sábado, 20 de fevereiro de 2016

UM DIA QUE FOSSE

         Que tantas Marianas fossem naquelas tardes de verão... Não saberia muito José, pois seu coração abarcava apenas um tanto de amores: uma rosa fincada em um pequeno jardim na costa daquela praia prometendo ser planta, mas apenas uma lembrança, de murchar, de não construir muito. Um punhado de areia que lembrasse algo de Médio Oriente, o barco silencioso que buscava algo entre as pedras, o suposto romantismo já quase não existente, o apelo ou mais de se crer que houvesse, sem as malhas, sem as tramas, com a rede de nylon, que fosse, sem tecedores mais complexos. José nunca saberia, pois a traição o sabia mais de seu repertório algo tosco, e que escreveria ao longo de suas décadas seu ofício de relojoeiro. Nas minúcias de seus tempos, no recrudescimento atávico de suas horas, em segundo incontáveis, no trato com a mecânica, naqueles tempos que evanesciam auroras sem nunca começarem dias, estas.
O ofício não o largava de um sem tempo, e a corrida sem esse mesmo tempo era de uma nobreza sem par, de ser nobre ao optar pelos pobres... Essa nobreza de cunho quase religioso, ao que o chamassem de louco por ser dádiva a sua vida, e para ele significava justamente isso: a dádiva, propriamente, e a própria loucura que já fazia a sua parte de existir, em que não haveria mais companheiras em sua vida, a querer, que se não bastasse já não queria José, estava livre, de uma liberdade diamantina, que preservaria cada nicho, cada seixo de seus jardins, com a familiaridade nas rochas do mar, ao que as pedras seriam das pedras. Nunca com muito conforto, e fumando seus cigarros sem saber que a vida era quase um palco que girava em falso, os atores se sucedendo, uns com esperanças pétreas dos saberes, outros que não procuravam saber, e dos contatos quase saberiam de esperanças de se falsamente ter alguém, naqueles tempos em que produzir a carne era quase de uma indústria absurda...
         Esse era seu próprio absurdo, e Mariana já havia escolhido dos seus, não propriamente que gostasse, mas José era louco. Assim, da loucura, em que suas vestes denotavam algo de behaviorismo arcaico, do ser autêntico enquanto excêntrico, de fazer de sua vida algo mais do que a arte em viver, posto a vida ela mesma não o esperava em qualquer lugar, mas a sua condição o esperava em cada manhã, em cada genuflexão de sofrimento, ao que outros não saberiam, posto o carnaval daquele fevereiro ter sido tão pungente que outros mares haviam cavado costões durante os milênios daqueles mesmos carnavais de outrora, e o significado disso remontasse uma festa em que as multidões se refestelavam do que era muito, mas a José seria menos que o mínimo, posto dormir às dez, quando de noite imediatamente anterior naquela quinta-feira, cometera o pecado de conversar quase até as onze com uma amiga. Não que as tivesse muitas, mas compreendia ao menos que o ser é mais que o nada, e não importava a ele qual era o ser, pois no nada consertava seus relógios, que de relojoaria fosse para ele o discurso de outros relógios, quiçá mais inteligentes, quiçá os melhores tecnologicamente, quiçá de baterias igualmente inteligentes, e o GPS, que José nem imaginava... Outras as horas em que o caudal tecnológico da era embromaria o tempo tão cáustico de querer pertencer a ele inequivocamente com o sal algo amargo da tentativa.
Mariana era uma amiga silenciosa por vezes, mas carregava em si uma grande, extensa existência na idiossincrasia que a José parecia um não encaixe, uma não arquitetura, um grande martelo que quebraria sua coluna erigida há muito, posto uma horizontalidade na atitude que lembrava um excesso de altruísmo, um orgulho de ego cristalizado, uma forma inequívoca de se amar demais, além da conta necessária. Não que se fosse proposta limitação, mas que o amor sempre é melhor quando compartido, ao menos. Quem seria apto a um tipo de censor, ou a um senso que fosse, quase nada a ver com tudo isso de se crer que o amor se construiria, posto naquela era uma semântica discreta com redomas de cristal e chumbo, entrelaçados com menos terra e mais aço, posto que o tijolo sempre falara mais alto aos obreiros, quando se ergue uma casa no perfil maravilhoso de ser mais uma vivenda...
         A redoma dos sentimentos de José não era muito extensa à visão, mas era o céu no que se pretendesse em uma grande cidade menor, à vista do sky line, e do litoral, o infinito do mar e suas montanhas, das rochas, se tornando maior na extensão própria que gostava ele, adorava, era de sua escolha. Certamente um pouco maior do que a tela de um display comandado pelas redes. Mas que abraçassem a cada qual, cada um era da extensão de seu abraço. Nada parecido de mais brutal era a assertiva de muitos em que criam que a vida era encerrada em um quadrado, mas que este nunca revelava realmente a distância entre o usuário e o que havia do outro lado: se era peça, se era peão, se era o rei ou a rainha. Pois se fossem o toque e o sexo era feito com os botões e suas promessas, a cada homem ou mulher, a cada palavra, a cada emoticon. Sanders Peirce acertara em cheio, pois a lógica transmutava-se em semiótica, no entanto reerguia-se aquela soberana, usando como alfombra as lições de imposição, os tratados finais, as derradeiras conclusões científicas.
Tratava-se da Natureza que rompia o rumor da interpretação dos ícones e índices, e os símbolos perdiam-se frente aos desastres. A cada galho rompido gritava a Natureza, a cada óleo vazado esta recrudescia o degelo, a cada bomba lançada mostrava as cicatrizes de geadas profundas no campo, a cada orgia decadente ela mostrava o seu perfil inquieto de deusa: a própria Kali, acentuada! Assim seria um mundo onde não adiantaria mostrar uma obra de arte, pois que esta sofria atentados igualmente, à socapa, aos golpes, à covardia do significado dos atos, da tradução de palavras. A arte já havia com equipes treinadas, os que despejavam matrizes quânticas sequer ignoravam que o corpo que tergiversa com as cordas mal sabe da terra, e muitas vezes é o inseto que a lavra, à sua maneira, sem quantificar.
O amor era jogado com jogos de morte, onde quem mata encontra a consagração de saber fazê-lo, pois o trauma que não sente ao tirar uma vida o faz herói, amparado em um testamento assaz antigo, que alicerça a guerra, que faz da diásporas de vinganças que afirmam históricas justifiquem os muros e a brutalidade. O mal se consubstancia baseado em escrituras, fazendo-se pequenas hecatombes diárias, onde a vida passa a ser banalizada como um abate cruento. Desse modo era um dia que fosse um dia, e um beijo seria raro, mas tão raro que desse para não se espelhar em uma novela, em um interesse de finanças tardias e ignorantes, e um aspecto de um louco condenado, como a um escravo que é visitado pela mulher adúltera, como um preso que defeca em um saco plástico e o joga além da sua cela, através do respiro de um pequeno quadrado. Seria bom não pensar, mas nada seria tão brutal como um século que haveria por definir a paz, por regrar os dias melhores, não para um combate insano por um nada, um jogo de poderes, um excesso de zelo em primar pela hipocrisia, um sonho abortado. Estas deveriam ser palavras, quando contestamos, quiçá, um próprio respiro que tenhamos esperanças, pois que o mundo se transmuta, há lugares onde nem todo o juízo final é aplicado cirurgicamente por estudiosos desse status, onde se possa falar da Paz, e que esta venha revisitando sua irmã Natureza. Duas entidades lindas, que podem ser moléculas que nos cercam para nos beijar com suas pétalas de flores, fazendo-nos esquecer daquelas de chumbo ou urânio.
São essas gentes que não precisem se arrastar por trincheiras, não precisam se cercar pela vontade de um tirano, que possam eleger um homem mais democrata, que não se ressintam tanto, meu Deus, se as suas vontades de aquisição não forem acertadas pelos seus ganhos, se os ganhos superlativos de muitos que queimam navios de óleo fossem repartidos com as tentativas de equacionar melhor os problemas do planeta.
Essas queimas que nos tornam expressos de outros quinhões, em que não participamos, a não ser em nossas corporações gigantescas, em cartéis que não ajudam a reduzir danos, mas os causam, das químicas dantescas que tornam lentas as recuperações das humanidades. Falemos assim, por suposto, que estejamos cientes que tudo é fruto do ser humano, das farsas e tudo o mais, que um quando se retrai pode ser por covardia ou mesmo antes porque conhece a natureza de um molusco e aprendeu com ele. Talvez voe em outras horas, e talvez aprenda bem mais com tudo, do que o que não se retrai e parte para a invectiva, a investida, a covardia, esta sim, covarde, pois guarda no poder a sua pretensa razão, mesmo quando do injusto, o que capitula a própria noção do sensato proceder.
Pensemos muito antes de muitas investidas, pois que não nos tornemos piores do que não sabemos que seríamos, assim quando, se faz em horas de trevas. Nessas defensivas de outros dias, o que nos espera, se muitos querem fazer crer abertamente que treinarem submissamente nas suas próprias fobias ilusórias e no entanto contagiantes, os farão classicamente mais preparados, o que vem a despreparar por vezes a importantíssima tolerância, esta uma faculdade que encerra em si mesma grandes luzes existenciais.
         Era um dia largado, que fosse, e Mariana revolvia muito o coração de José, que este se supunha encharcado de uma verdade, de – aliás – quase toda a verdade que podia supor, dentro de seu pobre consentimento, que se aparvalhava, e ela como cimento forte, amalgamando, quebrando seus tijolos, em que aquele esperava amálgama, mas encontrava a frieza do concreto.
Não mais resolvera esperar algo, pois, por um dia que fosse, talvez pensasse em dormir mais tarde, um dia, talvez roçar suas pernas, num bamboleio, nas pernas dela, que gostaria, que havia sonhado, que pecara em lembranças, que quisera tomar voto de sanyasi. Não bastasse isso, que apenas sorria, pois o seu sorriso era de ofício: seu modal, seu lócus. Encontrava Mariana sempre a projetar seus cabelos para uma frente sem muitos espaços, uma franja, meio moicana, meio indígena, com fitas que desciam aos ombros fartos, as roupas de um cobre, de um laranja ao musgo nos detalhes que sobressaíam, outras vezes como que em um luto, com tranças ruivas queimando a coloração mais discreta: os terras, os sienas, a floresta. Maria e Ana, mãe e avó do Cristo, duplamente Mariana, e a José o nome era sua paixão...

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