sexta-feira, 5 de fevereiro de 2016

PANO DE FUNDO

            Alice se encontrara com Marcelo naquela sexta-feira, no endereço que haviam combinado. Punha-se um pouco de resguardo, mesmo que soubesse que o havia conhecido pelo celular. Era hábito corrente por aqueles tempos. Não havia como evitar, pois nas ruas não daria para arranjos que fossem burgueses, ou de rostos bem apanhados, corpos em exposição, o dilema de frágeis e tênues diálogos, e os inevitáveis desfechos da desilusão amorosa. Tudo o que convertera a sociedade contemporânea eram as promessas de que se um não estivesse pertencendo a uma conexão qualquer a cidadania estaria ausente, na acepção existencial dos tempos... Não haveria de ser crítica, ou que ela encontrasse um homem que contestasse algo, pois era culta o suficiente para saber do que foram as eras de revoluções tecnológicas, e como todos esses tempos facilitaram a vida por um lado, mas colocaram cabrestos nefastos através das teorias econômicas, que vinham como pano de fundo. E se impunha o fato de que um país continha tudo em termos de avanços de ordem da informática. Não se vem ao fato, o encontro fora casual:
            Marcelo vestia uma calça jeans, um sapato meio surrado, uma blusa comprada em um brechó católico, se portava como um cavalheiro, como efetivamente era. Viu-a, mas viu-a meio mortiça, sem muita cor, a pele clara, a palidez de noites mal dormidas, ele que se mantinha forte com seu temperamento solar, das ruas, como expectador de uma mulher cansada, de carência visível, uma carência inculcada, impetrada, de um tipo de carência que quase beirava a enfermidade, uma ansiedade em seus olhos inquietos nas órbitas... Falou-lhe.
            - Alice... É você? Quase não a reconheci.
            - Sou eu, o que você achou?                                         
            - Como? Olha, não precisamos fazer algo que não queremos, se é de tanto o se querer, mas não seja sempre, assim, por vezes.
            - Não entendo. – Disse ela, inquieta, com a voz meio no chão, o rosto para baixo, como que escondendo as olheiras das noites claras, de uma promessa de amor, que o sexo por si não se bastaria mais, e a revolução da igualdade de gêneros era algo do passado, bem sabia, mas não frequentava as amigas que possuíam machos objetos, que coisificavam o ato, que se alimentavam do coito como algo normal, de uma sistêmica normalidade... – Olha, Marcelo, eu ensaiei muito este encontro, eu gosto de ler, apenas gostaria de deitar-me com você em uma boa cama e que leiamos um bom jornal, apesar de estes não apresentarem a realidade dos fatos, que se nos encolhe a realidade! Apenas estou extenuada. Me leve, por favor, a um hotel.
            Alice havia viajado desde o oeste do Estado, dez horas de ônibus, possuía bagagens para ficar, perdera seu emprego há três meses e seus pais haviam falecido já há algum tempo. Deixara sete irmãos perto da fronteira. Um deles falecera de acidente no trabalho. Ganhara o celular de uma amiga que subira com um companheiro para fundar uma casa na perma-cultura, dentro de uma floresta preservada, e disse que não precisariam desse recurso, pois possuíam um rádio com muito alcance. Seu desejo no imediato era descansar, dormir, e quando vira os modos de Marcelo sentiu mais calor do que na web, no celular. Tinha todo o cansaço do mundo, de seu mundo, do espelhamento sincero de muitas outras mulheres, que escolhiam esses displays como um modo de alcance afetivo.
            Saíram a pernoitar em um hotel que Marcelo conhecia. Se chamava Ártico, localizado em uma rua sem saída. As paredes de pedra impressionaram Alice, por serem da idade em que se apresentava o estilo da arquitetura, visto que mal sabia ela sobre essa arte tão completa. Mas Marcelo conhecia um pouco, sabendo que se tratava de um estilo neoclássico, ou seja, uma repetição algo bela, posto feita efetivamente com pedras, o que impressionava a qualquer um que não tivesse muito trânsito fora de seus lugares, dentro das conchas em que se vivia. Naqueles dias o calor era tão intenso no sul, o sol dava lances inclementes sobre as gentes, que quase ninguém saía nos picos mais quentes do dia, a não ser em certos ou errados, no entanto pretensos combates ocultos... Rumores havia sobre os dois, já, sem ao menos terem se visto então naquele fim de jornadas, na tarde de sombras que evanescia a pressão atmosférica. Rumores de encontros, de outros que obtinham prazer em ajudar a desfazer a empatia do encontro, ou o surgimento do amor. Talvez fosse uma impressão, um trecho de Debussy, algo a se retratar com um médico psiquiatra, um transtorno, ou mesmo quiçá uma verdade em que o gênero humano meio que se assemelhasse aos corvos, quando assim ingenuamente em sua sólida malícia assentissem. Seria por concluir que Alice e Marcelo quase que se tocaram, e seus olhares permaneceram ligados um ao outro quando entraram no hall do hotel. Subiram.
            - Um pequeno, no entanto grande olhar, meu caro. – Foi a expressão dela, quando se enlaçaram por um instante breve, mas repleto. Separaram-se...
            - Quando é que nos encontraremos de fato, ao que não nos reportemos a todos esses canais que nos mantiveram em quase contato? Quem somos, ou melhor, será que somos nós dois ou todo um contexto dentro deste quarto de hotel? – Marcelo tinha dúvidas, estas de trato, de uma combinatória meio em que o acaso festejava... Visto em acepção profunda, naquilo em que se pretendia um encontro. Fazer o que? Descansariam, a busca tinha sido intensa...
            Aquele hotel tinha sido um lugar onde muitos se abrigaram durante a história daquele pequeno país. Como um nicho na cidade, um affair multiplicado com muitos de se amar, ou daqueles em passagem a negociar naquela pequena cidade, originária das tropas de mulas, onde o mesmo antigo antepassado do dono do hotel trabalhava com grãos, em épocas mais agrárias, eras de trocas. No entanto, o casal recém-formado sabia que na verdade haveria alguma idiossincrasia a passar a limpo, alguma diferença ou detalhe não dito, a impossibilidade das letras ou fotos, ou o infinito da personalidade humana. Desse infinito que redescobrimos no algo da consecução mesma dos universos... Esse o ponto! De nada a não sabermos sobre nada no universo mesmo da espécie, a que nos consintamos que a atração melhor se daria entre uma criação ou outra, de uma larva a um pássaro, de uma mulher a uma rocha incrustrada no peito de uma montanha. Assim, de por vezes achar mais linda a mariposa do que a pétala rosácea no baixo ventre de uma fêmea, assim, enquanto esta desce sobre o menir e seu pedestal representativo, a mariposa de três cores sobe, frente à lua, e dita algo mais um pouco, do que nos despe também, do que desprezamos quando estamos orgíacos, bêbedos, loucos na insanidade do prazer que vegeta os atos. Por um tanto que nos reservemos um pouco, pois a queda de um ser pode acontecer na predação inquieta de um turvo e inconsciente átomo e seu spin. Assim o encontro, que tanto de tantos os homens e mulheres requerem, em medidas solenes, no caudal de madrugadas, em que por vezes nos turvamos, por vezes vemos, bloqueamos, deletamos a nossa razão e viramos bichos, ao que os bichos não pretendam tão humanos em falhas destes. Erramos, e o encontro se dá errático enquanto fortuito, na não coragem de nos tocarmos na chuva inclemente, na luta de sermos viventes, no que temos de propósitos tecnológicos, mas que se acrescente nas luzes, e não que substitua a subsistência tão agonizante já do sentimento de amor: imparcial, decente, justo e definitivamente – ainda utilizando a palavra grande - humano.
            Alice e Marcelo compartiam cada qual seu próprio oposto, onde o encontro de suas curvas sinalizavam que as parábolas se tornavam retas em seus próprios conflitos. De saberem-se mais experientes, o amor de suas gerações em gênero, em classe, tornava-se objeto da lógica de seus gadgets... Tanto que estavam no hotel, no quarto, olhando-se, propriamente, não em presença um do outro, mas querendo teclar sucessos de outros presentes em seus manequins de quartzo! Mal sabiam da derrocada ou do insucesso em que se tornavam, pois sozinhos, perto do leito, teriam que “treinar” algo em que sumiam nas estratosferas dos milagres da ciência. Essa ciência certa, perfeita, a se descobrir a mesma receita, o mesmo milagre repetido, as novas maquiagens de outras hennas, os novos batons inteligentes, os cílios postiços interligados e espiões de si mesmos, os que curtiam, os que trabalhavam duro, os que esmolavam e não viviam, os que enlouqueciam e não eram levados a sério, à mercê dos seus apelidos cruentos, os que se reduziam a moedas, e aqueles que buscavam fechar as portas da liberdade para defender seus botecos, ou seja, os golpistas de última hora, sempre as horas, sempre copiando datas, sempre dando corda, sempre alheios ao bom senso. Isso vinha de roldão, mas a questão era bem mais existencial do que nunca, pois Marcelo e Alice sabiam de outros tempos, mas que os tempos se sucediam, e a devastação apenas existia dentro do nada do ser... O que importava para eles? Uma camisa de vênus mais moderna? Um encontro que fosse poético, era isso que importasse a cada qual, era a esperança do mundo, de sermos quem nos quisermos, mas que não sabemos mais nem quem foi um romântico como Victor Hugo, ou Shakespeare, quem foi Mallarmé, Virgínia Woolf. Talvez os dez mandamentos traduzissem tudo, quem sabe para o Juízo Final todos quisessem ser um fragmento missionário de Jonas, quem sabe o Cristo loiro ou moreno viesse, quem sabe os Cristos já estão por aí, enclausurados. Quem saberia? Os displays eletrônicos, o racismo, o fascismo, o nazismo, ou o esquecido Cubismo Analítico, este tão lindo em sua geometria apagada de nossas memórias artístico-culturais? Quem o sabe? Os franceses, os japoneses, a história de um robô? O verter de neurolépticos em demandas do fracasso cerebral imposto? As epidemias, a fome na África, o holocausto palestino? Na verdade, eram os dois apenas um casal, frente a uma realidade em que não davam conta, nem dariam, pois para construir um perfil favorável a que se pretendesse um bom contato, daria um trabalho extra em que arranjar as coisas com aplicativos que resolvessem essa parte humana ainda não estaria em mercado. E esse seria o ponto final, a soberba da conveniência da ganância fincando estacas de cristal líquido na mente dos mais vulneráveis: aqueles considerados inteligentes, normais, alfas, guerreiros, predadores sexuais, treinados, preparados, acadêmicos, neouniversitários, fabricantes de insights, pensadores contemporâneos com a profundidade aleatória do neo-neo pós algo, de liberalismo quaisquer, que utilizaria seu poder de persuasão para mostrar à humanidade que estaria tudo perdido, que não haveria de ganhar o progresso de toda uma coletividade mais pobre que, bem ou mal, estava construindo melhor e mais concretamente sua própria realidade. Esse encontro era de um par huxleyniano, a fuga aparente de atingir um orgasmo fora do padrão isolado dentro do perceptível sistema que não se sabia qual era, mas já dava sinais de fracasso, no mesmo viés tecnológico, onde antes a prerrogativa era de apenas uma face. As portas da percepção se tornavam necessárias, e estas eram fechadas à Natureza e abertas ao olhar dos gadgets e outros displays slaves, onde o fabril ou agente de natureza criadora ou participante das cúpulas da inteligência – o que há por trás – viravam slaves (escravos) de suas próprias rotinas, mesmo quando consagradoras de alguma posição em um serviço de inteligência qualquer, seja de que nação fosse.

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