segunda-feira, 30 de outubro de 2023

FESTA PÚBLICO-PARTICULAR


                Dos andamentos de Pedro, aquilo que conversara parecia uma notícia em retalhos, algo nova, algo de desmembramentos antigos. O olhar esgazeado da mulher que encontrara no corredor da grande casa, uma festa perfeita, os banheiros, em quatro, dois em cada andar, e um outro, azul turquesa nos ladrilhos pequenos, com as taturanas brancas dispostas sobre o mármore da pia, por onde entrara enganado e encontrara a mulher caída... A encontrara caída antes, e já estava ela no corredor, pasmou, não sabia nem se era mesma, as unhas pintadas de negro, os cabelos de raiz negra e loiros daquele branco de estranhas oxigenações do morro ao lado! Um sem fôlego lhe tomara, não sabia de nada, estava como que entrante na casa, um amigo lhe levara, e cria que levavam o amigo para outro “vetor”. Uma reunião no topo, como que de empresários, os slides, os flashies das câmeras, o palavrório, e uma questão que se anunciava quanto aos sistemas, as coordenadas mesas, o empreendedorismo, as fotos de camas planejadas, o que havia por encima delas, os utensílios sexuais, as petshops como pano de fundo, quais, pequenos carimbos que se revelavam produtos mais e mais, e a profusão do marketing, tudo planejado de ante véspera, argüia a si mesmo, seria esse um caso de realidade mesclada com algo de semântica ilusória, mas seria a mulher factível de ter entrado no andar de baixo e, mais ainda, teria outros andares a casa, quiçá um porão, quiçá os quartos fossem inúmeros para cinco banheiros, mas onde estariam? Tentou alicerçar de ares um pouco mais reais a fronte daquela mulher, e ela lhe mostrava a ferida, uma facada, e lhe mostrava os remédios, e que saíra do hospício, e estava bebendo e devia tomar – algum dia – os remédios do psiquiatra, e dizia que tomaria, mas que a clínica não era para ela, pois não ficaria com aqueles loucos que estavam tentando largar o que ela chamava de brinquedos da noite, aliás, com a naturalidade da demência... Seu apelido era anita, lhe chamavam, e ele quis saber se era em homenagem à Anita Garibaldi, a heroína de dois mundos e riam à socapa, e lhe diziam: sim! Eufônico, sonoro! Pedro boiava e eles falavam que ela levava heroína para os dois mundos e outros mais e ele percebeu e consentiu e calou, no pensar de um tipo de sinistro insight sobre a vida daquela mulher a cheirar das taturanas em cima do mármore, e outros, mais sinistros, que vinham do andar de cima, engravatados, ricos, e prestavam homenagem àquela mulher do morro, sem dentes, loiro-branco, com uma tarja negra tatuada no antebraço que lhe servira para apagar com tinta indelével o que antes havia firmado como comprometedora e enigmática terminologia gráfica dos sem fins e sem começos... E o homem saiu satisfeito, uma abotoadura de ouro, uma valise, e falou com a mulher, e ela lhe entrega um pacote, e esse homem carregou dentro da valise, e disse a ela:

                - Você já está dispensada, falei com o médico, agora você procure o Caps, que é o melhor lugar para você, senão volta para o hospício, a farmácia agradece, diga que eu agradeço, apenas e não fale a ninguém senão a facada não a deixará viva na próxima...

                - Valeu, sargento César, só acho que...

                - Você não acha nada e nunca me viu ou conheceu! Anda, que te querem na muvuca da comunidade! Abre o olho que você também está na nossa mira, e os legalistas estão na nossa cola. Portanto, se queres tirar o hôme, sabe que é a melhor coisa a fazer, se não quer é pior, só lamento, entendido, soldado?

                A mulher, frouxa, fraca, exangue, drogada, no fundo do poço, estuprada, ferida, maltratada e humilhada só teve força para dizer:

                - Sim... Valeu pela... força.


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