quinta-feira, 17 de março de 2016

EM CONDIÇÕES DE CONDICIONAR... – conto

I

            Há um parâmetro na vida de Neusa, que seria talvez o amor que tivesse a Marlon, mas que o desse na veneta não saber do que ele compreendia abertamente, quase num frouxo, ou num rir sarcástico. Neusa se supunha completa, agora com um pequeno aparelho celular, mas que só havia comprado depois de certas reformas em uma nação que tendia a igualar um pouco as distâncias sociais. A intenção era muita, não era breve, a longo prazo, e o celular auxiliava posto não ser uma mulher condicionada ao ponto de endeusar uma maquininha como algo além da realidade, ou superação desta na figura de uma muleta em se existir, ao que apenas isso existisse enquanto objeto e amores decorrentes. Não seria só isso, isso de rolar, de vai rolar, de não vai rolar, essas gírias anacrônicas dentro do outros pressupostos de viver em passados. Na verdade, uma opinião a respeito de algo, em que se dissesse algo, era um fruto maduro, posto voz que se encontra com as ruas, posto casas que se encontram com casas. A mais de se dizer, que não fora opinião, uma sílaba, um encontro, um roçar de corpos sedentos e apaixonados em se viver, a seu modo, em que a condição em condicionar passava ao largo de adaptabilidades forçadas, pois um cão, no exemplo mais nobre, não gosta de ser amestrado, mesmo quando lhe dão as recompensas. No entanto, mesmo casados, Neusa ainda não acreditava muito no amor de Marlon. Viviam como bons companheiros, e no embate da vida se completavam, cada qual a cada qual, a ambos mesclados, e uma vida que fosse uma a dois, era melhor do que no fracasso anterior do alcoolismo em que Marlon encontrara Neusa, que o tirara do vício. Prementes foram esses meses de queda em que qual uma serpentina, a cachaça se antepunha, e a força do amor era forte, quase o suficiente, no começo.
            Estavam em abril, um mês mais fresco naqueles lugares do Sul, com os ventos da orla, com a ilha toda, o lado febril e lindo dos encontros, mesmo os capitaneados por máquinas, em suas tentativas de comungar várias companhias, de cada qual a si... Essas máquinas que trazem em si um mundo, e nomeá-las seria dizer quase como Arnold no filme O Exterminador do Futuro. Shuazeneger talvez fosse seu segundo nome: o ator, mas às vezes o Google cansa de apresentar nossas pesquisas. Aliás, todo o pesquisador cansa, se a pesquisa for redundante, em que a mensagem igualmente possa ser passada com algum erro de ortografia, no que se fosse na semântica sempre é mais complicado em se fazer compreender. Nesse sentido, sente-se por vezes uma mensagem aberta, cúmplice da manipulação, e as máquinas, subentendendo-se as telas, seja nas TVs ou nos micro e celulares, e outros igualmente agora em redundante citação, estariam presentes justamente essa manipulação algo grotesca e todo um investimento anti-cultural anterior para que os povos não compreendessem nas próprias memórias algo a mais de seu país que não seja o eterno vale a pena ver de novo da supressão de seus espaços, que tolhem compulsoriamente a liberdade daqueles que talvez gostassem mais de trabalhar sem a presença globalizante na literalidade do fato, preferindo um rádio ou uma música erudita, por exemplo. Esse êxito da televisão corporativa e gigantesca brasileira, nos faz remeter a um embate de consciências, onde até mesmo a juventude, que carece obviamente de esteios culturais mais abertos, utilize seu protagonismo a serviço da parcialidade, contando sempre em pretender poder, sempre em participar de uma aula de brutalidade que talvez tenha acompanhado em todas as fases nos games de guerras desde suas recentes infâncias. Em que pese todo o treinamento físico e mental para manter a qualquer custo a única referência cultural que receberam de seus ricos progenitores, no que verse que o país perde em muito com a facilidade em criarem seus mitos, e a insuficiente compreensão do que se chama a legalidade democrática e suas implicações que vão desde a óbvia e necessária cidadania até a ponta consagradora de nossas conquistas históricas: os direitos humanos e a igualdade étnica, social, moral e sexual.
            Naquele mês de abril Marlon começara a trabalhar em uma serigrafia artesanal, e estava gostando muito, pois era talhado em passar o rodo e fabricar as telas com a foto emulsão. Às vezes, chegava em casa meio sujo de tinta, mas já colocava suas roupas mais rústicas para poder ajudar na empresa de seu patrão, Onório. Chegou em casa mais tarde um pouco e Neusa já estava na cama. Foi até ela e viu que havia chorado: os olhos vermelhos, meio inchados, meio a que sumissem em suas grandes pálpebras do parentesco ucraniano. Era uma mulher linda e mantivera-se assim, desde sempre. Falou-lhe algo meio gutural, um gemido algo gesto, no que não pressentia muito, mas a questão seria do que ocorrera no país, algo muito truculento: resultado de meses de insânia.
            - Ehr... Imprimi vários tecidos hoje... – Marlon, reticente, meio que por faltas anteriores não havia como alcançar em sua dureza de caráter algo da ternura tão necessária nessas horas...
            - Pois sim, meu caro, hoje saí com aquele vestido que você me deu, de listras...
            - Aquele vermelho?
            - Sim, perseguiram-me... Talvez saibam que você e eu... Bem, parece uma guerra, não pude ver Adelaide na Gama d’Eça. Virei antes, subi por uma escada em uma loja de eletrônicos, o dono, Elias, é um bom conhecido meu e me deixou abrigar-me. Vinham em quatro. Pareciam treinados. Eram pelas cinco da tarde. Parece-me que a polícia estava atendendo várias ocorrências meio similares, eu não entendi. Tentei chamar, mas a mão tremia muito. E Elias achou melhor deixa-los passar, esses insetos de videogames.
            - Como eram?
            - Senti que eram quatro rapazes, me pareceram estudantes de classe média alta, vestiam roupas boas. Quando virei a rua botaram máscaras daquelas brancas, sinistras.
            - Parece uma repetição do que já vimos antes. Te tocaram?!! Filhos da puta!
            - Tentaram, mas me esquivei com uma ginga que você me ensinou... Pareciam autômatos, e igualmente estavam aparentemente gravando com aqueles celulares que eles usam até para peidar.
            Riram um pouco, mas as coisas estavam complicadas desde março, e o país começava a entrar em uma vereda sombria. Não haviam conseguido dar o golpe ainda, mas a televisão incitava cada vez mais a violência, e a CIA e seus tentáculos europeus tentava transformar o nosso país em um caos generalizado, onde a agressão com requintes cruéis começara a ser banalizada. Os cidadãos das classes trabalhadoras, mais pobres, eram agredidos por vezes violentamente, e a política mais e mais se tornava moeda de troca, com o aval da grande mídia e do fundamentalismo evangélico que tomava terreno, nessa convulosão de achar que uma cor era um pensamento e, o que é pior, combaterem igualmente os que pensassem diferente em uma nação cada vez mais disparatada quando totalmente engessada em sua administração e liberdades de credo, de ideologia ou até mesmo – a se pasmar brutalmente sobre – a questão existencial de um par, analisada friamente pelo comportamento tolhido por esses grupos extremamente reacionários e repressores. Surgia um stalinismo do capital, a verga sobre os ombros machucados do povo brasileiro para que este engolisse todas as contradições da barbárie... 

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