Pois sim, passando as ruas, perto do
mar, há um cavalete nos braços de um pintor que sempre fixa um bom lugar, ao
lado de uma mesa de concreto, onde apoia seus materiais: pintará outro
cavalete, de pedra, a rocha incrustrada, imóvel, quase soberba nas latitudes de
suas texturas. Essas pinturas em seus contrapontos, uma melodia traçando com
outras um harmonia com as tonalidades da dissonância. Seu material, pudera, era
o mesmo espaço que denotava o todo, a preencher vazios, na maravilhosa palheta
de Deus! Do todo preenchido, de suas lacunas nas dúvidas dos profetas, dos
filhos e dos pais, daquilo que existe na arte e apenas nesta: uma manifestação
por vezes tão única quanto um mero gesto, ou a erudição de um mago: ourives,
alquimista, xamã, cacique... Transfundia-se a pintura com cavalete de campo ao
cavalete marinho, a outra forma das rochas, o crescer de um suporte anímico das
marés, as tocas submersas da vida. E o outro ourives em seu disco solar vinha
como em um olhar gigantesco mostrar seu dilúvio de fogo de estrela. Um olhar
que brilha algo maior do que possamos ver, visto ser incandescente na Verdade
da Natureza.
Postou-se Jerome, esse era o nome do
artista. Não que importasse justo um nome, pois era um solitário quixotesco em
suas vivências pelo planeta... Na sua própria condena justa, igualmente em ser
seu próprio Sancho. Quando escrevia sua pintura, sabia de muitas tonalidades –
destas talvez sobrescritas – que dirigiam, ou melhor, ajudavam a descrever suas
pinturas, que a pintura – a se repetir a palavra – descia de seus arabescos
históricos e tomava formas inequívocas na transparência do zelo do artista,
este cuidar sereno que o acompanhava no modo assaz perscrutador de sua
percepção e prática em construir a obra.
No entanto, Jerome não sentia no
modelo algo visível, como uno, em um todo que participava da própria comunhão
da mesma rocha meio cavalete com as ondas que quebravam na sustentação de seu
entendimento. Isso era fato. O mesmo fato de que o artista mesmo, virado um
pouco rocha, sentia igualmente o borbulho da água em suas variantes de escumas
e da maré do carinho, já que o que sustenta nossas veias pode ser o encontro do
mar, ou o que significa apenas qualquer encontro com a força da Natureza. Por
isso talvez São Francisco fora tão grandioso pelo seu próprio modal de
contemplação e comunhão, no respeito e vivência com as coisas naturais e amor
pelos bichos. A impressão que se leva para nossas casas com relação às
santidades é que a não aceitação atual é ditada pelos padrões estanques de
nossa cultura massificada, esta que por vezes é refém de manipulação espúria e
indução perceptiva. No entanto, sempre poderá haver as gentes que preguem a
tolerância entre os próximos, entre Estados, entre nações, ao menos ao se
prever na atitude a consagração do gesto solidário.
Não sempre se observa
circunstancialmente essa realidade, infelizmente, mas haverá quiçá um modo
sensato de civilizadamente conter-se algo do irascível, algo do reptílico,
justamente quando suas causas venham a galope no que se vê do entretenimento
massivo a que muitos são expostos. Ao que uma crítica cabal do que vemos ou
sentimos a arte serve como meio de nos exprimirmos mas, que seja, a fim de que estejamos
conectados a uma consciência superior, e que para isso talvez tenhamos que aceitá-la,
ou pelo menos tentar compreender suas vertentes, a saber que na fruição
desmesurada dos sentidos estaremos apenas mais e mais expostos a paixões
equivocadas ou à ignorância. O ideal é sempre transcendermos o materialismo
excessivo, no sentido de dar ao espírito a ingerência do nosso existir...
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