A obra é de arte,
premissa básica, mas não comecemos por lógica, pois havia um
ponto, uma reta, Kandinsky talvez ensinasse cabalmente… O suporte,
quadrado quase perfeito, com um detalhe: mal cabe no cavalete, mas
este aprumasse no lugar de colocar os pincéis, podemos diluir as
tintas com querosene, mas terebintina é mais clássico. Há um tom
que se formou de uma antiga pintura, que fosse etrusca, algo assaz
antigo, mas sim, talvez o suporte fosse antigo igualmente. Tracemos
os desenhos, quais arabescos, reforçando para não perder o nexo da
forma, a que tentemos dizer algo, como um suposto literato tenha para
dizer.
A obra está pronta, quase, mas parece inacabada, uma
obra em aberto, os parênteses de suas funções na percepção, seja
de onde esta vier, uma peça de arte de tinta, tanto que dá para ver
os relevos… Uma mancha azul recobre um nicho de aparente cinza que
lembra o cimento, mas eis que se ergue um poste laranja, tecendo
lindos contrastes, pois azuis e laranjas com várias nuances
cromáticas, o que revela a maestria do pintor. Miríades de pequenas
pinceladas, feitas de borboletas que crescem de cima para baixo, como
em um pouso coletivo da Natureza fazem da transição entre as cores
um ponteio poético e de lilases em fuga. Há apenas uma pincelada em
vermelho encimando uma torre verde de marfim, entre verdes e cinzas
coloridos que não se passa nada a que tivesse qualquer significado,
pois é de um abstrato a pintura, mesmo sabendo-se de cores várias,
sempre dentro da complexidade de uma harmonia de vários
timbres.
Eis que surge um rosto, algo côncavo, traçado em
três segmentos de linha, e outros, mais espaçados e curvos, com o
pincel de um siena natural, pespontado com o siena queimado, e
valorizado com turquesas nos olhos de quem vê, pois pode ser que não
haja qualquer azul desse quilate, mas a palheta manda que
simplesmente exista dentro do compasso dessa pequena música de
cores… Assim é do que um interpreta, não queiram nunca que a
crítica saiba o significado da arte, pois o maestro que desfruta
pode nunca ter visto uma tela no xingú. Uma pintura para indígenas,
mas eis que o índio olha dentro da tribo e vê, em um modo de
alcance sem igual, que em seus passeios pela floresta tem visitado
cores que existem… E, quando veio à cidade, viu muito daquele
cinza, daquele cimento, e viu braços e mais braços dando fé de
outras obras, e viu braços obreiros, e viu também, em sua passagem
no sair da reserva outros serrando as seivas, roubando troncos, e
nada viu mais, pois viu que não demarcaram ainda quando seria o
tempo, e viu a televisão, e viu e sentiu o gosto da cachaça, e foi
boia fria, e viu o calor do sertão, viu o sofrimento e sofreu, e
mesclou-se na excludente vida. Eram anos de chumbo o que viu,
percebeu as fronteiras, e nada mais do que havia em suas próprias
que não existiam sequer, e viu o branco, e viu a morte, mas nada
viu… A obra está largada na terra, meio enterrada, meio nua, a
sentir na veia que passou por ali outro mestre da pintura que ninguém
conheceu, pois que apenas vivenciou o túmulo da cultura em um país
latino americano, e os rios se formaram de dentro da pintura, a
Amazônia pediu ajuda e não a deram, e tudo o que se fez no país
perdeu o sentido, e os homens não perceberam mais nada, pois ficaram
articulando paraísos prometidos de dentro de celulares, ou mesmo
fins do mundo de dentro de livros de capa preta. E não houve mais a
arte, foi definhando pouco a pouco até que uma queda de um grande
jacarandá destroçou o que restava da pintura, e as raízes abriram
um grande buraco na seiva da terra, e esta pediu socorro, e não
deram, e continuaram, e continuam...
sexta-feira, 16 de dezembro de 2022
DESCRIÇÃO DE UMA OBRA
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