quinta-feira, 26 de janeiro de 2023

RESSENTIMENTO QUALQUER

 

            Abri a porta da casa, estava quente naquela tarde, o sol cáustico, vivas almas não havia, nas antes salas da rua, quase... Três sacos negros na Associação, a grade estava fechada, e um homem com bermuda cinza escura, de sandálias de dedo, com uma saco de latas, aguardava-me, em frente, na calçada oposta. A fachada da casa por detrás tinha alta e bicuda cumeeira, várias janelas triangulares, uma geometria vasta e rica, os tijolos dispostos, de verdade, tijolos aplicados em fieiras, à vista, bela construção, apesar de estilo quase ocidental. Não que fosse apenas, mas eu me sentia à vontade com a falta compulsória dos estilos. Estava meio virado o homem, os trejeitos, meio que a boca retorcia um pouco, dava de ver a trava. Bem, era um bom camarada, e eu o chamei:
            - Como vamos? – disse. – Trouxe algum brinquedo?
            - Sim, lhe mostro... – redarguiu.
            Puxou de dentro de uma pequena sacola dois pequenos carros de plástico laranjas, com as rodinhas, meio truckzinhos, um tipo de pequeno estepe de encaixe, sem encaixar bem, desconstruídas as peças, e eu sabia que ele sabia que não tinha maiores valores, assim de negociar qualquer preço de ajuda de pretexto, o homem havia caminhado bastante, e as latas não lhe bastariam sem o reforço meu, a usina era a oito quilômetros, ele estava travado de pó. Mas... Havia algo a ser reparado, uma outra questão. Quiçá uma solução diplomática.
            Falei que guardasse os carrinhos, que eu não gostara. Lhe disse depois:
            - Meu amigo, eu gostaria que falasses com o Edivilton lá no morro. Você soube do rolo, né? Bem, sim, sei que deva saber, pois é, peça meu perdão. É um pequeno passo em minha vida, se me entendas, uma reparação. Sei que ele não é um assassino e, se já foi, não o será jamais comigo, melhor dizendo, não me mataria, posto eu não o vejo como um e nem o lhe creio assim, em essência, mas luta bem o desgraçado... – Ri. – Basta que me entendas, passe no barraco dele, na casa, sei que é alvenaria, mas não importa, ele que viva melhor, uma ajuda concedo a ele, pela reparação... Pelo perdão, se puderes, se morares de acesso. Pega aqui, lhe dou estas notas, pega duas pela caminhada e dá o restante, na palavra, tá? Diz que eu não quero me inimizar, mas lhe diga também para não trazer arma branca para cá, não é legal, e o álcool, bem, meu caro, esse é o problema, o ego cresce, vem a explosão e os fascistas não gostam de negros, bem sabes. Há negros no entanto, que cumprem serviço e combatem seguindo ordens, mas é parte das forças militares fascistas e isso você tem que saber também, nem toda a cor é a mesma, mesmo sendo a mesma cor. A morte não vem da cor e nem sempre do preconceito, se me entendes... Peça pra passar por aqui, ele é um grande camarada meu, me entendes? Creia-me, não há diferenças no espaço público, mas quando se porta uma faca pode dar rolo, pois a arma, seja qual for, confere predisposição, e se alguém tem que resolver tem que se valer do que tem à mão do que se encontre, e vale um galho, uma pequena pedra, posto o improviso até o teatro natural concede, brother! Busco a paz, sou o oposto do que é infalivelmente fatal, posto creio apenas na fatalidade no sentido do inequívoco sentido da vida, assim me posto perante os seres totais, no tudo que é, mesmo nas rochas, índio, eu encontro nas rochas e na lua o mesmo significado, percebes? Não é viagem não, não cumpro ordens dos homens, minha chefe é a Natureza e quando seu sexo se abre é para ver as estrelas por dentro, posto em minha perna Aquiles me botou o tendão... Chego a crer, brother, que nem inventaram a pólvora e eu temo, pois Edivilton a conhece bem, e isso realmente temo...
            - Tudo bem Zé, eu sei, eu sei, farei. Falarei com ele, e não terá ele maiores problemas, seu que é um cara bom. E você...
            - Eu tento, meu amigo! Leva a grana e mais, diga a ele que é um dos melhores soldados que jamais conheci. Diga que preciso do seu conhecimento da luta, pois sabe ele que sou branco, mas sou conhecido por negro, em alguns lugares, me entendes? Mas não sou o que pensam que sou, sou o amálgama que constrói a paz, apesar de precisar dos fortes para fazê-la acontecer! Era apenas um ressentimento na minha cabeça, só isso, nada mais, fiz-me entender?
            - Positivo!
            - Então vai, te avia, fica com quinze.
            - Té então, companheiro, grato.
            - Eu é que agradeço...

Nenhum comentário:

Postar um comentário