sábado, 11 de junho de 2016

NOITE EM UMA CONVERSA

            Sabemos um dia quiçá que as noites não eram prometidas aonde menos se esperava do sol que soava de seu gongo amarelo ouro, na palheta de Corot. Um sul realista, no dia frio do inverno, ainda dia, pois a noite quase anunciava chegar na vida de um casal, como na anterior, em que se viram em meio a um encontro sutil como a neblina de uma ilusão que os entontecia. Saberiam se portar no recrudescer do frio, mas nada os afligia do que o clima das chuvas que teimavam, em seus recortes de solidão. Antenor e Clara, ele branco, ela negra. Ela lúcida, ele louco... Mas claro, não de uma loucura contumaz, apenas de se portar como uma haste forte, de pé, apesar da química, apesar do preconceito, e ela que o dizia, - depende do lugar, meu amigo. Deixavam rastros na encruzilhada de pedra, deixavam que falassem, e falavam, dependendo do lugar, mas os lugares se encruzilhavam igualmente a que negro e branco se mesclavam. Um dote, um quê de genoma fácil de perceber, que a genética era algo muito de se comportar nos tempos e, infelizmente, o louco trajara vermelho na noite anterior, em que se passou o diálogo dentro do hotel Coral, onde se encontraram:
            - Que muquifo, heim? Podia ser melhor, meu caro...
            - Vou retirar a jaqueta, temos tempo. Minha Clara, saberia eu melhor de outro, mas Fernando toca essa pocilga há bastante tempo, o quarto está aqui. Nada se grava...
            - Melhor, não trouxemos os celulares. É melhor não bobear. Isso tudo só para não saber de sua esposa, se é que você possa estar certo de que ela trabalha na Agência.
            - Senti evidências no seu comportamento, e em umas rotinas em C + que ela postou no face de um outro... A história é meio longa, não viemos propriamente para conversar. Você sabe, um que...
            - Sim: um que imagina o outro já sabe, depois de ver o filme... Ha han! Meio que a cinefilia ajuda, mas nem tanto, o treinamento aqui fora é outro. Você sabe, a mesma Agência te empregou e largou-o com tudo que você possuiu de mais secreto, te limparam a cabeça de todo.
            Antenor já não possuía muitos reflexos, de suas reflexões, os reflexos rápidos, a lógica que Clara apresentava, muito mais do que se esperava dela, de uma mulher simples, mas assaz sensível e humana. Ele jamais julgara suas atitudes, por isso não queria que o julgassem ou o ensinassem a viver. Antenor já sabia de antemão os movimentos das peças, esse era o seu fraco, o próprio consentimento cabal e libertário que o livrara do manicômio. Pelo menos por enquanto. Lidava bem com os outros malucos, mas ainda faltava mais proficiência, de saber administrar os conhecidos de uma luta aparentemente sem tréguas. Clara já possuía a fortaleza de uma grande lutadora, literalmente, sabia boxear como ninguém, e nunca afrouxava as suas pernas lindas. De qualquer modo, sabia da importância de Antenor no contexto do que viera resolver, e acabaram se amando naquela noite, no hotel, pois possuíam a faculdade inata do amor e da ternura, já que era um casal de muito respeito e um código moral firme. Já eram pelas dez horas da noite, e os papéis foram trocados: alguns poemas de Antenor, frases, ditos, desenhos, poesia, humor. Outros de Clara: alguns jornais alternativos onde ele poderia publicar. Eram de um arquitetura aberta, os pensamentos livres, a sociedade mal divulgava esses trabalhos, pois eram tantos digitais que os papéis se perdiam. Vestiram-se e falaram:
            - Ela pode ter mandado nos seguir. Você casou com uma agente espiã para te espiar... Ela espia muito?
            - Não é tão engraçado. Vai ver queria estar em uma casa com mais qualidade, pensei quando me juntei. Na verdade ela é rica lá fora do Brasil. Morou em Amsterdã, e Estocolmo e outros lugares. Meio que pirei feio mesmo há um tempo atrás, e ela me quer fora de sua vida, entende? Eu abri as cartas na mesa, alimentei fartamente seu egotismo de curiosidade, e agora nem sou mais agente e nem mesmo talvez nunca tenha sido, posto apenas seu braço funcional...
            - Mas mesmo assim o colocou sob vigilância. O que a põe em atitude suspeita, por querer manipular alguém, ainda mais um homem vulnerável como você.
            - Clara, todos somos um tipo de braço, um tentáculo que serve a algo, mesmo que indiretamente. Se somos da ciência, temos por vezes que fazer vista grossa a muitas pesquisas. Quando professores, obedecemos por vezes a grades curriculares arcaicas, ganhando uma miséria no exercício.
            - Óbvio, são poucos os que querem mais dedicação e possuem tempo para algo de arte, da expressão, posto faltar uma atenção maior a essa disciplina nos colégios. Quando públicos, pois não se dá muita atenção às matérias humanas, ou mesmo o ambiente não proporciona muitos avanços.
            - Clara, não comece a dizer sobre avanços que posto-me com rancor, de tantos avanços da ciência e o cacete que não saímos do tombo e continuamos a morrer aos poucos, como sempre. Melhor, a ciência fala mal da velhice, como um descarte, em suas entrelinhas ocidentais, mas eu creio mais na velhice, pois mostra o buril da experiência no ser que porventura possa ser humano.
            - Ah, sobre isso conversáramos tanto em um ano de primaveras, em que flores brotaram e você me mostrou no lago em que ficamos juntos na primeira vez. Você nem era casado... Um tempo feliz, sem muitas as ilusões de que falamos tanto hoje no almoço, sem esse neurótico modo de acharmos espiões em nossas casas ou em nossos celulares. Você veja, no íntimo das máquinas, elas não são factíveis no erro, se repetem, mas as rotinas servem, existem servidores, e essas outras máquinas possuem os eixos da verdade na comunicação entre os povos. Se você não tomar ciência desse fato, que você mesmo me alertou, não estaremos suficientemente alocados no que possa se chamar mundo real. Esse novo mundo, essa quase farsa do novo, em que os velhos que não se conectam parecem mortos nessa visão mecanicista e autoritária... Nisso de expor os fatos existe uma simplicidade de gargalos, pois o mundo em rede, por mais que estejamos conectados, temos apenas um gargalo em cada país, em cada nossa realidade, que se chama nossa cultura, nossas tradições, nossas artes, a identidade de nossas populações e, convenhamos, a neve aparece onde neva, a chuva é a mesma desde sempre, com a pequena diferença de que agora, enquanto estamos conectados, a Natureza se conecta mais e mais com os nossos próprios desastres existenciais.
            O breve e universal e quase infinito encontro pontuou sobre beijos e carinhos a verdade em se saber reais. O homem e a mulher ainda podem ser reais, podem trocar correspondência com suas caligrafias, podem se beijar sem ter que postar no face, podem existir como um direito inalienável sem a máxima de que se não estamos plugados não somos ou fazemos parte do “mundo novo” ou da “supra consciência”. Esse é o fator humano, a pequena diferença entre o ostracismo da interdependência, quando por ventura nos tornamos interdependente dela. O que vem de ser demandará dependências forjadas? Teremos uma política à altura? A história não será nunca descartada e a publicação remota merece destaque por fazer vir à tona dentro do mesmo sistema computacional uma abelha que fabrica o mel da tolerância tecnológica, do bom senso verdadeiro, do respeito aos povos que ainda estão na fase do necessário alimento, ou daqueles que urgem desesperadamente pela paz, como acontece hoje no Médio Oriente. Saber do gesto sincero talha uma performance mais adequada com qualquer jogo que se pretenda, ainda que se passe o gesto já sem timbre, posto jogo, posto hipocrisia: a União dos povos sem hipocrisia faz de uma humanidade com menos desavenças, em qualquer país, em qualquer fronteira...

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