sexta-feira, 22 de abril de 2016

JOÃO E PEDRO SEM DISTÂNCIAS

            Na tarde de quinta-feira dissera eu a João que passasse na cidade para comprar tabaco. Não que fosse quase uma ordem, mas ele estava amuado desde domingo, sem saber dizer muito o porquê disso, e achei que uma ida à cidade faria bem. Encontrei-o perto da Praia das Palmeiras, de maus bofes, meio alienado com a vara de pesca. Não trouxera iscas, apenas a intenção e uma caixa com cervejas. Bebemos um pouco, eram três horas, como sempre, as horas em que eu o encontrava – desde sábado – um pouco distinto do velho João... Sua barba conferia mais do que nunca uma gravidade e as mãos nodosas uma dura vida, de quase meio século. Perguntei, depois de abrir a segunda lata:
            - Meu caro, tantos são joãos nesta vida. São tantas as marias, tantos são os nomes, que o nome quase não importa. Você sabe...
            - É muita cobrança, Pedro – ele me disse.
            - Pois sim, seríamos talvez quase evangelistas. Me perdoe a palavra, mas destas mesmas palavras eu gostaria de falar, mas quase não ficamos em toda a nossa guarda, a gente não defende posições, a vida prega peças nas nossas veias.
            - Não, é que eu queria dizer outras coisas. Me perdoem as más línguas, mas os olhos por vezes também são maus... Han, que eu não soubesse, nem mais sei quem sou, me cobram que seja João, do João que estivesse na Bíblia talvez.
            - Sim e não, caro. – Eu supunha de sua inquietude que fosse outra coisa, já que estava tudo meio revirado. Eu estava exausto, mal podia com minhas pernas, e João já estava no bagaço: eu em minha fadiga física, ele mentalmente. As fadigas já se tornavam meio crônicas em muita gente. Sinal dos tempos. Uma crença forte, por vezes anacrônica, ou ilusória, de uma fé mais gratuita. Mas que fosse, era pelo menos algo. De tantos algos como uma polaridade em que se tornava a sociedade, pois os meio termos quase eram suprimidos agora.
            - Mais para não, creio. Não sei o que está escrito, cresci à beira do apocalipse de meu nome. – Se segurava, teimoso, na cadeira, e seus gestos eram agora mais brandos, pois dizia algo sem entrelinhas, e já havia derrubado cinco latas de cerveja, em minha, quiçá, boa companhia... Falei-lhe:
            - Quiçá fosse eu o fundador de algo maior do que qualquer estrutura, João. Ainda assim, seria apenas uma pedra, pois sou um. Porventura escrevesse milhares de páginas, e das boas, ainda seria um. Sou um como é a formiga silenciosa, mais uma do que sou, posto muito menor mas muito mais forte. Se Pedro daquele antigo ergueu a Igreja, foi um bom Papa. O primeiro. Resta sabermos quem é o primeiro de qualquer coisa. De uma coisa pode ser, mas havia outra igreja, havia o tacape indígena sobre um disco solar, reverberando ao seu Deus. Haveriam os negros imantados de coragem, e outros nas barbatanas do Império, que não fora único, mas fora tardio, que todo o império vem tarde, programa-se tarde, no que pretende no agora, que já é tarde, visto história ser antes... Na verdade, irmão, se Isaías cita Emanuel, já era um pouco, mas Cristo e Budha vieram, e consagraram... Talvez Tanigushi saiba muito, para muitos. A epopeia é essa. Os peixes são a realidade. As rochas, uma mulher aberta para o carinho, ou uma Scania na contramão, quando estamos em família subindo uma serra. Se você acredita em algo grande, seja ele filosofia, teoria econômica, política, religião, antropologia, arte, cultura, qualquer algo, tem esteio. Como ao ver um filme em uma tela, vemos um filme em uma tela, disso não precisamos nos lembrar, mas o temos, por vezes. Veja uma notícia trágica com humor, pois não há mais notícia humorosa, por destas incríveis que não se passa... Pense em algo. Seja liberto. No saneamento, está aqui, estamos sobre esse mar, e falta sanear melhor. Sabe porque, meu irmão, os pássaros estão por aqui, onde estão peixes, mas o reflexo dos homens passa por cima até mesmo do mar, e a questão inequívoca é essa: pratiquemos muito, estudemos, trabalhemos, versejemos, apliquemos nossa inteligência e mudemos o que pode ser mudado. Seremos como mais um multiplicado, mais pedras erigidas. Pode ser que você não seja mais João do Apocalipse, talvez seja João da vida. Não temos que esperar, você sabe que nós podemos, pois desse modo reconstruiremos todos os tipos de patrimônio da Terra, seus países e suas culturas: a partir do gesto, a partir do encontro, a partir de um tipo de amor que é muito secreto em nossos imos, em nossas entranhas, e que por vezes não significa apenas o eu te amo na gratuidade de algum interesse...

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