terça-feira, 25 de outubro de 2016

A DISFUNÇÃO

            Ricardo acordara cedo, em torno das cinco horas. Teria um encontro, algo muito superficial, pelo que pode entender. O sofrimento psíquico dos remédios da manhã partia para seguir seus passos, mas estava em liberdade, pois o hospital havia sido duro... No entanto saíra bem desses contratempos, pois graças a não saber, quiçá a algo qualquer, possuía um espírito forte, focado, o que conferia vantagem em inteligência. Gostava de estudar: sua principal mania. Estivera na Igreja ontem, mas saíra antes da comunhão e um livro de Boff à noite lhe apascentou os ânimos, tal a riqueza do grande teólogo, um grande investimento, como considerava seus livros, seus papéis, o modo do desenho: outra mania. Não descartava a possibilidade de estar com gente sincera, mas os tempos de revolução tecnológica atalhavam um pouco essa possibilidade, já que o ego se tornara a principal moeda de troca do sistema globalizante, e os aparelhos celulares já eram mais do que uma muleta existencial, passando a ser uma própria extensão do corpo. O curioso é que muitos sequer se situavam nos conceitos de crítica ou mesmo de consciência desse paradigma, no que vinha a ser uma sociedade de botões e cabos, quase um paradoxo de sistemas que se entrelaçavam, e que eram citados em todos os tipos de serviço que dependessem exclusivamente das conexões digitais. Bancos de dados eram utilizados para negócios, por vezes escusos, dentro da miríade sem fronteiras dos interesses transnacionais. O mundo nesse sentido tornava-se pequeno, e a rua passava a ser uma incógnita, tais eram as eclosões dos condomínios fechados, e suas academias silentes no processo, o que tornava o espaço externo mero ente desconhecido.
            Gabriela marcara com Ricardo um encontro em um lugar para onde seu GPS apontasse, no que estivessem mais perto um do outro, dentro da visão algo neutra e sua, particular. Não que Ricardo tivesse ilusões a respeito do encontro, mas que se bastasse a companhia humana, era o certo apenas em seus predicados. Gostaria de poder falar bastante, mas a expressão livre possuía seus óbices. Por isso escrevia, gostava de dizer algo a si mesmo, que fosse, e a sua audiência partilhava das revisões raras dos escritos, por alto, como quem preza por um rebatimento necessário. Nisso de encontros, Gabriela não sabia como estava Ricardo, posto há tempos que não se viam, e usaram da máquina para tal, o que talvez já conferisse, dentro do idealismo central de ego dos gadgets, a dificuldade de encaixar – já de ante mão – uma relação franca e verdadeira entre os dois, posto não valesse erros, posto a máquina os ocultar. Esse estranho modo de se comportarem os encontros encerravam as paródias dos mesmos desfechos tão comuns à época, de se desligarem um ao outro como quem aperta um botão desativando comunicações, nas fronteiras de uma não tolerância, mesmo sabendo que fosse ausente esta quase sempre, no encaixe sistêmico de possíveis outras conexões substitutivas.
            Não haveria mitos na filosofia dos tempos, pois o que se esperava de uma veia em texto já sentia a sincronização de uma lógica, na relação linguística entre os povos e seres do planeta, cabendo a interpretações perscrutadoras o próprio modal dos sentimentos do tempo. Que tempo? O novo milênio... Com toda a sua parafernália. O lugar de nossa cena? Brasil, o grande coração das Américas. Com tudo o que se pensasse do povo brasileiro, a forma de sobreviver uma consciência desperta despejava contêineres de pérolas a uma ignorância em que se tornava a ingerência do Governo no modal da educação, nas questões da intelectualidade que não alcançava o povo, os pensamentos que muitos – sem sequer ler – acreditavam que já se haviam dito. Isso talvez fosse o panorama algo obsoleto em se dizer, mas que traçava, antes de qualquer posição, fosse moral, política ou de ideias os planos existenciais inquietos daquele tempo, o nosso tempo, o tempo nada etéreo, pelo contrário, um tempo algo cáustico. Saberiam se portar os litigantes do novo milênio, ou ensaiariam novas tragédias para consolidar um caudal de ditames de algo não muito salutar? Podemos crer que algo não é positivo para a humanidade, mas devemos sempre abraçar realisticamente a situação em que nos encontramos e por onde segue a civilização contemporânea, onde até mesmo a água nos é assaz preciosa, e pode vir a faltar em muitos lugares se continuarem com a mesma postura de descaso em relação aos rios e aquíferos, por exemplos de firmeza paradoxal, onde podem vir a ocorrer no planeta desfechos trágicos, desde onde se houvera a devastação crônica empenhada e renitente no correr de todos os tempos. Ainda não coubera à consciência do sapiens sapiens que todos esses problemas possuíam equações com soluções óbvias, mas batiam de frente com empecilhos fortes tão grandes como as especulações sem conta. A questão era mais ampla, mas seu reducionismo sempre tornaria tudo mais fácil, pois o emprego de atitudes mais renováveis em seus diálogos seriam as respostas que gostamos de escutar e ver realizadas nas civilizações que são respeitadas por líderes que fazem de uma democracia algo em que possamos confiar...

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