terça-feira, 12 de abril de 2016

ROTEIRO PARA UM MODO QUALQUER

          Parte-se de um pressuposto em que a paisagem seja nobre. Como é, não saberíamos, nem o diretor, nem o dramaturgo, apenas o varredor de frente ao teatro, em seu movimento quase imperceptível àqueles em que estariam presentes se o roteiro para a peça estivesse concluído. Um roteiro mesmo, talvez não fosse esse o nome, mas um Corcel Andaluz valeria, se já não existisse, mesmo em platôs românicos, onde a frase não caberia em qualquer inquisidor, se houvesse, mas o tempo era outro. Nada disso seria importante, bastaria imaginar qualquer peça, qualquer filme, qualquer ato, e no ato secular o varredor varre tudo o que encontra, com o seu balé surrealista, de outro modo, ou outro, ou aquilo que pensamos do trabalho é algo mecânico e a paisagem torna-se nobre na liberdade, em que a palavra nobre não seja filtrada com a aristocracia, pois outro dono de alguma seita conseguiu galgar essa questão, ou a paisagem torna-se um quadro de Corot, e fica sendo algo maior... Triste, de difícil acesso, de difícil argumentação, mesmo àqueles que se aferram tanto às doutrinas de suas engenharias, medrando em seus solos intelectuais o que apenas serve ao mestiere lavoro. O que se dê ao luxo é do luxo, o que se dê ao varredor passa ao largo, neste nosso incrível roteiro e modal característico. Cultura com preços. Aliás, ninguém é perfeito, a uma peça global tantas são as faxineiras que gostariam de curtir com um príncipe, pelo menos no script das novelas. Não há necessidade, já que se pode comer um hambúrguer na hamburgueria mais próxima, ao preço máximo da carne e do pão! Pois onde se come o pão acaba se comendo a carne, ou meramente tosca é a troca de palavras que, perdoem-me os irascíveis, a semântica se não crê.
          Mas não, o roteiro é de Noé, e sua arca. Um roteiro de vigamentos, de engenharia, de bíblicos ensaios, de um rico figurino, de todo um neón em tecnologia de computação gráfica onde torna-se real um pano de fundo sagrado para algo que dá lugar a outras divagações. Trabalho bonito, diga-se de passagem, apesar de algumas barbas serem mais higiênicas do que os tempos do Mar Vermelho. Há que se estudar... Quem sabe?
          Voltemos ao varredor: este continua, e o teatro está vazio, ao lado de um cinema repleto. Um hidrante calado assombra perto de uma faixa de pedestres na cercania, e um poste dá o tema dos tempos modernos, suas fibras, seus cabos e transformadores: os prédios, igualmente, as antenas, as janelas cerradas para não entrar fuligem, e a cidade quase respira, repito, tempos modernos. O varredor termina o seu trabalho naquele fim de tarde e mediana noite. Sabe de seus filhos, e todos prosseguem trabalhando. Não há mais roteiro, tudo emana de algo, e passa um velho de cinquenta anos, já cansado, já trôpego, e é o próprio roteirista que nunca escreveu além de algumas estrofes inquietas, mas que não sabe da paisagem nobre, pois esta estava em uma foto em um celular que vira em um balcão, um lugar inóspito residente de sua morada do caminhar na cidade. A sua morada é fria, são frios os habitantes, muitos urram no cinema 4D, gozam, riem, saem para os hambúrgueres e a crítica fica indelével a toda a sociedade dos países do Norte em um hemisfério em que, quem é esse velho para tecer alguma crítica? Não quer encrenca. Senta-se, abre um livro, sobre Roma e a história do Duce. Está em italiano, não sabe ler nessa língua. Pesca palavras, e estas não vêm, e passa-se o tempo: tempos modernos, quase contemporâneos. Nessa salada grega nobre se faz a salada. E vê abestalhado a notícia em um jornal em exposição que barcos chegando à Turquia sofrem disparos.
          O varredor fora embora há algum tempo, o roteiro evanesce, o teatro permanece  vazio, e o rugir das feras se ouve dentro de alguns lugares, no trânsito, nas calçadas, mas não cresce, também esvai, permanece estertorando em vozes esparsas, em que uma cidade esquizofrênica não as escuta, apenas algum roteirista que encontrasse no gesto de um pouco de palavras algum sentido de arte, outros oxigênios necessários que o fossem – ilusão – para a Humanidade...

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