Entre
tantos lavores que passavam pela cabeça de Ramon, seu recurso máximo era
alternar entre as soluções de seu modo de equacionar problemas e a habilidade
de suas mãos. Em quase tudo era expedito e trabalhava para alguns ranchos de
pescadores de um istmo, próximo a molhes naquela que seria a baía onde nascera,
meio ponta de mar. O seu tronco era largo, o nariz aquilino, as feições duras e
vincadas, a que ninguém lhe daria a idade certa, mas já era patrimônio da
pequena vila daqueles pescadores, e não havia como duvidar de suas
competências. Desde muito cedo, ainda quase claro o dia, enfunava seu peito com
orgulho e prestava a si mesmo a homenagem que lhe cabia e que lhe davam sem
pedir nada em troca. Não bebia quase, apenas mediano o suficiente, e quando lhe
ofereciam o trago. Mas sempre ao cair da tarde, em que perpetuara seu trabalho
durante o dia, em que sempre houvesse mais em todos os outros. Assim era a
prerrogativa de sua existência, e quem desse por sua falta por sinal não
haveria de muita lucidez, ou um pouquinho de atenção, pois Ramon andava por
tudo e propriamente a sua presença sinalizava bom tempo como a pomba de Noé.
Andavam por alto seus matos, que a ele bastava um bosque com pássaros a
sentir-se bem, não importava aonde, mas convivia harmoniosamente com a
realidade crua dos parcéis...
Tanto
era do ofício que não conseguia focar muito bem no de se ficar parado, meio que
se era realmente expedito, seria sempre, pois sempre o fora, desde muito jovem.
Saía a levar farnel, comprava a cachaça dos compadres, visitava enfermos,
levava as boas notícias, não faltava a ajudar nas más, sabia discernir dos
ventos e escutava as rochas nos marulhos inquietos do seu amigo, o mar. No
entanto, vagava pela terra, não o sabia do navegar, pois nem ao nado lhe
bastava um certo conhecer, posto a água não ser seu meio, a se pretender
enfrentar. Que lhe pedissem:
- Ramon, vai
pela direção aquela, me traga de bom aipim, na feira o encontra que nela hoje
chega! Corre pela vila inteira e anuncia que trocam de Padre! Saiba de Mariana,
minha esposa, espia que vai em trabalho de parto pra semana!
Ele
não parava, e do seu ganho merecido amealhava pão e vinténs. Pois do céu também
vinha o seu vinho, e ele se regalava de estar do lado de fora, nas ruas, a ver
dos edifícios, ver as gentes pelas janelas debruçadas como trabalhadoras de
casas, a ver dos braços negros de algumas mulheres em que jamais a alguma
tivesse oportunidade, pois o consideravam, apesar de tudo, um pouco obtuso.
Talvez fosse um pouco do temperamento, mas atalhava em ordenar-se por receber
demandas, onde tudo do natural, tudo do
construído lhe alçava luz, a saber-se útil e por viver sua vida sem contratempos,
isso o contentava de modo raro.
Na
verdade, não havia lugar – nessa vida de zelo – a que tivesse preconceitos de
qualquer natureza, pois respeitava o próximo não com escudos ou emblemas, mas
de modo espontâneo, já que o conceito do prejulgamento a si era inexistente.
Essa era a idiossincrasia de Ramon.
Possuía
alguns conhecidos de rua, e um deles era Arnaldo. Homem alto, barba farta
derramada quase ao peito, olhos turvos de algum remédio para a mente, senhor
complicado mas ao mesmo tempo simples: havia sido um bom burocrata, mas a vida
lhe reservara um caminho mais árduo. Este homem era um caminhante, como tantos
havia no povoado, mas estavam virando um século essas sociedades enigmáticas
contemporâneas em seus jargões tecnológicos, em que uma coisa se fundia com a
outra, ou muito do que se pretendia era algo como o nada. Ao olhar de Arnaldo o
diálogo por vezes se turvava, e três linhas se tornavam diacrônicas na ausência
de um debate de dois, posto ser importante saber que o debate deve assumir a
presença de ao menos quatro, quando um media. Nada desses jargões burocráticos
passava novamente ao olhar taciturno de Arnaldo, mas que muitos o viam, se
viam, nesse processo.
Certo
dia, estava Ramon fumando um pito com Arnaldo quando um homem louro chamado
Hans apareceu, oferecendo um bom gole de conhaque. Sequioso, Arnaldo acedeu,
mas Ramon olhava meio que se distanciando, a saber, que conhecera muito pouco
aquele homem mais franzino, de óculos profundos, os olhos que revelavam uma
inteligência perspicaz e talento na voz: em sua voz meio rouca... Chegara do
exterior recentemente, sabia muito do idioma português, pois lera muito de
nossas obras literárias e históricas. Uma cultura de letras sem par, a que
muitos o conheciam por fabricante de motocicletas, mas apenas negociava com
importação de máquinas computacionais assim, meramente formais. Possuía uma
memória de excelente enxadrista, quando se sabe que na organização de um bom
negócio sabia de contabilidade quase sem registrar os livros. A conversa estava
meio sóbria demais, ao que não se entendiam os três, apenas o conhaque falava
mais alto, agora que Ramon, depois de olhar atento os óculos que se
apresentavam, bebia sem brevidades.
Hans,
com seu olhar vestido por um cavanhaque curto, com bordas de profeta, disse,
sem meias palavras a eles:
-
Sei que por aqui vocês gostam dessa vida despojada... Despojada é simples, a
meio entendedor. Colocarei aqui uma estação gráfica e gostaria de arregimentar
alguns homens e mulheres para trabalhar comigo, pois estou retornando a este
país depois de ficar fora durante um bom tempo. Não sei se vocês conhecem o
chamado Android, um sistema que implantamos, nós não, o mundo, e gostaríamos de
avançar justamente sobre as populações que estão à margem desse mesmo mundo...
Gostaria do avanço tecnológico em todas as frentes, no simples fato de dizer e
poder comprovar que não há mais futuro sem conectividade: essa palavra
significa estar plugado no mundo, compreendem?
Arnaldo
olhava por entre os olhos de Hans, mas o media o fato de não ver mais do que um
homem calvo falando menos do que uma roca que falasse... Tudo bem, à meia voz,
mas o homem se soltava e gostava de verter o álcool para o copo alheio. Arnaldo
havia vencido graves problemas com a experiência e maturidade de poucos, apesar
de contar com apenas quarenta e três anos... Foi breve, mas o suficiente.
-
Olhe, meu amigo, nós sabemos da dificuldade em se alcançar as gentes para
qualquer coisa, mas o mercado está aí, e se você faz de seu mercado um bom
negócio, é bom para você. Mas talvez não seja a hora de aceitarmos como apenas
uma realidade o fato que você nos apresenta. Eu, por exemplo: não vejo tudo sob
esse prisma e pretendo continuar caminhando, pois assim sigo fazendo meus
bicos, me entendes? Já fui mais organizado, entenda-me, mas o gosto da vida
meio caótica me alegra igualmente. Mas tem um lado: qual o seu interesse,
senhor Hans, ou melhor, o que quer o senhor?
Hans
olhou para o lado meio nervoso, sorrindo entre dentes, o olhar febril, o
conhaque ordinário já o havia guardado, e disse a eles:
-
Queria que mandassem em alguns homens que possuem essas baleeiras para
transportar um material até aquela faixa, que fica do outro lado da baía. Daria
a vocês uma parte do lucro... Quero que saibam que é legal.
-
Poderia falar diretamente com Tobias, o dono de três das melhores embarcações
-, disse Ramon, em sua doce ingenuidade...
Hans
se manteve claudicante, a saber, vislumbrava algo escuso viabilizando alguma
tentativa dentro da pretensa, a seu ver de pretensão, ingenuidade de dois
homens que possuíam trânsito naqueles embarcadiços. A questão era como poderia
transportar uma mercadoria que eles não sabiam, se utilizando da informação tão
valiosa que achava que encontraria na mente quase duplamente obtusa dos dois
desafortunados. Acontece que nada aconteceu: Arnaldo sacou de uma garrafa de
gim, pediu para que Hans se sentasse com calma, encheu o seu copo e mostrou-lhe
uma gravação que fizera de seu smartphone com sistema Android dos mais
avançados... Não era tolo, aquele homem. Denunciaria a intenção, a ver que outros
melhor investigassem, já que Hans prometera que era negócio justo e decente.
Haveria de se ver, pois do outro lado da baía sabia Arnaldo que havia pontos de
receptação de materiais escusos. Os olhos de Hans se cravaram de ódio, e a
partir daquele instante emudeceu, em que toda a sua inteligência de conexões
prometidas havia comprometido o seu instante propício ao negócio escuso, ao
saber que as comunidades, por uma via ou outra, são tecnologicamente avançadas.
Na suposição de um dolo, veriam quem se meteria a ser glabro com seu vizinho,
assim da lisura do mal entender-se.
Resolveu-se
a questão, não haveria nada, apenas a versão de que quando pensamos que alguém
é muito mais provido da inteligência, outro vem e mostra que nas relações
humanas mais profundas não há razões na galhofa.
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