sábado, 19 de dezembro de 2015

A ARTE DO OFÍCIO

            Entre tantos lavores que passavam pela cabeça de Ramon, seu recurso máximo era alternar entre as soluções de seu modo de equacionar problemas e a habilidade de suas mãos. Em quase tudo era expedito e trabalhava para alguns ranchos de pescadores de um istmo, próximo a molhes naquela que seria a baía onde nascera, meio ponta de mar. O seu tronco era largo, o nariz aquilino, as feições duras e vincadas, a que ninguém lhe daria a idade certa, mas já era patrimônio da pequena vila daqueles pescadores, e não havia como duvidar de suas competências. Desde muito cedo, ainda quase claro o dia, enfunava seu peito com orgulho e prestava a si mesmo a homenagem que lhe cabia e que lhe davam sem pedir nada em troca. Não bebia quase, apenas mediano o suficiente, e quando lhe ofereciam o trago. Mas sempre ao cair da tarde, em que perpetuara seu trabalho durante o dia, em que sempre houvesse mais em todos os outros. Assim era a prerrogativa de sua existência, e quem desse por sua falta por sinal não haveria de muita lucidez, ou um pouquinho de atenção, pois Ramon andava por tudo e propriamente a sua presença sinalizava bom tempo como a pomba de Noé. Andavam por alto seus matos, que a ele bastava um bosque com pássaros a sentir-se bem, não importava aonde, mas convivia harmoniosamente com a realidade crua dos parcéis...
            Tanto era do ofício que não conseguia focar muito bem no de se ficar parado, meio que se era realmente expedito, seria sempre, pois sempre o fora, desde muito jovem. Saía a levar farnel, comprava a cachaça dos compadres, visitava enfermos, levava as boas notícias, não faltava a ajudar nas más, sabia discernir dos ventos e escutava as rochas nos marulhos inquietos do seu amigo, o mar. No entanto, vagava pela terra, não o sabia do navegar, pois nem ao nado lhe bastava um certo conhecer, posto a água não ser seu meio, a se pretender enfrentar. Que lhe pedissem:
- Ramon, vai pela direção aquela, me traga de bom aipim, na feira o encontra que nela hoje chega! Corre pela vila inteira e anuncia que trocam de Padre! Saiba de Mariana, minha esposa, espia que vai em trabalho de parto pra semana!
            Ele não parava, e do seu ganho merecido amealhava pão e vinténs. Pois do céu também vinha o seu vinho, e ele se regalava de estar do lado de fora, nas ruas, a ver dos edifícios, ver as gentes pelas janelas debruçadas como trabalhadoras de casas, a ver dos braços negros de algumas mulheres em que jamais a alguma tivesse oportunidade, pois o consideravam, apesar de tudo, um pouco obtuso. Talvez fosse um pouco do temperamento, mas atalhava em ordenar-se por receber demandas, onde tudo do natural,  tudo do construído lhe alçava luz, a saber-se útil e por viver sua vida sem contratempos, isso o contentava de modo raro.
            Na verdade, não havia lugar – nessa vida de zelo – a que tivesse preconceitos de qualquer natureza, pois respeitava o próximo não com escudos ou emblemas, mas de modo espontâneo, já que o conceito do prejulgamento a si era inexistente. Essa era a idiossincrasia de Ramon.
            Possuía alguns conhecidos de rua, e um deles era Arnaldo. Homem alto, barba farta derramada quase ao peito, olhos turvos de algum remédio para a mente, senhor complicado mas ao mesmo tempo simples: havia sido um bom burocrata, mas a vida lhe reservara um caminho mais árduo. Este homem era um caminhante, como tantos havia no povoado, mas estavam virando um século essas sociedades enigmáticas contemporâneas em seus jargões tecnológicos, em que uma coisa se fundia com a outra, ou muito do que se pretendia era algo como o nada. Ao olhar de Arnaldo o diálogo por vezes se turvava, e três linhas se tornavam diacrônicas na ausência de um debate de dois, posto ser importante saber que o debate deve assumir a presença de ao menos quatro, quando um media. Nada desses jargões burocráticos passava novamente ao olhar taciturno de Arnaldo, mas que muitos o viam, se viam, nesse processo.
            Certo dia, estava Ramon fumando um pito com Arnaldo quando um homem louro chamado Hans apareceu, oferecendo um bom gole de conhaque. Sequioso, Arnaldo acedeu, mas Ramon olhava meio que se distanciando, a saber, que conhecera muito pouco aquele homem mais franzino, de óculos profundos, os olhos que revelavam uma inteligência perspicaz e talento na voz: em sua voz meio rouca... Chegara do exterior recentemente, sabia muito do idioma português, pois lera muito de nossas obras literárias e históricas. Uma cultura de letras sem par, a que muitos o conheciam por fabricante de motocicletas, mas apenas negociava com importação de máquinas computacionais assim, meramente formais. Possuía uma memória de excelente enxadrista, quando se sabe que na organização de um bom negócio sabia de contabilidade quase sem registrar os livros. A conversa estava meio sóbria demais, ao que não se entendiam os três, apenas o conhaque falava mais alto, agora que Ramon, depois de olhar atento os óculos que se apresentavam, bebia sem brevidades.
            Hans, com seu olhar vestido por um cavanhaque curto, com bordas de profeta, disse, sem meias palavras a eles:
            - Sei que por aqui vocês gostam dessa vida despojada... Despojada é simples, a meio entendedor. Colocarei aqui uma estação gráfica e gostaria de arregimentar alguns homens e mulheres para trabalhar comigo, pois estou retornando a este país depois de ficar fora durante um bom tempo. Não sei se vocês conhecem o chamado Android, um sistema que implantamos, nós não, o mundo, e gostaríamos de avançar justamente sobre as populações que estão à margem desse mesmo mundo... Gostaria do avanço tecnológico em todas as frentes, no simples fato de dizer e poder comprovar que não há mais futuro sem conectividade: essa palavra significa estar plugado no mundo, compreendem?
            Arnaldo olhava por entre os olhos de Hans, mas o media o fato de não ver mais do que um homem calvo falando menos do que uma roca que falasse... Tudo bem, à meia voz, mas o homem se soltava e gostava de verter o álcool para o copo alheio. Arnaldo havia vencido graves problemas com a experiência e maturidade de poucos, apesar de contar com apenas quarenta e três anos... Foi breve, mas o suficiente.
            - Olhe, meu amigo, nós sabemos da dificuldade em se alcançar as gentes para qualquer coisa, mas o mercado está aí, e se você faz de seu mercado um bom negócio, é bom para você. Mas talvez não seja a hora de aceitarmos como apenas uma realidade o fato que você nos apresenta. Eu, por exemplo: não vejo tudo sob esse prisma e pretendo continuar caminhando, pois assim sigo fazendo meus bicos, me entendes? Já fui mais organizado, entenda-me, mas o gosto da vida meio caótica me alegra igualmente. Mas tem um lado: qual o seu interesse, senhor Hans, ou melhor, o que quer o senhor?
            Hans olhou para o lado meio nervoso, sorrindo entre dentes, o olhar febril, o conhaque ordinário já o havia guardado, e disse a eles:
            - Queria que mandassem em alguns homens que possuem essas baleeiras para transportar um material até aquela faixa, que fica do outro lado da baía. Daria a vocês uma parte do lucro... Quero que saibam que é legal.
            - Poderia falar diretamente com Tobias, o dono de três das melhores embarcações -, disse Ramon, em sua doce ingenuidade...
            Hans se manteve claudicante, a saber, vislumbrava algo escuso viabilizando alguma tentativa dentro da pretensa, a seu ver de pretensão, ingenuidade de dois homens que possuíam trânsito naqueles embarcadiços. A questão era como poderia transportar uma mercadoria que eles não sabiam, se utilizando da informação tão valiosa que achava que encontraria na mente quase duplamente obtusa dos dois desafortunados. Acontece que nada aconteceu: Arnaldo sacou de uma garrafa de gim, pediu para que Hans se sentasse com calma, encheu o seu copo e mostrou-lhe uma gravação que fizera de seu smartphone com sistema Android dos mais avançados... Não era tolo, aquele homem. Denunciaria a intenção, a ver que outros melhor investigassem, já que Hans prometera que era negócio justo e decente. Haveria de se ver, pois do outro lado da baía sabia Arnaldo que havia pontos de receptação de materiais escusos. Os olhos de Hans se cravaram de ódio, e a partir daquele instante emudeceu, em que toda a sua inteligência de conexões prometidas havia comprometido o seu instante propício ao negócio escuso, ao saber que as comunidades, por uma via ou outra, são tecnologicamente avançadas. Na suposição de um dolo, veriam quem se meteria a ser glabro com seu vizinho, assim da lisura do mal entender-se.
            Resolveu-se a questão, não haveria nada, apenas a versão de que quando pensamos que alguém é muito mais provido da inteligência, outro vem e mostra que nas relações humanas mais profundas não há razões na galhofa.

Nenhum comentário:

Postar um comentário