quarta-feira, 30 de março de 2016

UM DIA EM SEU OPOSTO

          Madalena saiu de sua casa amuada, naquela tarde de abril. Eduardo lhe dissera que sentia em sua própria vida muito da falsidade que ele encontrava, mas ela ignorava, pois isso não era nada de novo. Um nada, talvez, de novo. Um que nada no mar... Enfim, a questão era não apenas uma troca, as palavras, mas falsidade era um tanto subjetivo. Madalena estava amuada por saber que Eduardo insistia em aparecer na sua frente, como uma espiga em que não há mais milho, mas ainda cabe no espantalho. Que as palavras significassem tanto, sabia ela, mas superlativadas como fazia Eduardo, apenas sabia pelos outros, a que tanto falassem dele que na verdade passava ela a realmente não saber, em seu íntimo de mulher de pouca convivência com problemas, visto administrar a normalidade padrão sem fugir desta. Eduardo possuía uma enfermidade mental e não havia a menor possibilidade de uma mulher dita sadia, ter qualquer tipo de relacionamento com ele, posto carregar essa tatuagem, esse estigma soberbo para que outros vissem na sua vulnerabilidade a razão em nem ao menos tangenciar as ofensas. Mas Madalena, posto uma mulher linda, já possuía um companheiro: era um homem algo rude, mas bom trabalhador. Ástor era seu nome, e por sinal, conhecia bem Eduardo, pois haviam estudado juntos no ensino médio. Mas não haviam contatado, e Ástor sabia do grau de humanismo de seu amigo. Este muito aparecia, se expunha deveras e todos nas cercanias conheciam certos movimentos, certos desenlaces de pernas, os movimentos dos braços, os cacoetes de expressão e as idiossincrasias dele não se fazer notar, apesar de observado pela comunidade. Era por vezes um embate um enfermo mental fazer de tudo para parecer normal, mesmo em virtude da medicação, em que o próximo de companhia enfermiça vê sempre um ou outro caírem, por vezes por pressões em dias não muito fáceis.
          Seriam fáceis de entender linhas que o soubessem: o aparato da loucura. Não havia nada, e o sonho era compreender que muitos aproveitavam, sob correta orientação terapêutica, nadar em uma diferença salutar enquanto respeitada. Os opostos, naqueles dias de abril no país, não dialogavam mais, as seletas brigas eram contendas cada vez mais brutais, e a serenidade não havia mais com tanta facilitação, pois o sentimento paranoide social por vezes era atenuado com as cores das roupas, o comportamento, o gesto das mãos, o silencio ou a diplomacia. Muitos surtavam, e muitos tomavam excessos quiçá desnecessários de medicamentos psiquiátricos. O mundo tornava-se hostil àqueles que conheciam um pouco mais da realidade ou que de um modo ou outro era agentes ativos de qualquer processo de mudança. No aspecto de lideranças ou em um sem conta de existir, enquanto cidadania enquanto igualmente aos artistas que lutavam por suas identidades culturais, suas raízes, suas crenças e tabus, agora cada vez mais ameaçadas pela indústria cultural, aliás, como sempre. Eduardo era poeta, mas de uma poesia que flui, de teor quase romântico e mandara uma carta para o casal de amigos que dizia o seguinte:

          “Caros amigos: triste é o meu pesar, de sabermos o nada em que se torna o mundo, de propormos à vida que as relações de poder, apesar de tudo, são transitórias... Mando-lhes duas estrofes sobre a noite que sinto em minha alma. Parece que está tudo meio errado, parece que nos falta compreensão, e me sinto um pouco só do finito humano, quando sei apenas de Deus possa estar acompanhado: que Deus dará a mim uma infinita compreensão, apesar disso poder parecer uma muleta, ou outros acharem que é alienação.
          A poesia carece de mais estrofes e, quem sabe, queiram completar ou me visitar qualquer dia desses, que lhes abro as grades de minha própria incompreensão a vermos a quantas anda este país que está deixando-se levar pelo abandono. Na verdade, consintam apenas que possam ler essas oito linhas, que as guardo outras, se merecer por onde.”

Abraços,
Eduardo.

A NOITE

Um vazio pesponta sobre o aquário em que nos tornamos
A dizermos um pouco mais sobre o que não dizemos mais
Quando temos por nós o feixe de um arame farpado e nu
Na sua nudez de cercas, nas nossas certezas gravadas no olhar.

Pois se tanto se nos baste, encurralados no não portar-se,
Assim, de engolirmos uma pedra alcunhada atualidade,
Reina em si um codinome bruto de rochas salitradas
Em que nem o mar saberia nos dizer em suas ondas...

Obs.: Retornem o mail, por favor.

          Madalena viu o mail, e o retirou da caixa... Mas leu antes, e viu letras, e viu palavras, orações, nada que significasse algo para ela, pois estava tentando reconstruir sua união com Ástor. Para ela, a poesia não importava, já que ficava nas redes sociais examinando minuciosamente seus contatos e as vidas de outros que lhes significavam algo mais palpável para ela do que o planger solitário de um louco que já estava a lhe dar nos nervos.
          Seu olhar perante a tela do pequeno aparelho brilhava a cada compartilhamento, a cada voz que lhe chamava a sorrir estrelas sintéticas, a cada luz de quartzo e brilhar nos apitos que a demandavam, a cada notícia que chegava de seu companheiro, que estava em São Paulo, a negócios.
          Eduardo nunca soube que liam ou não suas cartas, resignando-se na ausência do retorno em que ele, verdadeiro maestro das letras, não encontrava vazão em sua crença de que se tornasse válido para o consumo de tais ou outros... Os tempos modernos acabavam por ser cáusticos, e os poetas loucos caíam pelas beiradas, quando demonstravam fraqueza ou sensibilidade, posto alguns tinham que ser quase soldados para defender a sua lucidez. E Eduardo, apesar de tanta carência e incompreensão, empunhava seu arco e mandava a poesia para o mundo. Pensasse que o mundo a lesse, já era um sinal goghiano com uma releitura mais atual, sem saber desse fato, mas que a tese espelhasse pelo menos a um bom psiquiatra que ao menos estudasse o seu valor literário, posto não estar mais no século vinte. Talvez que o submetesse a um estudo de valor acadêmico elevado nas circunstâncias de explorar as origens e ao pretenso controle das enfermidades, nada que rendesse algum dividendo, posto o que um louco escreve não se escreve, ainda menos em um país em que sequer se lê, em sua maioria. A televisão já vinha com tudo empacotado, todos os entretenimentos facilitados, digeridos e já regurgitados, e assim era e sempre seria, pois Eduardo vivia em um país sul americano de dimensão continental, com discernimentos equivocados em toda uma população carente de identidade cultural. Mas o que contava a ele, dentro de seu casulo poético que o reanimava a cada dia era uma rejeição, em que mesmo assim insistia, como um combatente de coragem e moral inquebrantável. Espelhava-se em grandes homens, tinha conhecimento da história, houvera de estudos aprofundados, para exercer esse pequeno grande ofício da escrita, mesmo sabendo com absoluta certeza de que isso não lhe renderia jamais qualquer trocado, ou admiração de um público: apenas era a sua ferramenta de se sentir mais vivo, em que sua arte se totalizava no seu sentimento mais íntimo.
          Madalena não gostava da presença de Eduardo, apesar de ele não ser feio, nem ser muito esquisito aos seus olhos. Apenas o achava psiquicamente diferente, ao pensar distante do modal do comportamento, do behaviorismo, pois psiquicamente lhe parecia algo mais complexo e ao mesmo tempo ampliava espiritualmente essa questão. Não que desgostasse frontalmente, mas quando ele lhe falava de velhos livros se passava por anacrônico mesmo, no modo inevitável de sua época. As referências de Madá eram outras, ela estava inserida na contemporaneidade, e sabia ser a poesia uma língua quase morta, aos olhos em que quase inevitavelmente, mas sim necessariamente para alguns de peso, focavam a existência para sentir o seu mundo tal qual era: inquietante e exato, no mais das vezes. Uma inadaptação não seria muito produtiva na relação com o “outro”. Na verdade, esse era o delírio de Madalena, formada há cinco anos em uma boa universidade, no curso de psicologia, por paradoxal que parecesse. O delírio de separar eventualmente duas faces da mesma moeda, esse era um delírio que não justificava um ato grave por omissão, mas que naqueles tempos não assumia nenhum significado, pois a justiça era ausente da razão, por vezes. De algo de crítica, nada contumaz, pois até então a verdade sofria revezes, e esperava-se que a sociedade não chegasse ao ponto de barbárie, pois só perderia a mesma sociedade, incluso seus dignitários poderes. Se existisse um fato corroborando a sectarização da igualdade, a não igualdade de direitos, um precedente de ato não histórico mostraria ao mundo civilizado, ou aos que pensam dessa forma – ainda – que as coisas não andam bem no mundo, independente de qual nação ou qual hemisfério, posto o sul sempre tem sido espoliado. Que bom seria às humanidades se estas pudessem falar algo que não pertencesse à esfera dos interesses, como uma notícia boa, um ritmo de algo positivo de um fluxo de caminhadas, de um olhar de soslaio sincero, de um gesto solidário, de uma posição verdadeiramente progressista enquanto preocupação social.
          Pontuado como um retrato fidedigno de uma preocupação algo coletiva, de três ao menos, na verdade todo o reflexo em um dita que o seu entorno quando grave o alterna com humores por vezes não salutares, mas a propriedade da preocupação, da tristeza e da alegria pode ter seus motivos em atitudes intempestivas que na qualificação da espécie humana, do fator, do modo existencial do ser humano, para melhor expressão, poderia dar tudo a perder. Quando não medem esforços para pautar obrigatoriamente por vezes todo um teatro com apanágios falsos, no triste esforço de construir uma tragédia com vitoriosos, mas que apenas lida com a realidade tornada comédia humana. A se ver que em outras oportunidades um conto continue suas pausas e que se recomece a partir do ponto em que o leitor parou, pois atraso é coisa de trem ou trânsito congestionado...

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