terça-feira, 22 de dezembro de 2015

A ROSA DOS MARES

            Luciano sabia dos ventos e das correntes marinhas... Seu barco era pequeno e a navegação a praticava com maestria, assim como caminhante sabia dos acidentes de escala e de olhares oceânicos. Vertia seus conhecimentos nas páginas de uma ancestralidade generosa em histórias. Assentia com a mão de um gesto qualquer, posto a ele que a humanidade resolvesse a gestualidade dos modos que quisesse, pois em sua vida saberia melhor em seus funcionamentos do motor de centro do barco, e do mar que não gesticula, pois é infinito! Não escutava horrores, e sua vida pontificava a serenidade santificada de uma boa atitude. Não propriamente que o lençol d’água fosse um paraíso, mas peixes em sua mesa farta eram de melhores dias, apenas. Mas se impunha entre seus iguais, que todos os seriam, mas há tubarões em nossos mares que devem ser respeitados, e Luciano nunca pensara em fazer comércio de suas barbatanas.
            Em terra firme os amigos da associação de pescadores conversavam com a familiaridade dos trabalhadores do mar, suas idiossincrasias e sua amplidão dos horizontes. Em alguma totalidade humana se ressentira alguma vez, o que o impedia de sentir-se muito sociável, enquanto homem dado á contemplação, um dos sérios motivos que o levavam a navegar. Levava sempre seu filho mais velho, Carlos e o sobrinho Edinaldo, e a cabine dava para comportar os três muito bem, com um pequeno banheiro, o balcão com o timão, o rádio e controles, e dois estrados suspensos para o descanso. Havia um metro e meio de passagem lateral no convés e dois mastros para o velame, afora o tanque do óleo para o motor. O barco se chamava Rosa dos Mares, e seu filho mais novo pintara as letras com caligrafia impecável, e sua mulher Neusa ajudara – com a comunidade – a tecer uma boa rede, com a envergadura de um mar alto.
            Quando em terra, em um domingo, Luciano esperava Neusa que fora às compras com o carro, um fusca 1.300, devidamente recauchutado de motor, no continente, onde havia um bom mercado. Comprou uma aguardente de cana-de-açúcar, que seu companheiro – em terra – tanto gostava... Saiu Luciano a contemplar o mar – a logo voltar –, seus rochedos alisados pelos milênios e suas águas de procelas, quando o mar, talvez raramente, apresentava ressacas assustadoras. Era nessas horas – de profundezas em se abraçar com os olhos o tapete marinho até o horizonte – que Luciano sentia o seu próprio parecer. Algo quase abstrato, de raízes grandes e fincadas na sua sobriedade de bom homem, mas que encerrava uma complexidade infinita em cada mirada sobre as ondas igualmente várias. Às vezes, olhando o mar, via pularem peixes sobre a água e lembrava-se que no mar alto eram estes bem maiores, que tal fascinava o navegante... O mar compunha a sua existência com a ausência de palavras, que fossem elas, quaisquer. E Neusa havia sido sua primeira mulher, e a ela dedicava seus peixes, o que obtinha, já do menos em se viver, pois grandes embarcações faziam a sua varredura para alimentar os que invadiam a costa brasileira, com o arrasto de imensas redes. Parecia a ele o acaso, obra do desenvolvimento inevitável. Os sindicatos da pesca estavam unidos para reivindicar melhores patrulhas para que isso não acontecesse: a invasão predatória de águas territoriais. De qualquer modo, sua família agora já não encontrava muitas dificuldades, pois o barco conseguia alcançar proventos.
            Neusa chegava já com as compras, e o fusca verde estava estacionado onde ela sempre o deixava, em uma subida de longos tempos... Luciano foi ajudá-la com seus braços longos, de tanto achar água com as remadas, quando nadava nos remansos. Parecia, nesse modo de nadar, que fosse justamente outro nadar, uma comunhão com as águas, pois estava visceralmente vinculado ao mar. Um mar de nascente, que em si mesmo transmutava os sentimentos de Luciano, apaziguando-o. Nada que interferisse em sua vida seria como dar umas braçadas na companhia de Iemanjá e seus segredos de deusa. Neusa o absorvia em seus sãos delírios, quando o chamava ao real:
            - Tinha um caminhão grande por lá... Dos grandes mesmo, você deveria ter visto, sem placas. Uma beleza, Luciano!
            - Precisou ir tão longe sempre, querida? Os peixes já estão no cesto, já os limpei.
            Ela olhou-o atônita, meio que seu homem só pensava em seus peixes, em sua lida no mar, em seus mares navegados e ainda por navegar. Assim pressentia, pois ainda, depois de vinte e cinco anos de casados parecia que não o conhecia.
            - Ajude-me. Apenas isso que quero de você e ponto final. – Disse, divertida...

Nenhum comentário:

Postar um comentário