Alice se encontrara com Marcelo
naquela sexta-feira, no endereço que haviam combinado. Punha-se um pouco de
resguardo, mesmo que soubesse que o havia conhecido pelo celular. Era hábito
corrente por aqueles tempos. Não havia como evitar, pois nas ruas não daria
para arranjos que fossem burgueses, ou de rostos bem apanhados, corpos em
exposição, o dilema de frágeis e tênues diálogos, e os inevitáveis desfechos da
desilusão amorosa. Tudo o que convertera a sociedade contemporânea eram as promessas
de que se um não estivesse pertencendo a uma conexão qualquer a cidadania
estaria ausente, na acepção existencial dos tempos... Não haveria de ser
crítica, ou que ela encontrasse um homem que contestasse algo, pois era culta o
suficiente para saber do que foram as eras de revoluções tecnológicas, e como
todos esses tempos facilitaram a vida por um lado, mas colocaram cabrestos
nefastos através das teorias econômicas, que vinham como pano de fundo. E se
impunha o fato de que um país continha tudo em termos de avanços de ordem da
informática. Não se vem ao fato, o encontro fora casual:
Marcelo vestia uma calça jeans, um
sapato meio surrado, uma blusa comprada em um brechó católico, se portava como
um cavalheiro, como efetivamente era. Viu-a, mas viu-a meio mortiça, sem muita
cor, a pele clara, a palidez de noites mal dormidas, ele que se mantinha forte
com seu temperamento solar, das ruas, como expectador de uma mulher cansada, de
carência visível, uma carência inculcada, impetrada, de um tipo de carência que
quase beirava a enfermidade, uma ansiedade em seus olhos inquietos nas
órbitas... Falou-lhe.
- Alice... É você? Quase não a
reconheci.
-
Sou eu, o que você achou?
- Como? Olha, não precisamos fazer
algo que não queremos, se é de tanto o se querer, mas não seja sempre, assim,
por vezes.
- Não entendo. – Disse ela,
inquieta, com a voz meio no chão, o rosto para baixo, como que escondendo as
olheiras das noites claras, de uma promessa de amor, que o sexo por si não se
bastaria mais, e a revolução da igualdade de gêneros era algo do passado, bem
sabia, mas não frequentava as amigas que possuíam machos objetos, que
coisificavam o ato, que se alimentavam do coito como algo normal, de uma
sistêmica normalidade... – Olha, Marcelo, eu ensaiei muito este encontro, eu
gosto de ler, apenas gostaria de deitar-me com você em uma boa cama e que
leiamos um bom jornal, apesar de estes não apresentarem a realidade dos fatos,
que se nos encolhe a realidade! Apenas estou extenuada. Me leve, por favor, a
um hotel.
Alice havia viajado desde o oeste do
Estado, dez horas de ônibus, possuía bagagens para ficar, perdera seu emprego
há três meses e seus pais haviam falecido já há algum tempo. Deixara sete
irmãos perto da fronteira. Um deles falecera de acidente no trabalho. Ganhara o
celular de uma amiga que subira com um companheiro para fundar uma casa na perma-cultura, dentro de uma floresta
preservada, e disse que não precisariam desse recurso, pois possuíam um rádio
com muito alcance. Seu desejo no imediato era descansar, dormir, e quando vira
os modos de Marcelo sentiu mais calor do que na web, no celular. Tinha todo o
cansaço do mundo, de seu mundo, do espelhamento sincero de muitas outras
mulheres, que escolhiam esses displays como um modo de alcance afetivo.
Saíram a pernoitar em um hotel que
Marcelo conhecia. Se chamava Ártico, localizado em uma rua sem saída. As
paredes de pedra impressionaram Alice, por serem da idade em que se apresentava
o estilo da arquitetura, visto que mal sabia ela sobre essa arte tão completa.
Mas Marcelo conhecia um pouco, sabendo que se tratava de um estilo neoclássico,
ou seja, uma repetição algo bela, posto feita efetivamente com pedras, o que
impressionava a qualquer um que não tivesse muito trânsito fora de seus
lugares, dentro das conchas em que se vivia. Naqueles dias o calor era tão
intenso no sul, o sol dava lances inclementes sobre as gentes, que quase
ninguém saía nos picos mais quentes do dia, a não ser em certos ou errados, no
entanto pretensos combates ocultos... Rumores havia sobre os dois, já, sem ao
menos terem se visto então naquele fim de jornadas, na tarde de sombras que
evanescia a pressão atmosférica. Rumores de encontros, de outros que obtinham
prazer em ajudar a desfazer a empatia do encontro, ou o surgimento do amor. Talvez
fosse uma impressão, um trecho de Debussy, algo a se retratar com um médico
psiquiatra, um transtorno, ou mesmo quiçá uma verdade em que o gênero humano
meio que se assemelhasse aos corvos, quando assim ingenuamente em sua sólida
malícia assentissem. Seria por concluir que Alice e Marcelo quase que se
tocaram, e seus olhares permaneceram ligados um ao outro quando entraram no
hall do hotel. Subiram.
- Um pequeno, no entanto grande
olhar, meu caro. – Foi a expressão dela, quando se enlaçaram por um instante
breve, mas repleto. Separaram-se...
- Quando é que nos encontraremos de
fato, ao que não nos reportemos a todos esses canais que nos mantiveram em
quase contato? Quem somos, ou melhor, será que somos nós dois ou todo um
contexto dentro deste quarto de hotel? – Marcelo tinha dúvidas, estas de trato,
de uma combinatória meio em que o acaso festejava... Visto em acepção profunda,
naquilo em que se pretendia um encontro. Fazer o que? Descansariam, a busca
tinha sido intensa...
Aquele hotel tinha sido um lugar
onde muitos se abrigaram durante a história daquele pequeno país. Como um nicho
na cidade, um affair multiplicado com
muitos de se amar, ou daqueles em passagem a negociar naquela pequena cidade,
originária das tropas de mulas, onde o mesmo antigo antepassado do dono do
hotel trabalhava com grãos, em épocas mais agrárias, eras de trocas. No
entanto, o casal recém-formado sabia que na verdade haveria alguma
idiossincrasia a passar a limpo, alguma diferença ou detalhe não dito, a
impossibilidade das letras ou fotos, ou o infinito da personalidade humana. Desse
infinito que redescobrimos no algo da consecução mesma dos universos... Esse o
ponto! De nada a não sabermos sobre nada no universo mesmo da espécie, a que
nos consintamos que a atração melhor se daria entre uma criação ou outra, de
uma larva a um pássaro, de uma mulher a uma rocha incrustrada no peito de uma
montanha. Assim, de por vezes achar mais linda a mariposa do que a pétala
rosácea no baixo ventre de uma fêmea, assim, enquanto esta desce sobre o menir
e seu pedestal representativo, a mariposa de três cores sobe, frente à lua, e
dita algo mais um pouco, do que nos despe também, do que desprezamos quando
estamos orgíacos, bêbedos, loucos na insanidade do prazer que vegeta os atos.
Por um tanto que nos reservemos um pouco, pois a queda de um ser pode acontecer
na predação inquieta de um turvo e inconsciente átomo e seu spin. Assim o encontro, que tanto de
tantos os homens e mulheres requerem, em medidas solenes, no caudal de
madrugadas, em que por vezes nos turvamos, por vezes vemos, bloqueamos,
deletamos a nossa razão e viramos bichos, ao que os bichos não pretendam tão
humanos em falhas destes. Erramos, e o encontro se dá errático enquanto
fortuito, na não coragem de nos tocarmos na chuva inclemente, na luta de sermos
viventes, no que temos de propósitos tecnológicos, mas que se acrescente nas
luzes, e não que substitua a subsistência tão agonizante já do sentimento de
amor: imparcial, decente, justo e definitivamente – ainda utilizando a palavra
grande - humano.
Alice e Marcelo compartiam cada qual
seu próprio oposto, onde o encontro de suas curvas sinalizavam que as parábolas
se tornavam retas em seus próprios conflitos. De saberem-se mais experientes, o
amor de suas gerações em gênero, em classe, tornava-se objeto da lógica de seus
gadgets... Tanto que estavam no
hotel, no quarto, olhando-se, propriamente, não em presença um do outro, mas
querendo teclar sucessos de outros presentes em seus manequins de quartzo! Mal
sabiam da derrocada ou do insucesso em que se tornavam, pois sozinhos, perto do
leito, teriam que “treinar” algo em que sumiam nas estratosferas dos milagres
da ciência. Essa ciência certa, perfeita, a se descobrir a mesma receita, o
mesmo milagre repetido, as novas maquiagens de outras hennas, os novos batons inteligentes, os cílios postiços
interligados e espiões de si mesmos, os que curtiam, os que trabalhavam duro,
os que esmolavam e não viviam, os que enlouqueciam e não eram levados a sério,
à mercê dos seus apelidos cruentos, os que se reduziam a moedas, e aqueles que
buscavam fechar as portas da liberdade para defender seus botecos, ou seja, os
golpistas de última hora, sempre as horas, sempre copiando datas, sempre dando
corda, sempre alheios ao bom senso. Isso vinha de roldão, mas a questão era bem
mais existencial do que nunca, pois Marcelo e Alice sabiam de outros tempos,
mas que os tempos se sucediam, e a devastação apenas existia dentro do nada do
ser... O que importava para eles? Uma camisa de vênus mais moderna? Um encontro
que fosse poético, era isso que importasse a cada qual, era a esperança do
mundo, de sermos quem nos quisermos, mas que não sabemos mais nem quem foi um
romântico como Victor Hugo, ou Shakespeare, quem foi Mallarmé, Virgínia Woolf.
Talvez os dez mandamentos traduzissem tudo, quem sabe para o Juízo Final todos
quisessem ser um fragmento missionário de Jonas, quem sabe o Cristo loiro ou
moreno viesse, quem sabe os Cristos já estão por aí, enclausurados. Quem
saberia? Os displays eletrônicos, o racismo, o fascismo, o nazismo, ou o
esquecido Cubismo Analítico, este tão lindo em sua geometria apagada de nossas
memórias artístico-culturais? Quem o sabe? Os franceses, os japoneses, a
história de um robô? O verter de neurolépticos em demandas do fracasso cerebral
imposto? As epidemias, a fome na África, o holocausto palestino? Na verdade,
eram os dois apenas um casal, frente a uma realidade em que não davam conta,
nem dariam, pois para construir um perfil favorável a que se pretendesse um bom
contato, daria um trabalho extra em que arranjar as coisas com aplicativos que
resolvessem essa parte humana ainda não estaria em mercado. E esse seria o
ponto final, a soberba da conveniência da ganância fincando estacas de cristal
líquido na mente dos mais vulneráveis: aqueles considerados inteligentes,
normais, alfas, guerreiros, predadores sexuais, treinados, preparados,
acadêmicos, neouniversitários,
fabricantes de insights, pensadores contemporâneos com a profundidade aleatória
do neo-neo pós algo, de liberalismo quaisquer, que utilizaria seu poder de
persuasão para mostrar à humanidade que estaria tudo perdido, que não haveria
de ganhar o progresso de toda uma coletividade mais pobre que, bem ou mal,
estava construindo melhor e mais concretamente sua própria realidade. Esse
encontro era de um par huxleyniano, a
fuga aparente de atingir um orgasmo fora do padrão isolado dentro do
perceptível sistema que não se sabia qual era, mas já dava sinais de fracasso,
no mesmo viés tecnológico, onde antes a prerrogativa era de apenas uma face. As
portas da percepção se tornavam necessárias, e estas eram fechadas à Natureza e
abertas ao olhar dos gadgets e outros
displays slaves, onde o fabril ou
agente de natureza criadora ou participante das cúpulas da inteligência – o que
há por trás – viravam slaves
(escravos) de suas próprias rotinas, mesmo quando consagradoras de alguma
posição em um serviço de inteligência qualquer, seja de que nação fosse.