Luciano sabia dos ventos e das
correntes marinhas... Seu barco era pequeno e a navegação a praticava com
maestria, assim como caminhante sabia dos acidentes de escala e de olhares
oceânicos. Vertia seus conhecimentos nas páginas de uma ancestralidade generosa
em histórias. Assentia com a mão de um gesto qualquer, posto a ele que a
humanidade resolvesse a gestualidade dos modos que quisesse, pois em sua vida
saberia melhor em seus funcionamentos do motor de centro do barco, e do mar que
não gesticula, pois é infinito! Não escutava horrores, e sua vida pontificava a
serenidade santificada de uma boa atitude. Não propriamente que o lençol d’água
fosse um paraíso, mas peixes em sua mesa farta eram de melhores dias, apenas.
Mas se impunha entre seus iguais, que todos os seriam, mas há tubarões em
nossos mares que devem ser respeitados, e Luciano nunca pensara em fazer
comércio de suas barbatanas.
Em terra firme os amigos da
associação de pescadores conversavam com a familiaridade dos trabalhadores do
mar, suas idiossincrasias e sua amplidão dos horizontes. Em alguma totalidade
humana se ressentira alguma vez, o que o impedia de sentir-se muito sociável,
enquanto homem dado á contemplação, um dos sérios motivos que o levavam a
navegar. Levava sempre seu filho mais velho, Carlos e o sobrinho Edinaldo, e a
cabine dava para comportar os três muito bem, com um pequeno banheiro, o balcão
com o timão, o rádio e controles, e dois estrados suspensos para o descanso.
Havia um metro e meio de passagem lateral no convés e dois mastros para o
velame, afora o tanque do óleo para o motor. O barco se chamava Rosa dos Mares,
e seu filho mais novo pintara as letras com caligrafia impecável, e sua mulher
Neusa ajudara – com a comunidade – a tecer uma boa rede, com a envergadura de
um mar alto.
Quando em terra, em um domingo,
Luciano esperava Neusa que fora às compras com o carro, um fusca 1.300,
devidamente recauchutado de motor, no continente, onde havia um bom mercado.
Comprou uma aguardente de cana-de-açúcar, que seu companheiro – em terra –
tanto gostava... Saiu Luciano a contemplar o mar – a logo voltar –, seus
rochedos alisados pelos milênios e suas águas de procelas, quando o mar, talvez
raramente, apresentava ressacas assustadoras. Era nessas horas – de profundezas
em se abraçar com os olhos o tapete marinho até o horizonte – que Luciano
sentia o seu próprio parecer. Algo quase abstrato, de raízes grandes e fincadas
na sua sobriedade de bom homem, mas que encerrava uma complexidade infinita em
cada mirada sobre as ondas igualmente várias. Às vezes, olhando o mar, via
pularem peixes sobre a água e lembrava-se que no mar alto eram estes bem
maiores, que tal fascinava o navegante... O mar compunha a sua existência com a
ausência de palavras, que fossem elas, quaisquer. E Neusa havia sido sua
primeira mulher, e a ela dedicava seus peixes, o que obtinha, já do menos em se
viver, pois grandes embarcações faziam a sua varredura para alimentar os que
invadiam a costa brasileira, com o arrasto de imensas redes. Parecia a ele o
acaso, obra do desenvolvimento inevitável. Os sindicatos da pesca estavam
unidos para reivindicar melhores patrulhas para que isso não acontecesse: a
invasão predatória de águas territoriais. De qualquer modo, sua família agora
já não encontrava muitas dificuldades, pois o barco conseguia alcançar
proventos.
Neusa chegava já com as compras, e o
fusca verde estava estacionado onde ela sempre o deixava, em uma subida de
longos tempos... Luciano foi ajudá-la com seus braços longos, de tanto achar
água com as remadas, quando nadava nos remansos. Parecia, nesse modo de nadar,
que fosse justamente outro nadar, uma comunhão com as águas, pois estava
visceralmente vinculado ao mar. Um mar de nascente, que em si mesmo transmutava
os sentimentos de Luciano, apaziguando-o. Nada que interferisse em sua vida
seria como dar umas braçadas na companhia de Iemanjá e seus segredos de deusa.
Neusa o absorvia em seus sãos delírios, quando o chamava ao real:
- Tinha um caminhão grande por lá...
Dos grandes mesmo, você deveria ter visto, sem placas. Uma beleza, Luciano!
- Precisou ir tão longe sempre,
querida? Os peixes já estão no cesto, já os limpei.
Ela olhou-o atônita, meio que seu
homem só pensava em seus peixes, em sua lida no mar, em seus mares navegados e
ainda por navegar. Assim pressentia, pois ainda, depois de vinte e cinco anos
de casados parecia que não o conhecia.
- Ajude-me. Apenas isso que quero de
você e ponto final. – Disse, divertida...
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