Era
um principiar de outono. A moda era meio cinza, ou eu especulara
errado quando via tantos os carros prata passando, ao menos em meu
bairro. Florianópolis estava sempre com – agora – um vai e vem
de gentes, vivíamos alguns de modo fecundo, e esse húmus
existencial eu supunha compartir, mas de rompante não via as ideias,
como se o mundo se fechasse em paus. Vi um cidadão em uma padaria
que visivelmente estava travado com remédios psiquiátricos. Uma
mulher perguntando se tinham doce de goiaba, e aquilo me pareceu
estranhamente uma ofensa por tabela. Tantos ofendem que não se sabe
como é de verdade. Os olhos do homem pareceram ver o chão com
aquela humildade imposta, qual grilhão sobre o estigma que carregam,
na face cruenta debruçada sob o preconceito. Na verdade estava eu
obcecado com a situação de Clarisse, que dizia ter sido internada,
mas eu não sabia do real estado de sua saúde. Sequer sabia se ela
estava com alguma enfermidade. Marcamos uma ponte em um café da
cidade, já eram duas da tarde, e eu me encontraria com ela às três
e meia. Estava já no ônibus, era um feriado, e me dispus a observar
melhor o bairro… Se viam menos trabalhadores, e o panorama de
dentro do ônibus era como estarmos em um trem, e eu me tocava disso
como se vivesse ou tivesse vivido outros tempos. Eu havia perguntado
sobre Clarisse a um amigo, e ele me retorna dizendo que ela estava em
um momento de sua vida muito delicado e, como ele me conhecia por dar
apoio moral a muitos amigos, e me dispunha a conversar com ela, eu,
na posição de quase um psicólogo, não apenas diletante como nas
vezes de delírios algo saudáveis, como a profundidade em questões
religiosas. Pois bem, o ônibus parava no terminal, saí entre a
turba. Segui ao Café Society…
A
fachada do edifício onde no térreo e no segundo andar funcionava o
Café surpreendia pelo fato de ser um tipo de história recontada,
exatamente quando preservavam apenas a lâmina da face frontal, em
que toda a estrutura do prédio havia sido modificada. Os andares de
cima subjacentes haviam sido construídos meio que aplicando os
gabaritos antigos da edificação, mantendo o estilo estrutural do
antigo prédio, de origem colonial. Isso era algo muito auspicioso em
termos da arquitetura, e que dera fizessem o mesmo nas restaurações
necessárias ao andamento artístico e patrimonial de toda uma
cidade, sem porventura deixar as construções de lado. A cidade
crescia e, para tanto, a preservação histórica era de vital
importância. Havia pedido um chopp e Clarissa chegava.
Estava
vestida de azul, com uma echarpe preta, de renda nas bordas, que mais
parecia um traje antigo. Estava linda. Os olhos de um azul turquesa
acentuavam o carmim da cosmética dos lábios. No entanto, suas
olheiras estavam pronunciadas, e o olhar vertia de uma profundidade
quase paradoxal: fixa, e ao mesmo tempo inquieta. Acenei para ela,
estava eu em uma mesa do canto. Logo me viu e seus pequenos dentes
sorriram para mim. Sentou-se em minha frente, pendurou uma pequena
bolsa rosa na cadeira e me olhou, quando de sua inquietação o olhar
perdeu um pouco do brilho, talvez quando revelava uma angústia
represada. Balbuciou:
-
André, faz tempo… - Eu a olhei e sorri. Ela baixou os olhos,
estava com um temperamento arredio, e me parecia tentar construir uma
muralha de gelo entre nós. A nos consentir, mas eu quebrei-a antes
de crescer.
-
Não nos importa o tempo… Estás tão linda que me assombro! Parece
que justamente o tempo trabalha, não digo que sempre a nosso favor,
mas estamos por aqui. Você está bebendo?
-
Sim, não houve restrições quanto a isso. Você sabe por onde eu
estive?
-
Na verdade não… Você está bem, isso eu creio supor… - Ela me
olhava profundamente nos meus olhos, como quem perscruta pelo simples
fato de querer algo, sem estar realmente querendo, e me dizendo isso
com os olhos em uma discreta dissimulação. Me quebrava o olhar de
tal modo que por mais inventivo que fosse, eu saía do que estava a
dizer, obrigando-me a me expressar de modo mais direto.
Naquelas horas algo breve de alguns minutos sentíamos um
afastamento cabal. Parecia-me que estávamos como estranhos e, em
virtude das circunstâncias pelas quais passara Clarissa, entendi,
com previsibilidade, o que sentimos quando percebemos que nada vai
muito bem naquilo que se apresenta, e que tomar um café em um lugar
poderia ser muito mais complicado quando temos a romper a barreira do
silêncio interno. Nisso de estarmos fechados como conchas, à espera
de uma onda maior onde podemos nos mostrar sob as águas quando
quebram nos rochedos… Não que tivéssemos que estar compatíveis
com tudo, mas uma ressonância seria importante para ao menos
harmonizarmos o diálogo. Depois de sorver um chopp com um longo
gole, ela levantou-se disse, categórica e titubeante ao mesmo tempo:
- Sabe, André, eu não esperava nada de ninguém onde estava,
possuía quatro enfermas de quarto, estou meio comprometida com o que
se sabe aonde, mas não tente agora compreender a mulher que deixei
de ser por detrás de todo aquele contentamento que você conheceu de
mim. Não digo que seja outra, mas não me fale de recuperação,
pois se passa comigo saber que da falta dela o mundo está cheio, e
não será pontualmente, com um caso aqui e outro ali, que estejamos
resolvendo ou curando realmente algo dentro do mundo onde estamos
acostumados a viver desde que nascemos. As doenças vêm a galope,
saiba, vêm como uma passada de rodo. Fica aquele piso escorregadio
que não sabemos se o enxergão vai secar, ou se a água já não
estava suja desde muito tempo, desde a fonte! Eu creio que vou
caminhando até onde moro agora, e não veja você que temos muito
que falar…
Decidi romper aquela muralha existencial que fartamente é
construída sobre nosso ego, quando este se apresenta sob qualquer –
que seja – estigma latente que passamos por vezes a carregar de
modo assaz exaustivo e desnecessário sobre nossos ombros:
- Clarissa, você me poderia dar alguns minutos mais, a não ser que
sua casa possua trancas com aviso prévio. Estamos na cidade. Eu vejo
cores, não estamos apenas nós, temos até mesmo os objetos. Não
vim aqui presumir nada, apenas desejei ver você como desejaria ver a
mim mesmo, até mesmo assim porque não tenho certeza do que encontro
quando estou apenas em minha própria companhia. Sei que passou
bocados, apenas não me interessa muito saber de onde vieram esses
sofrimentos, pois desejo que tenhamos ao menos daqui para diante dias
melhores: eu, você, e a sociedade em que vivemos. Se não for tal ou
qual assim, que prossigamos aqui, acolá, em qualquer lugar, mesmo de
onde emanam dificuldades, se é que você entende o fato de estarmos
aqui… Na verdade talvez estejamos dentro da mesma situação, os
dois, sentados aqui em uma cafeteria, bebendo ainda nossos chopps de
boa água, naturalmente. Creio que as notícias que correm como gatos
assustados revelam justamente que são os próprios gatunos, e não
propriamente as notícias. Creia-me, tudo reverbera em nosso mundo, o
sofrimento quando sabemos administrá-lo ou em nossas faltas com
nossas responsabilidades, somos seres que subimos um degrau ou outro,
por vezes descemos toda a escada, mas há atalhos, não são apenas
caminhos enferrujados pela insânia. No nosso aspecto mais
fundamental, mais de raiz, creio que estejamos em um grande navio, em
um oceano rápido, que por vezes leva em uma corrente o navio sem
motor, e que apenas as velas da razão podem, ao prumo.
- Você pode estar certo, André, mas continuo meio solitária, por
convicção imediatista em que estou… - Falava decidida, pois não
há no diálogo entre um homem e uma mulher a verdade ausente de
erros, pois estamos a respirar o mesmo ar em que os pássaros traçam
seus rumos, em que o mar forma suas ondas, em que a chuva dança ao
seu ritmo, ao que nos pareça finalmente que há ventos patológicos,
mas nada em que um encontro por vezes a um mesmo de cada faz
ressurgir uma esperança que vem na latência de intuir a empatia
natural entre os seres.