I
Há um parâmetro na vida de Neusa,
que seria talvez o amor que tivesse a Marlon, mas que o desse na veneta não
saber do que ele compreendia abertamente, quase num frouxo, ou num rir sarcástico.
Neusa se supunha completa, agora com um pequeno aparelho celular, mas que só
havia comprado depois de certas reformas em uma nação que tendia a igualar um
pouco as distâncias sociais. A intenção era muita, não era breve, a longo
prazo, e o celular auxiliava posto não ser uma mulher condicionada ao ponto de
endeusar uma maquininha como algo além da realidade, ou superação desta na
figura de uma muleta em se existir, ao que apenas isso existisse enquanto
objeto e amores decorrentes. Não seria só isso, isso de rolar, de vai rolar, de
não vai rolar, essas gírias anacrônicas dentro do outros pressupostos de viver
em passados. Na verdade, uma opinião a respeito de algo, em que se dissesse
algo, era um fruto maduro, posto voz que se encontra com as ruas, posto casas
que se encontram com casas. A mais de se dizer, que não fora opinião, uma
sílaba, um encontro, um roçar de corpos sedentos e apaixonados em se viver, a
seu modo, em que a condição em condicionar passava ao largo de adaptabilidades
forçadas, pois um cão, no exemplo mais nobre, não gosta de ser amestrado, mesmo
quando lhe dão as recompensas. No entanto, mesmo casados, Neusa ainda não
acreditava muito no amor de Marlon. Viviam como bons companheiros, e no embate
da vida se completavam, cada qual a cada qual, a ambos mesclados, e uma vida
que fosse uma a dois, era melhor do que no fracasso anterior do alcoolismo em
que Marlon encontrara Neusa, que o tirara do vício. Prementes foram esses meses
de queda em que qual uma serpentina, a cachaça se antepunha, e a força do amor
era forte, quase o suficiente, no começo.
Estavam em abril, um mês mais fresco
naqueles lugares do Sul, com os ventos da orla, com a ilha toda, o lado febril
e lindo dos encontros, mesmo os capitaneados por máquinas, em suas tentativas
de comungar várias companhias, de cada qual a si... Essas máquinas que trazem
em si um mundo, e nomeá-las seria dizer quase como Arnold no filme O
Exterminador do Futuro. Shuazeneger talvez fosse seu segundo nome: o ator, mas
às vezes o Google cansa de apresentar nossas pesquisas. Aliás, todo o
pesquisador cansa, se a pesquisa for redundante, em que a mensagem igualmente
possa ser passada com algum erro de ortografia, no que se fosse na semântica
sempre é mais complicado em se fazer compreender. Nesse sentido, sente-se por
vezes uma mensagem aberta, cúmplice da manipulação, e as máquinas,
subentendendo-se as telas, seja nas TVs ou nos micro e celulares, e outros
igualmente agora em redundante citação, estariam presentes justamente essa
manipulação algo grotesca e todo um investimento anti-cultural anterior para
que os povos não compreendessem nas próprias memórias algo a mais de seu país
que não seja o eterno vale a pena ver de novo da supressão de seus espaços, que
tolhem compulsoriamente a liberdade daqueles que talvez gostassem mais de
trabalhar sem a presença globalizante na literalidade do fato, preferindo um
rádio ou uma música erudita, por exemplo. Esse êxito da televisão corporativa e
gigantesca brasileira, nos faz remeter a um embate de consciências, onde até
mesmo a juventude, que carece obviamente de esteios culturais mais abertos,
utilize seu protagonismo a serviço da parcialidade, contando sempre em
pretender poder, sempre em participar de uma aula de brutalidade que talvez
tenha acompanhado em todas as fases nos games de guerras desde suas recentes
infâncias. Em que pese todo o treinamento físico e mental para manter a
qualquer custo a única referência cultural que receberam de seus ricos
progenitores, no que verse que o país perde em muito com a facilidade em
criarem seus mitos, e a insuficiente compreensão do que se chama a legalidade
democrática e suas implicações que vão desde a óbvia e necessária cidadania até
a ponta consagradora de nossas conquistas históricas: os direitos humanos e a
igualdade étnica, social, moral e sexual.
Naquele mês de abril Marlon começara
a trabalhar em uma serigrafia artesanal, e estava gostando muito, pois era
talhado em passar o rodo e fabricar as telas com a foto emulsão. Às vezes,
chegava em casa meio sujo de tinta, mas já colocava suas roupas mais rústicas
para poder ajudar na empresa de seu patrão, Onório. Chegou em casa mais tarde
um pouco e Neusa já estava na cama. Foi até ela e viu que havia chorado: os
olhos vermelhos, meio inchados, meio a que sumissem em suas grandes pálpebras
do parentesco ucraniano. Era uma mulher linda e mantivera-se assim, desde
sempre. Falou-lhe algo meio gutural, um gemido algo gesto, no que não
pressentia muito, mas a questão seria do que ocorrera no país, algo muito
truculento: resultado de meses de insânia.
- Ehr... Imprimi
vários tecidos hoje... – Marlon, reticente, meio que por faltas anteriores não
havia como alcançar em sua dureza de caráter algo da ternura tão necessária
nessas horas...
- Pois sim, meu
caro, hoje saí com aquele vestido que você me deu, de listras...
- Aquele
vermelho?
- Sim,
perseguiram-me... Talvez saibam que você e eu... Bem, parece uma guerra, não
pude ver Adelaide na Gama d’Eça. Virei antes, subi por uma escada em uma loja
de eletrônicos, o dono, Elias, é um bom conhecido meu e me deixou abrigar-me.
Vinham em quatro. Pareciam treinados. Eram pelas cinco da tarde. Parece-me que
a polícia estava atendendo várias ocorrências meio similares, eu não entendi.
Tentei chamar, mas a mão tremia muito. E Elias achou melhor deixa-los passar,
esses insetos de videogames.
- Como eram?
- Senti que eram
quatro rapazes, me pareceram estudantes de classe média alta, vestiam roupas
boas. Quando virei a rua botaram máscaras daquelas brancas, sinistras.
- Parece uma
repetição do que já vimos antes. Te tocaram?!! Filhos da puta!
- Tentaram, mas
me esquivei com uma ginga que você me ensinou... Pareciam autômatos, e
igualmente estavam aparentemente gravando com aqueles celulares que eles usam
até para peidar.
Riram um pouco,
mas as coisas estavam complicadas desde março, e o país começava a entrar em
uma vereda sombria. Não haviam conseguido dar o golpe ainda, mas a televisão
incitava cada vez mais a violência, e a CIA e seus tentáculos europeus tentava
transformar o nosso país em um caos generalizado, onde a agressão com requintes
cruéis começara a ser banalizada. Os cidadãos das classes trabalhadoras, mais pobres,
eram agredidos por vezes violentamente, e a política mais e mais se tornava
moeda de troca, com o aval da grande mídia e do fundamentalismo evangélico que
tomava terreno, nessa convulosão de achar que uma cor era um pensamento e, o
que é pior, combaterem igualmente os que pensassem diferente em uma nação cada
vez mais disparatada quando totalmente engessada em sua administração e
liberdades de credo, de ideologia ou até mesmo – a se pasmar brutalmente sobre –
a questão existencial de um par, analisada friamente pelo comportamento tolhido
por esses grupos extremamente reacionários e repressores. Surgia um stalinismo do
capital, a verga sobre os ombros machucados do povo brasileiro para que este
engolisse todas as contradições da barbárie...
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