I
Houve um dia, apenas um daqueles em
que estivéramos abraçados em pensamentos e sonhos, mesclados com o amor do
carnaval quente da zona sul. O sol era da intensidade de nossos corpos, o mar
insuflava as veias, as cervejas suavam pelas nossas sedes, ainda havia o mesmo
amor que nos consumia de prazer e alegria. Mas havia a luta... As canetas que
hoje gasto sobre a superfície branca do papel dizem-me toscamente que a mesma
luta brotada e renovada se acomoda e se apresenta como um grande painel onde
deixamos brotarem as nossas seivas de sempre. Uma década conturbada. Rio de
Janeiro: semântica de todas as maravilhas, cidade selva de pedra, litoral e
chumbo.
O apartamento de Angélica havia
estado alugado por um tempo e eu retornara de São Paulo para conceder um mês ao
meu descanso. Ela deixara as chaves na zeladoria, o condomínio era simples,
carregava eu pouca bagagem. Precisava encontrar meu irmão que viera para
descansar um pouco do duro ano que passara no sul. Sua existência oscilava na
plataforma que buscava nunca enunciar a ninguém. Temia sempre que alguém
descobrisse suas idiossincrasias de homem bruto por necessidade e postura.
Deixara um número com minha amiga. Os celulares ainda não eram tão populares,
no entanto cada um de nós três possuíamos um. Sebastião, um camarada negro e
encanecido abriu o portão. Não era a década das câmeras...
- Ricardo, que bons santos
guerreiros o trazem? – Exclamou feliz. Sabia da minha chegada. – Angélica saiu
de manhã, disse que vem almoçar com você mais tarde, pelas duas.
- Tião, como vai? Falaram-me que
você esteve doente... Espero que esteja tudo bem contigo.
- Vai-se caminhando. Talvez tenha
sido a cachaça. Meus nervos não cabem dentro do álcool. Bem que gosto, mas
agora a Zenaide me botou quase para fora de casa. Era a “marvada” ou a minha
esposa. Você sabe, a gente bebe e dá nisso... Já estou com setenta primaveras,
perder a Zenaide seria a minha laje.
Tião me parecia triste e eu o
soubera agora desse grande sacrifício que é largar o vício. “No entanto”,
disse, “estou pitando como nunca.”
- É por isso mesmo que lhe trouxe um
presente: três cachimbos que não uso mais e um pouco de fumo lá de São Paulo,
tabaco do bom. São cachimbos antigos de ótimos fornilhos. Onde trabalho não dá
para se demorar fumando, eu fico no cigarro, pitando mais rápido! Ha! As nossas
manias nos acompanham! – Disse eu, tentando levar nossas preocupações na
esportiva...
Tião olhou-me com os olhos já baços
da catarata:
- Olha, esse negócio de mania eu
tenho mesmo. Se não dou no fim de semana uma flor para o mar, Iemanjá me
esquece, companheiro... Que é tanto mar, Ricardo, que nós ainda veremos esse
mar se levantar no timão da própria força que surge sei lá de onde!
Baixei os olhos e o velho se quedara
turvo e triste. Como era a tristeza de muitos em se trilhar das vilas
miseráveis aos trabalhos nos bairros mais ricos. O cansaço renitente, a vida
quase desfeita por vísceras etílicas naufragadas quando da ausência, o samba de
raiz que morria a cada dia, os jovens perdidos na solidão pungente das drogas.
E o pensar-se ainda que eu não ficasse muito tempo, em minha presença que a ele
sempre fora preciosa. Fui breve:
- Enquanto estivermos neste mundo,
Sebastião, deixaremos as malas dos ressentimentos nos armários. Guardamo-las para
que não saibam das nossas questões íntimas, a não ser que se floresça a
compreensão humana entre os homens que somos e que em raro compartimos a quem
mereça e de sincero desejo for.
- Não te preocupes, meu caro, é só
uma ponta de pesar. Meu filho foi preso dias atrás... Já está livre, mas recebo
como uma arraia na têmpora, que por vezes não me sustento. Disse a ele: tomasse
tento na vida. Tem trinta e oito anos e enveredou por esses morros afora, que
nem sei. Separou-se da mulher e anda por aí na sinuca e na malandragem. Um
homem feito, com quatro filhos ainda por educar.
Tião me olhava com uma sinceridade
de poucos. Eu estava bem cansado com tudo o que acontecia de se ver tão de
perto essa estranha engrenagem que ainda acontece, essa desigualdade sem
trilhos, sem lugar, sem tempo. Por mais que seja gigante o nosso ideal, sempre
haverá uma questão em eterna discussão, um embate interno de toda uma
sociedade.
- Escute, meu amigo. Vou subir para
ver se está tudo acertado no apartamento. Depois, quando Angélica vier,
almoçamos nós três por aí, se queiras.
- Pois é, depois vemos. Eu vou
sempre no Olívio... Falar nisso, o dono do Luna falou de ti com saudades.
- Depois podemos ir lá almoçar.
- Ah, mas às duas estou por aqui.
Deixa, pois de qualquer modo marcamos outra hora.
- Tudo bem, acertado. Nos vemos. – E
subi com as duas malas.
II
O apartamento em Ipanema ficava
perto do mar. Estava bem arranjado com a disposição de seus pequenos e úteis
objetos em cada lugar. O mais simpático de todos: uma garrafa de gim esperava,
em minha sede. Mas mesmo assim não me aventurei, pois a cama me chamou mais
ainda e a garrafa deitada no estômago não valeria meu urgente e reparador sono.
Dormi, depois de fechar as persianas do quarto.
Acordei meia hora depois com a porta
batendo à entrada de Angélica. Aí sim, corri para ela como quem quer degustar
um bom conhaque. Abracei-a e ela freou-me:
- Espere um pouco, também estou com
saudades. No entanto vou preparar antes algo para comermos, uma salada, pois
trouxe um frango assado e temperado. Parece que botaram um pouco de cominho,
mas passei a gostar disso.
- Irra!
- Pois sim, Ricardo... Trouxe umas
latas de cerveja para tomarmos apenas duas cada. Lembre-se: aqui as coisas são
diferentes... Quer dormir com qualquer uma? Não aqui dentro.
- Ah, sim? E quanto a nós, morocha?
- A nós não sei, meu amigo. Sempre
assim me canso de esperar. Você olha para todas e segue sozinho.
- Assim espero estar, minha criança!
- Comamos, é uma ordem!
Fartamo-nos com o frango e a salada
preparada no improviso, visto ser o toque do azeite de oliva com o limão e sal
os incrementos substanciais... Ela havia arrumado minha cama no quarto de
solteiro e eu pressentia, mesmo ainda antes de chegar, que dormiríamos ambos na
cama de casal, pois soubera que Angélica estava sem ninguém. Achava eu que era
– porventura, em minha pretensão ridícula – um homem ideal. Quimeras, bobagens,
apenas mais um no mundo, como continuo sabendo disso perfeitamente hoje em dia
nos meus apontamentos, nos meus trocos, nas minhas letras. Apesar de saber
sempre de nos agigantarmos como talha verdadeira e necessária, cada qual. Se um
está menor, o outro acresce no companheirismo próprio da existência. Como um
termo de compromisso, uma espécie de vida em sagrar-se digno, de saber-se
atuante dentro de uma consciência cabal na ordem de uma sociedade, como tantas
as que havemos! Mas que somos iguais, mesmo em luzes mais tíbias, no
crescimento de uma espiga ou no caminhar de um indigente. Este, por vezes,
conhece mais do mundo do que um medalhão da ciência, posto não possuir apenas a
cadeira emblemática e sistêmica das academias. Estas necessárias, no entanto,
em ao menos compreender a vulnerabilidade do próprio modo de existir na
superfície já bem massacrada em nossas tênues passagens pelo mundo.
Pois sim, comemos e nos fartamos, e
Angélica ao erguer – como mulher – as esperanças que eu guardara em meu peito
começou em um discurso em que eu dera-lhe o meu semblante de audiência. Falou
como quem falasse a si mesma, como a mesma consonância do verbo em que tantas
vezes eu – admirado – a escutara. Não marquei tempo, não marquei hora. Apenas
tentei redargüir e ela atalhou-me a meu próprio pensamento. Tecia-me em sua
declaração que eu era como um homem irresponsável nisso do companheirismo que –
segundo ela – era condição inequívoca para a comunhão entre o casal. Sabia eu,
desde que nos conhecemos, de uma Angélica libertária, feminista, autêntica:
revolucionária. Também o sabia que ela tinha por posse algumas prerrogativas
que por vezes derrubava as suas posturas no mesmo chauvinismo talvez
inconsciente que em certas questões tornava obsoletas as condições e
pressupostos teóricos de sua existência. Justo quando se apercebia que eu não
era como qualquer outro, posto não ser o engodo de mulher alguma, não ser
propriedade de ninguém. A esse ponto não compreendera, e seu discurso me
pareceu previsível à vista de apreendermos que um homem como eu só aceitaria o
mesmo companheirismo antigo que a ela parecia anacrônico, mas que acompanha na
verdade o fato de que se a um mostra a fidelidade, a outra mostra a importância
pelo menos do esforço mútuo: da ausência de dúvidas, da construção de uma
relação a um par. O número dois, as forças, a dinâmica... A certa altura,
Angélica perguntou-me:
- Entendeu, Ricardo? Parece que
estás na Lua. – Seus olhos perdidos nas órbitas de um crânio inquieto e lindo
conformavam com a sua pele de veludo algo a se pronunciar os lábios tenros como
o mel em sua tessitura silvestre... Os mesmos olhos de sempre, negros, falavam
a mim outras palavras e isso o disse a ela:
- Apenas, infelizmente para você,
escuto o seu olhar. Nossos diálogos sempre foram pontificados – nas boas horas
– pelo silêncio, cara acadêmica, posto que em nosso pensar não havia teses nem
universidades, apenas o conhecimento tácito de nossas lutas refletindo na
serenidade de nossa mirada quando, absolutamente, se encontravam, dando a urgir
o sem tempo do nosso amor, a forma intrínseca de sermos enquanto seres, de
sabermos compartir como naqueles tempos em que acordávamos com as pernas
entrelaçadas, com os teus seios em meus lábios. E agora? Agora sei, apenas não
há. Nada existe. Não há da tua comunhão, nem da minha. Não te importunarei
mais, convivamos por este espaço. Já sabes, não sou homem de muitas palavras e
as que as tenho ainda assim considero preciosas, mesmo no desgaste que nos
silencia pelas relações fracassadas, linda.
- Sei, apenas pressinto as tuas
idéias de mentira... – Disse ela, os olhos faiscando por jamais possuir-me, que
a posse eu não a consentia... Meu social partia das primeiras relações, e ela o
soubera sempre, crendo que a separação a que me submetera me faria voltar com a
cauda abanando. Trocadilho infeliz da minha parte, mas esse retrocesso
espiritual vinha da sede que - na maior parcela - um homem e uma mulher tecem
por uma intimidade bem sucedida.
- Você - disse-me ela – achava que
me tinha por aqueles dias, e agora aqui na cidade maravilhosa vem por pousar
nas camas de uma mulher que já fora tua, no sentido literal do verbo.
- Estou aberto em feridas do Sul,
linda. Estou cansado de uma espera em esperar tanto que já não sei. Não houve
mais nenhuma e eu não concedi espaço para tanto, cara mulher. Abraça-me mais o
ímpeto das mudanças, o clamor dos povos, a semântica da Natureza, esta por quem
eu dou o meu sêmen em pensamentos, e não numa camisa de borracha!
Angélica quedou-se em um silêncio
profundo, sabia no íntimo não poder me conhecer inteiramente e aligeirou-se em
sorrir em um velho costume de companheiros que se encontram. Sabia, no entanto,
que temia por mim no seu secreto parecer de mulher educada e culta de boa monta
que era. Passou a sua mão sobre meus olhos, estes que viram no olhar – antes
duro – dela, a superfície sagrada da ternura.
III
Angélica se separara quando era
jovem, precocemente. Nos seus cadernos, em meio a eternos estudos, anotara as
suas memórias, os seus presságios, em desenhos também realizados com
incansáveis canetas negras. Mostrara-me alguns rabiscos, uns tantos, que eu não
os pudera crer no espelhamento de seus textos, também tal a precocidade
perspicaz e dura de sua existência. Filha de um viciado em jogatinas e álcool
refugiava-se desde criança em seus rabiscos e letras, estas que seus irmãos
mais velhos – Pedro e Lúcia – lhe ensinavam. A cada palavra, a cada sílaba
pronunciada nos secretos nichos do papel, por vezes um desenho de libertação.
Um ouro representado por um pequeno projeto, uma esfera cônica de invencionice,
uma palavra maior, um período, uma pequena frase dizendo o muito do se contar.
Em síntese, possuía a válvula do escape, a veia, a criação. Literatura e arte
sempre houve em sua casa: bons livros, enciclopédias de artes visuais, argila,
tintas e papéis. Tanto nos sem pauta aos desenhos como nos cadernos que povoava
com os seus sonhos, suas miríades de estrelas e seus caracóis marinhos que
copiava da fauna cristalina e crua da Natureza.
Sua mãe praticamente chefiava a
casa, dando a sustentação financeira e arrimo moral que seu pai não
consubstanciava. Chamava-se Helena e era morena como a filha, de tons
acobreados, os olhos igualmente negros, seios fartos, ríspida como um rastilho
intermitente de pólvora. Seus filhos a respeitavam muito, além do necessário,
pois o pai lhes faltava na sua condição desestabilizada em que apenas arvorava
seus ímpetos chauvinistas de ter sido bravo politicamente em um remanescente e
duvidoso período. De nome Antônio. Vivia de lembranças, jogava os dados para se
refletir nos números e bebia para esconder de si mesmo seus próprios temores.
Vivera Angélica em um lar de grossas
paredes e não menos fortes aberturas, com madeiras centenárias, em um solar que
fora de antepassados de Helena, sua mãe. Antônio se casara com Helena já aos
trinta anos. Criara-se em uma casa de adoção. Era de origem ucraniana, do Paraná,
onde aprendera o ofício de tecelagem industrial em um curso e ganhou a
independência em fábricas mais ao sul do país. Em viagens a São Francisco do
Sul, em Santa Catarina. Conhecera Helena que tornou-se sua companheira e mãe de
seus filhos. Angélica, a mais nova, aos vinte e dois anos foi para o Rio de
Janeiro contratada por uma editora no ofício de revisora e lá aprendera, com a
efervescência cultural da metrópole, a escrever profissionalmente e vivenciar o
ramo gráfico. Casara-se aos vinte e cinco e aos trinta anos separou-se, sem
filhos. Aos trinta e cinco, independente, já era talhada como mulher engajada e
guerreira nas atitudes e no caráter. Jamais jogara as moedas no acaso que
propriamente da existência simplesmente ignorava. Não bebia pela embriaguês,
mas por esta de seus companheiros no sabor urgente de um bom vinho. Tecia
frases, e a poética de meus trabalhos encantavam-na. Ria à socapa sincera
quando me compreendia em equações que as sabia complexas. Sorria com o olhar
brilhante que a mim atenuava – por inércia festiva – as tensões dos dias...
Parecia-me, por questão de
similaridade, que ambos fôramos cunhados na mesma moeda, cada qual apenas por
valor formal, do ouro espiritual que predispúnhamos a ser: uma moeda sem valor
de troca, sem as mãos dos outros, que apenas em sua rotação infinita faria
encontrar – em seus reversos – a existência pura no mesmo espaço. Um quadrante
sem selos dos impérios, um valor apenas de mineral sólido, indestrutível,
resistente como os rochedos inerentes dos abismos marinhos, ou mesmo em uma
erva que não percebemos por uma vereda na luz noturna das estrelas. Assim
éramos, talvez inconscientemente, talvez desabrochássemos nessa vertente. No
entanto, apesar das diferenças que possuíamos, nosso amor era intenso e límpido
como o romper de uma chuva na montanha.
Da janela do apartamento dava de se ver
o morro Dois Irmãos que, rocha sólida, só me fazia pensar de um modo sui generis, resultado de dois anos de
relacionamento que tivera com Angélica.
Haviam passado dois dias. As camas,
ainda separadas, davam um indício de que haveria um resguardo maior por parte
dela. Eu não me ressentia, pois a cidade ainda era possuída pelo mar, ao menos,
na minha visão de exemplar barbudo da espécie. Outra manhã... Outro assunto...
Eu buscava especular, apenas, ensimesmado nas minhas promessas que fizera a mim
mesmo. Era uma solidão compartilhada a dois, cada qual com a sua chave mestra
de ambos os cofres, dos tesouros e ressentimentos improváveis. Uma melancolia
nos abatia naquelas horas e eu atinava a trabalhar minha literatura, apenas, e
concordava quando ela – curiosa – vinha matar a sua sede intelectual no meu
trabalho. Certa tarde, enquanto lia uma espécie de conto meu, veio dizer-me da
gramatura, ou peso do papel. Creio que sob algum pretexto:
- Ricardo, você já imprimiu capa de
livro com couchê fosco, em 120
gramas? – Olhava-me atenta, talvez sabendo que por baixo da gramatura de meus
olhos ela percebesse que havia um homem se distanciando... Não que eu quisesse
esse padrão desconforme, mas a mim já não se passava nada. Estava alheio a
coisas fora o meu modo de trabalhar e viver. No que respondi a ela:
- Olha... Geralmente quem decidia ou
decide é o editor...
- Pois é, querem me colocar nessa
função, eu creio... Saiba, Ricardo, que não estou suportando essa indiferença
tua! Mata-me de melancolia...!
- Aí sou eu quem passa a não
entender o suficiente. Fale-me da Natureza, do mar, e não da celulose em uma
árvore derrubada no palco de suas mentiras! Que quer de mim? Um asno? Um patife?
Mande-me embora, se queiras, mas não tome da fé que eu sou um imbecil! Chega
das mentes cabulosamente industriais. Queres me tomar como mais um em tua
charneca, pois finca a bandeira em outro território, pois por ti também
desfaleço, querida companheira!
Angélica começou a chorar
convulsivamente, eu apenas lhe trouxe água... Deu-me um abraço... Disse que
estava tudo muito complicado, que ela já não suportava, nem confiava em
ninguém.
- Meu querido, por que me
abandonaste daquele modo? Só porque eu andei com Carlos por uns dias?
- Não te abandonei, linda, apenas me
resguardei e à tua retaguarda te desvencilhei das bobagens que passavas a
cometer. Tais eram as tuas ações pelas quais não te freaste. Fui para
Florianópolis, pois lá – apesar do pouco que se dá às artes e à literatura –
pude seguir lecionando como sempre o fizera, sozinho. Apenas a minha vida...
Não mistures a falta com a substância, pois uma pode ser plena e a outra, oca.
Esse mundo também é dual, querida, se não compreenderes essa lógica não poderás
ver com olhos semicerrados, pois é nessa luz que nos agigantaremos...
- Entendo. – disse-me, enxugando as
lágrimas.
IV
Angélica passou a ir comigo à praia,
naquelas idílicas férias. Estávamos sempre em Ipanema e nessas circunstâncias
de camaradagem nos aproximávamos mais e mais. Os dias passaram como que
repletos, as grandes ondas que pegávamos com o peito, os mergulhos, a profusão
das pessoas que ornavam a orla, as famílias, os casais, os vendedores, as ruas,
o comércio, todos pungentes como o sol que abrasava.
Como toda boa jornalista, Angélica
se mantinha fiel aos fatos, mesmo com essas férias de verão. Quanto a mim, chamavam-me
de escritor e eu mantinha-me sereno, com o ego compungido e restrito ao
pretenso ofício. “Quem dera,” pensava eu, “apenas cumpro com uma necessidade de
permanecer pensando,” redargüia em meu diálogo interno, em modéstia que cria
saudável, para que os companheiros não percebessem que é tênue a linha que
divide a ficção da realidade. Optara eu – por ora – à ficção e nela talvez
tivesse permanecido por receio. Mas de um sentimento de escrever com todo o meu
corpo, e a mente pétrea de um espartano, o ideário concreto da inteligência,
este me perpassando a comandar meus próprios sentidos, numa ida e volta, nas
potenciais contradições da existência em resguardar no fogo das mensagens: aí
sim, no espírito, que eu preservava com o furor até de útero que não possuo,
nas ondas de um rebento que brota no parto, na missão que me impunha a nunca
faltar com a Verdade, mesmo no arcabouço do que se chama a ficção em nossa era
tão vulnerável ao ilusionismo e às mesclas que se fazem no tempero das diversas
realidades criadas em sua própria confusão.
Urgia, na quarta-feira, encontrar
Cláudio, meu irmão, para conversarmos a respeito de um jornal que já me dava o
de pensar e o de se trabalhar os tutanos. Falei com Angélica que ele iria
pernoitar no dia seguinte e ela se quedou feliz, pois guardava um grande apreço
por ele, no que me consentia total liberdade, engendrando o companheirismo que
ainda vivenciamos em plenos quilates.
V
Via-se, num dia cor de chumbo, uma
face da cidade maravilhosa. Levantei-me com o meu irmão, cedo como eram os dias
naquele carnaval. Cláudio me parecia resignado a ver que o jornal talvez fosse
uma ilusão, pois a quem seriam necessárias outras palavras, outras letras? Não
estaria tudo nos conformes? Um cálice de veneno nos perpassava até a medula, e
por vezes já não sabíamos de onde vinham tantos os descaminhos do regresso...
Críamos que fosse ilusão também. Críamos por necessidade atávica de ainda ver
ao menos uma sincera humanização em vilas miseráveis, em imensas favelas, mas
certos ruídos de helicópteros de multinacionais nos atordoavam a razão. Talvez
a grande queda de braço entre a intenção e o patrulhamento, um genérico
sentir-se no tentacular braço do poder. Fazia dois dias que Angélica não
aparecia. Dois eternos dias. Às dez da manhã deu de seus ares, devidamente
documentada. Uma Cannon recheada de
imagens, material de imprensa alternativa, e gravações nem tão legais assim.
Disse-nos:
- Ricardo! Cláudio! Temos agora um
jornal. As redes estão esperando descarregarmos conteúdo diretamente do olho do
furacão. Uniremos ainda mais toda a América Latina. Na verdade, foi um ataque
às máfias das drogas. Um fogo cruzado; parece que os jornalistas externos estão
por aqui. Como sempre, certas mídias se aproveitam para os momentos críticos
como esses lá nos morros. O pior já passou. Não foi um tipo de golpe pontual,
mas uma pacificação forçada, mas temos que mostrar certos agrupamentos de
forças e abusos autoritários, mostrarmos que agora a cidadania ter que se
impor. Tenho uma prensa que rodará nosso tablóide amanhã, se bem trabalharmos
hoje e virarmos a madrugada! Quentes e novas do forno são as notícias.
- Sempre é bom que nossa opinião
seja aceita nas vilas operárias, é para lá que vou agora, então! – Cláudio
estava praticamente com a sua fecunda mania...
- Nada disso! – Disse eu. – Nada de
prelos também. Não quero ver nenhum folheto, nenhum caderno nas ruas. Antes,
quero ver o que você conseguiu trazer, Angélica. Você é jornalista, mas não se
deixe emprenhar pelo obsoleto de certas atitudes. Saiba de algumas peçonhas...
- Já mostro o que trouxe. Você, como
um bom redator me dirá e eu seguirei, mas é farto e bom material.
- Escutaremos hoje o noticiário, são
fatos pontuais, a presidenta segue forte e o governador está dizendo para todos
ficarmos calmos e reservados. Mas sei que não há como. Houve graves
enfrentamentos e se passa que: onde, precisamente, e quando, e como, são
perguntas às quais não temos respostas.
Era condição sine qua non que nós nos aproximássemos da bagatela de um dia a
mais. Se não fosse pelo ímpeto, na verdade seria apenas um jornal para que
sobrevivessem as nossas idéias. Disse eu a Angélica algumas palavras – duras –
no sentido de saber um pouco sobre a crítica gratuita e o seu veneno que se nos
impõe.
- Angélica! Tenho algo a lhe dizer,
companheira. Talvez possamos botar um jornal na internet, talvez o façamos na
prensa, mas você e Cláudio têm que saber que esses fatos apontam para uma
medida de forças em conflito... Não teçamos quaisquer preços no recrudescer da
violência, pois esses mesmos valores transcendem o “espetacular informativo”.
Justo, sermos obra e ciência, paradigma e padrão, crédito e farsa, somos tudo
isso também, não nos esqueçamos, querida. As fotos da ocupação das favelas são
previsíveis, pois vi na TV a imagem crua dos tanques de guerra. Espero que por
aqui não haja uma transfiguração de certos conceitos.
- Não se preocupe companheiro! São
fases e assentamentos de desditas, brinquedos de jovens e velhos poderes.
- De qualquer modo, minha querida,
quero dizer-te que nem tudo o que apreendemos vêm pelos canais que encontraste
em tua ainda pouca experiência. Nada é um brinquedo quando ou por onde estão as
armas, desde um indefectível não até uma ogiva silenciosa em sua potência ao
horror. Não queiras brincar com o poder pois é quase sempre ele que nos dilui:
em suas buscas, suas prerrogativas e suas certezas. Saiba uma coisa, mulher dos
olhos de cristal, o vento é o que finaliza uma hecatombe e a espalha, dentro de
suas próprias alavancas. Cláudio e você ficam aqui, eu compro o café e os pães
e a manteiga e o queijo, por suposição... Ha, He, He. Sei o que acontece,
amanhã é dia de paz crescente e na minguante ficaremos acordados dormindo, pois
é isto que se nos toca, em presente luz!
- Eu não entendo. – Disse Angélica,
com (agora) o rosto mais sereno de estar segura.
- Não é bem para entender que
existimos... Intrinsecamente é para o saber, conhecer, fruir e viver.
- Meu irmão, - disse Cláudio – você
está cagando pelos olhos, me desculpe a expressão!
- É melhor assim – disse eu -. Desse
modo espalho com maior facilidade e os vermes se locupletam de bosta!
Todos nós rimos... Saí do
apartamento, comprei bebida destilada, dois CDs de Martinho da Vila, um de Beth
Carvalho e comemoramos o humor em um petit
comitê, festejando apenas mais um presságio!
VI
Ilusão que eu empunhara qual
bandeira a se derramar em hora necessária. Os dias naquele pós-carnaval
espumavam como cavalos exaustos, a quem se dava, àqueles que se doavam em sobre
existir na consciência que por algumas etapas fazia sobre escrever o revés na
ausência, compensado apenas na presença das lutas fosse em qualquer lugar do
mundo. Pois, na Verdade, o espelhamento nosso e cotidiano valia a crer em um
mundo melhor, mais humano, coerente. Para isso, resolvemos: eu, meu irmão e
Angélica a dispensar registros e desenhar imagens e letras de rompante, no
caudal rumoroso de descobertas no mesmo cotidiano, nas frases que nos
acompanham e nas imagens feitas verbos que nos soletram.
Por minhas caminhadas ao Leblon,
havia encontrado na orla uma antiga companheira de nome Sônia: acrescida uma
aos três... Já estávamos em quatro. Não era o jornal mais a preocupação, nem as
ocupações; sedimentado o Estado democrático reinventávamos, com textos e
imagens, antigas rodas, pontuando entre a arte e a filosofia, se entendermos
que é este o nome dado à faculdade de se pensar e exprimir. Enfim: seres
atuantes que somos, repartíamos o pão de nossos conhecimentos... Crônicas,
cartolas, frases brotavam de questões com alvores de próprias luzes e o
apartamento tinha também Tião que, com melhoras familiares, consubstanciava
tentativas em atitudes, sonhos em ideários e costumes consagrados na
efervescência daquele nicho cultural que se chama Ipanema, Leblon e Copacabana.
Sônia morava no Leblon e Angélica passara a conhecê-la como minha nova
companheira de praia, conversas e aquarelas que ela desenvolvia com maestria.
Eu a descobria na efêmera eternidade de seus gestos quando pintava veladuras
sobre superfícies ainda úmidas...
Compramos dois laptops e passamos a nos comunicar, mas Cláudio ainda – em seu
espírito irrequieto – continuava nos manuscritos originais, o que dava ais ares
de certeza em sua arte. Zona Zé passou a ser o seu jornal e a Xerox das letras entintadas à mão o seu
processo de atingir alguns que comercializavam seu trabalho, na distribuição do
novo, da forma à vanguarda cultural. Cláudio era eternamente enamorado de
Angélica. Vivenciaram intimidades, mas agora ela preferira o trabalho
jornalístico como uma plataforma existencial, base de sustentação na estranha
sociedade onde o affair move certas
maneiras por vezes contrárias ao esteio das mudanças, o mesmo de se falar das
posses existentes, inversamente proporcionais às desigualdades que invalidam a
progressão do erotismo revolucionário. Há casos em que a boa luxúria se
transforma em ira, quando alguma interveniência, qual veneno, prejudica muito a
vida do par. Ou a própria luxúria nefanda, no ingênuo pensar do indivíduo,
enquanto outras cabeças, na cobiça de seus pretensos e literais paraísos do
planeta, manietam os povos em suas tentativas de conquistar seus objetos de
prazer: um carro, uma mulher, uma grande festa privê regada ao privilégio daqueles que entopem suas veias de
soberba e ganância, banhando os corpos com os leites de seus fracassos...
Seguia a barca e o dito geopolítico
interesse virava sempre uma pequena ampulheta de tempo ignorado, esquecida no
canto de um painel inexistente. O nosso fazer, o nosso expressar, o nosso
construir era sim, este, um vitral compondo luzes com o amálgama duro nos seus
interstícios. Discutíamos, reservávamos horas, desenhávamos e a crítica
despertada não era mais aquela em que se nos prescrevem para cairmos
envenenados sobre um sofá de pedra!
VII
Estávamos atentos sempre em nosso
afã. Prosseguíamos quais máquinas de criar. Um adendo apenas: o sabermo-nos
humanos fazia-nos seguir a senda espiritual. “Qual?”, dir-se-ia. Posto o corpo
ser a veste, posto o corpo ser a máquina, e o único proprietário do planeta
chama-se espírito! Anima, alma, atma.
Como em uma árvore derrubada, outras vêem em seu silêncio nos espíritos da
floresta. Como na água de um rio os seres que habitam e nunca – jamais! –
requerem propriedade, pois apenas e submissamente são mortos pelas devastações.
Um parágrafo para que aqueles que lutam por melhores dias saibam que os
movimentos populares urgem e clamam por Natureza, por parques, por mares
despoluídos e não as cloacas que lhes sobram quando descem de suas moradas, em
seus riachos feitos esgotos a céu aberto. Na verdade, é nas favelas que reside
o estudo necessário para se melhorar. A “pacificação” passa a significar em
alguns sentidos uma mordaça às condições insalubres das grandes massas na
periferia das metrópoles. Massa obreira, massa que vive ainda em um país
extremamente desigual. Não nos iludamos. O que as televisões apresentam para
essas massas apenas confunde, infunde preconceitos, segregam e marginalizam o
pobre que segue por sua vereda como um verdadeiro herói, condição heróica de
toda a massa brasileira. Meu Deus, -
pensava, reunidos aos amigos – tanto, mas tanto a se debater, a questionar,
posições a serem discutidas, que a proximidade da própria – porém rara – classe
média que possua uma postura mais progressista seria de um ideal: melhores e
mais humanos médicos, melhores engenheiros, melhores professores, aglutinação e
força no grande passo libertário de uma nação.
Ilusão? Utopia? Não: razão,
conhecimento da realidade, consciência de que a doença se dissemina nessa turva
e protética margem das camadas educadas, pois estudam para segregar-nos; em
síntese: quem vos fala dá o seu sangue para a química que cala, mas não consente,
que seda, que exclui, que leva um texto para uma ilógica semântica agora da
primeira pessoa, que a torna lenta e desagrega, que torna bom o melhor e torna adaptada
a face brilhante da justa rebeldia, que faz o são ser alcunhado louco e aos
dementes os nomes da pretensão dos normais... E raramente faz alguns escaparem da
bastilha de sua própria realidade mental.
VIII
Fatos relembrados... Apenas gastara
eu alguma saliva com meus amigos. Estupefatos, não rebateram, aceitando. Mas eu
não escrevia, apenas uma grande Ágora na Farme de Amoedo, em Ipanema. Estávamos
presentes, e a arte também – fortemente – dava os seus ares. O sol era por se
dizer algo que o tinha em minha lucidez como o meu maestro, iluminador padrão
dos meus ofícios, e resguardava com ele minha função de homem. O Zona Zé já
obtivera uma primeira edição em uma gráfica do Flamengo e, por meu lado, me era
reservado o humor, talhado que era para tal. Passei a gostar disso. Angélica
era a chefe de redação e Cláudio o administrador. Três pessoas para oito
páginas tablóides mensais. Um excelente resultado, comemorado todo o sábado no
Sindicato do Chope. O que antes fora um investimento em trabalho verteu um
retorno mais do que o esperado. Passara o carnaval e o jornal já estava em
Ipanema e Copacabana; tiragem limitada, no entanto, distribuída nas bancas na
extensão dessa orla. Não tinha sequer a pretensão de ser algo além de sua
informalidade, apenas sabia das horas e honestidade de seus desenhos e letras,
tal qual o Pasquim, que fizera real história
no arcabouço cultural de todo o país.
FIM