sábado, 26 de junho de 2021

CLARISSA ENFERMA

 

Era um principiar de outono. A moda era meio cinza, ou eu especulara errado quando via tantos os carros prata passando, ao menos em meu bairro. Florianópolis estava sempre com – agora – um vai e vem de gentes, vivíamos alguns de modo fecundo, e esse húmus existencial eu supunha compartir, mas de rompante não via as ideias, como se o mundo se fechasse em paus. Vi um cidadão em uma padaria que visivelmente estava travado com remédios psiquiátricos. Uma mulher perguntando se tinham doce de goiaba, e aquilo me pareceu estranhamente uma ofensa por tabela. Tantos ofendem que não se sabe como é de verdade. Os olhos do homem pareceram ver o chão com aquela humildade imposta, qual grilhão sobre o estigma que carregam, na face cruenta debruçada sob o preconceito. Na verdade estava eu obcecado com a situação de Clarisse, que dizia ter sido internada, mas eu não sabia do real estado de sua saúde. Sequer sabia se ela estava com alguma enfermidade. Marcamos uma ponte em um café da cidade, já eram duas da tarde, e eu me encontraria com ela às três e meia. Estava já no ônibus, era um feriado, e me dispus a observar melhor o bairro… Se viam menos trabalhadores, e o panorama de dentro do ônibus era como estarmos em um trem, e eu me tocava disso como se vivesse ou tivesse vivido outros tempos. Eu havia perguntado sobre Clarisse a um amigo, e ele me retorna dizendo que ela estava em um momento de sua vida muito delicado e, como ele me conhecia por dar apoio moral a muitos amigos, e me dispunha a conversar com ela, eu, na posição de quase um psicólogo, não apenas diletante como nas vezes de delírios algo saudáveis, como a profundidade em questões religiosas. Pois bem, o ônibus parava no terminal, saí entre a turba. Segui ao Café Society…

A fachada do edifício onde no térreo e no segundo andar funcionava o Café surpreendia pelo fato de ser um tipo de história recontada, exatamente quando preservavam apenas a lâmina da face frontal, em que toda a estrutura do prédio havia sido modificada. Os andares de cima subjacentes haviam sido construídos meio que aplicando os gabaritos antigos da edificação, mantendo o estilo estrutural do antigo prédio, de origem colonial. Isso era algo muito auspicioso em termos da arquitetura, e que dera fizessem o mesmo nas restaurações necessárias ao andamento artístico e patrimonial de toda uma cidade, sem porventura deixar as construções de lado. A cidade crescia e, para tanto, a preservação histórica era de vital importância. Havia pedido um chopp e Clarissa chegava.

Estava vestida de azul, com uma echarpe preta, de renda nas bordas, que mais parecia um traje antigo. Estava linda. Os olhos de um azul turquesa acentuavam o carmim da cosmética dos lábios. No entanto, suas olheiras estavam pronunciadas, e o olhar vertia de uma profundidade quase paradoxal: fixa, e ao mesmo tempo inquieta. Acenei para ela, estava eu em uma mesa do canto. Logo me viu e seus pequenos dentes sorriram para mim. Sentou-se em minha frente, pendurou uma pequena bolsa rosa na cadeira e me olhou, quando de sua inquietação o olhar perdeu um pouco do brilho, talvez quando revelava uma angústia represada. Balbuciou:

- André, faz tempo… - Eu a olhei e sorri. Ela baixou os olhos, estava com um temperamento arredio, e me parecia tentar construir uma muralha de gelo entre nós. A nos consentir, mas eu quebrei-a antes de crescer.

- Não nos importa o tempo… Estás tão linda que me assombro! Parece que justamente o tempo trabalha, não digo que sempre a nosso favor, mas estamos por aqui. Você está bebendo?

- Sim, não houve restrições quanto a isso. Você sabe por onde eu estive?

- Na verdade não… Você está bem, isso eu creio supor… - Ela me olhava profundamente nos meus olhos, como quem perscruta pelo simples fato de querer algo, sem estar realmente querendo, e me dizendo isso com os olhos em uma discreta dissimulação. Me quebrava o olhar de tal modo que por mais inventivo que fosse, eu saía do que estava a dizer, obrigando-me a me expressar de modo mais direto.

Naquelas horas algo breve de alguns minutos sentíamos um afastamento cabal. Parecia-me que estávamos como estranhos e, em virtude das circunstâncias pelas quais passara Clarissa, entendi, com previsibilidade, o que sentimos quando percebemos que nada vai muito bem naquilo que se apresenta, e que tomar um café em um lugar poderia ser muito mais complicado quando temos a romper a barreira do silêncio interno. Nisso de estarmos fechados como conchas, à espera de uma onda maior onde podemos nos mostrar sob as águas quando quebram nos rochedos… Não que tivéssemos que estar compatíveis com tudo, mas uma ressonância seria importante para ao menos harmonizarmos o diálogo. Depois de sorver um chopp com um longo gole, ela levantou-se disse, categórica e titubeante ao mesmo tempo:

- Sabe, André, eu não esperava nada de ninguém onde estava, possuía quatro enfermas de quarto, estou meio comprometida com o que se sabe aonde, mas não tente agora compreender a mulher que deixei de ser por detrás de todo aquele contentamento que você conheceu de mim. Não digo que seja outra, mas não me fale de recuperação, pois se passa comigo saber que da falta dela o mundo está cheio, e não será pontualmente, com um caso aqui e outro ali, que estejamos resolvendo ou curando realmente algo dentro do mundo onde estamos acostumados a viver desde que nascemos. As doenças vêm a galope, saiba, vêm como uma passada de rodo. Fica aquele piso escorregadio que não sabemos se o enxergão vai secar, ou se a água já não estava suja desde muito tempo, desde a fonte! Eu creio que vou caminhando até onde moro agora, e não veja você que temos muito que falar…

Decidi romper aquela muralha existencial que fartamente é construída sobre nosso ego, quando este se apresenta sob qualquer – que seja – estigma latente que passamos por vezes a carregar de modo assaz exaustivo e desnecessário sobre nossos ombros:

- Clarissa, você me poderia dar alguns minutos mais, a não ser que sua casa possua trancas com aviso prévio. Estamos na cidade. Eu vejo cores, não estamos apenas nós, temos até mesmo os objetos. Não vim aqui presumir nada, apenas desejei ver você como desejaria ver a mim mesmo, até mesmo assim porque não tenho certeza do que encontro quando estou apenas em minha própria companhia. Sei que passou bocados, apenas não me interessa muito saber de onde vieram esses sofrimentos, pois desejo que tenhamos ao menos daqui para diante dias melhores: eu, você, e a sociedade em que vivemos. Se não for tal ou qual assim, que prossigamos aqui, acolá, em qualquer lugar, mesmo de onde emanam dificuldades, se é que você entende o fato de estarmos aqui… Na verdade talvez estejamos dentro da mesma situação, os dois, sentados aqui em uma cafeteria, bebendo ainda nossos chopps de boa água, naturalmente. Creio que as notícias que correm como gatos assustados revelam justamente que são os próprios gatunos, e não propriamente as notícias. Creia-me, tudo reverbera em nosso mundo, o sofrimento quando sabemos administrá-lo ou em nossas faltas com nossas responsabilidades, somos seres que subimos um degrau ou outro, por vezes descemos toda a escada, mas há atalhos, não são apenas caminhos enferrujados pela insânia. No nosso aspecto mais fundamental, mais de raiz, creio que estejamos em um grande navio, em um oceano rápido, que por vezes leva em uma corrente o navio sem motor, e que apenas as velas da razão podem, ao prumo.

- Você pode estar certo, André, mas continuo meio solitária, por convicção imediatista em que estou… - Falava decidida, pois não há no diálogo entre um homem e uma mulher a verdade ausente de erros, pois estamos a respirar o mesmo ar em que os pássaros traçam seus rumos, em que o mar forma suas ondas, em que a chuva dança ao seu ritmo, ao que nos pareça finalmente que há ventos patológicos, mas nada em que um encontro por vezes a um mesmo de cada faz ressurgir uma esperança que vem na latência de intuir a empatia natural entre os seres.

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