, um toque do porquê de prosseguirmos em uma vereda
diamantina, e assim se perscrutava o mistério da existência, numa concepção algo
de quase tríade, de um acorde, de um contraponto melódico. Pois sim que essa
mulher o encantasse, pois era verdadeiramente encantadora, de um timbre suave,
de uma bondade encantadora, a que o nosso herói não dispusesse muito de si para
ela, ela era maior do que sua existência, e o que antes passava a ser um tipo
de solidão tornava-se preenchimento, amor, ternura, nem que os fatos fossem do
fraterno gesto, de uma relação irmanada. A vida de Adaílton seria mítica? Será
que ele não combatia de frente com as convenções, apenas se imaginando algo que
não existia? Talvez fosse verdadeiro esse paradoxo existencial... Talvez em
suas passadas pelas ruas lembrasse da prática budista da recordação, em que um
passo nunca poderia ser o mesmo do anterior, pois não buscava ganhar os metros,
mas vivenciar o caminho. E isso poderia destoar, mas a medicina que igualmente
o encantava mostrava que a mente seria quase infinita, na sua própria
descoberta enquanto ciência. Que fosse, no íntimo, e por que não, se o que
gostava era da expressão nem que o fosse no caminhar, no modo sereno em que não
se distraía, pois os motores passavam ao seu lado com seus outros projetos: um
senão, um porque, um motivo qualquer de estarem todos funcionando, em povoado
decente, destarte fossem todos eles assim... Suas questões eram tão íntimas e
sobretudo ínfimas no seu pressuposto de ser ou não ativo enquanto homem que,
para muitos, que esperavam, que o suportavam, que não o notavam, e era essa a
sua plataforma de querer, um não poder o assoberbava, lhe inflava quase uma
ponta de ego, de tal modo que parecia ver a poesia quase estancada quando ia às
compras, nas suas relações de mercado, mas voltava a si, e a poesia retornava
ao seu quadrante, ao seu leito, às suas linhas. Um intervalo de tempo talvez o
separasse de um mundo, mas que o mundo não o separava, ele estava imerso,
fazendo brotar não a produtividade laboral, mas a arte em si, circunspecta,
rejeitada quiçá, mas verdadeira enquanto necessidade intrínseca do ser e do
fazer daquela. Sabia que o tempo o segurava em ondas, um tempo relativo, um
espaço tempo, a ver, quando via as coisas marinhas, seus seres, os cães e os
gatos, um rato na areia, um grupo de formigas, um besouro maravilhosamente rico
de cores com as asas em suas carapaças que se abriam, uma erva rente a uma
pedra, um caco de vestígio de um vidro humano, uma lavra na obra, um garçon,
uma atendente, um gole de café... Isso via, sentia, como uma generosidade de
Deus, por saber, mas que o mendicante quebrava, existia, e eram tantos, que
pensava em não pensar mais em Adele, na ponta de angústia que naturalmente um
homem ou uma mulher sentem ao ver uma carestia, ao ver um sofrimento, seja de
quaisquer lados. Como um agente da saúde vê quando um serviço que atende a toda
uma população sofre com más administrações ou falta de insumos. O não saber
lidar com isso fragmentava o querer mudar, pois não há como saber lidar com
certos fatos.
Mas Adele apontava na praia, estava
de rosa como uma pequena rosinha, linda, um pouco fortinha, pois fazia
musculação em uma academia e esboçava sua ternura desde sempre, desde então que
Adaílton a conhecia. Era uma eterna estudante de gramáticas latinas, e escrevia
correntemente o idioma italiano. Professora na Universidade Federal da
província, conhecia a cultura de Roma como ninguém, da Roma antiga, da Roma
atual, Firenze, Veneza e tantas outras cidades. Mas era brasileira nascida em
São Paulo, que abandonara com onze anos, depois do falecimento de seu pai.
Gostava de ver o mundo de modo abrangente, cosmopolita, na vanguarda de seu
tempo. Tinha parentes que negociavam moda com Milão e, não que ensombrecesse o
fato, mas sua família tinha as posses dos mercadores.
Avistou Adaílton de longe e acenou
para ele. Seu cão desceu uma escada que dava para a praia, latindo, e a foi
buscar com uma saraivada de latidos, num estrépito bem ruidoso. De qualquer modo,
interagiam com as distâncias, com as posições, o cão, o mar, os postes, carros,
tudo sempre distinto, como é distinta a vida que se destina para cada qual.
Cada quadrante inumerável, cada abóbada celeste, cada espaço infinito, cada
pensar: os gestos, um olhar, um encontro, uma passada, um texto qualquer caído
no chão, um rótulo, um refrigerante, um carinho... Não importasse, ali era um
país, como são tantos os países com suas idiossincrasias, seus modos, seus
portares, seu sul, seu norte, as montanhas, os plantios, as feiras e a urbe.
Como em uma descrição anacrônica assim nascia o novo do velho, assim uma
geração entrava em contato com outra, assim se conheciam os modos da vida de
uma comunidade de uma rua ou de um bairro, em começos sinceros quando da intenção
de compartir. E assim, nesta pequena história haverá um encontro, e que o
leitor teça o seu próprio, a começar consigo mesmo, com seu entorno, que comece
a ver o que está ao lado, quiçá, aquele próximo que dista dele, um evento sem
rótulos, um caminhar de lembranças, um ausentar-se do litígio, uma força que
brote de um bom rumo, um aprumar-se o leme, que o encontro de bem é importante,
até para que vejamos com o olhar alheio de uma hipocrisia em que não precisemos
que se torne um modus vivendi, pois
que se faça a tríade e que nela espelhemos ao próximo que basta um poste que
nos distanciamos ou nos aproximamos, a nos termos referências concretas, como a
existência de um banco em uma praça nos faz refletir que pode haver algo de
descanso, algo de reflexão, algo em se meditar... E lutemos, portanto, a que as
cidades possuam cada vez mais parques, pois a rua é lugar comum, público, a uso
de quem quer que seja!