Sabemos um dia quiçá que as noites
não eram prometidas aonde menos se esperava do sol que soava de seu gongo
amarelo ouro, na palheta de Corot. Um sul realista, no dia frio do inverno,
ainda dia, pois a noite quase anunciava chegar na vida de um casal, como na
anterior, em que se viram em meio a um encontro sutil como a neblina de uma
ilusão que os entontecia. Saberiam se portar no recrudescer do frio, mas nada
os afligia do que o clima das chuvas que teimavam, em seus recortes de solidão.
Antenor e Clara, ele branco, ela negra. Ela lúcida, ele louco... Mas claro, não
de uma loucura contumaz, apenas de se portar como uma haste forte, de pé,
apesar da química, apesar do preconceito, e ela que o dizia, - depende do
lugar, meu amigo. Deixavam rastros na encruzilhada de pedra, deixavam que
falassem, e falavam, dependendo do lugar, mas os lugares se encruzilhavam
igualmente a que negro e branco se mesclavam. Um dote, um quê de genoma fácil
de perceber, que a genética era algo muito de se comportar nos tempos e,
infelizmente, o louco trajara vermelho na noite anterior, em que se passou o
diálogo dentro do hotel Coral, onde se encontraram:
- Que muquifo, heim? Podia ser melhor, meu caro...
- Vou retirar a jaqueta, temos tempo.
Minha Clara, saberia eu melhor de outro, mas Fernando toca essa pocilga há
bastante tempo, o quarto está aqui. Nada se grava...
- Melhor, não trouxemos os
celulares. É melhor não bobear. Isso tudo só para não saber de sua esposa, se é
que você possa estar certo de que ela trabalha na Agência.
- Senti evidências no seu
comportamento, e em umas rotinas em C + que ela postou no face de um outro... A
história é meio longa, não viemos propriamente para conversar. Você sabe, um
que...
- Sim: um que imagina o outro já
sabe, depois de ver o filme... Ha han! Meio que a cinefilia ajuda, mas nem
tanto, o treinamento aqui fora é outro. Você sabe, a mesma Agência te empregou
e largou-o com tudo que você possuiu de mais secreto, te limparam a cabeça de
todo.
Antenor já não possuía muitos
reflexos, de suas reflexões, os reflexos rápidos, a lógica que Clara
apresentava, muito mais do que se esperava dela, de uma mulher simples, mas
assaz sensível e humana. Ele jamais julgara suas atitudes, por isso não queria
que o julgassem ou o ensinassem a viver. Antenor já sabia de antemão os
movimentos das peças, esse era o seu fraco, o próprio consentimento cabal e
libertário que o livrara do manicômio. Pelo menos por enquanto. Lidava bem com
os outros malucos, mas ainda faltava mais proficiência, de saber administrar os
conhecidos de uma luta aparentemente sem tréguas. Clara já possuía a fortaleza
de uma grande lutadora, literalmente, sabia boxear como ninguém, e nunca
afrouxava as suas pernas lindas. De qualquer modo, sabia da importância de
Antenor no contexto do que viera resolver, e acabaram se amando naquela noite,
no hotel, pois possuíam a faculdade inata do amor e da ternura, já que era um
casal de muito respeito e um código moral firme. Já eram pelas dez horas da
noite, e os papéis foram trocados: alguns poemas de Antenor, frases, ditos,
desenhos, poesia, humor. Outros de Clara: alguns jornais alternativos onde ele
poderia publicar. Eram de um arquitetura aberta, os pensamentos livres, a
sociedade mal divulgava esses trabalhos, pois eram tantos digitais que os
papéis se perdiam. Vestiram-se e falaram:
- Ela pode ter mandado nos seguir.
Você casou com uma agente espiã para te espiar... Ela espia muito?
- Não é tão engraçado. Vai ver
queria estar em uma casa com mais qualidade, pensei quando me juntei. Na
verdade ela é rica lá fora do Brasil. Morou em Amsterdã, e Estocolmo e outros
lugares. Meio que pirei feio mesmo há um tempo atrás, e ela me quer fora de sua
vida, entende? Eu abri as cartas na mesa, alimentei fartamente seu egotismo de
curiosidade, e agora nem sou mais agente e nem mesmo talvez nunca tenha sido,
posto apenas seu braço funcional...
- Mas mesmo assim o colocou sob
vigilância. O que a põe em atitude suspeita, por querer manipular alguém, ainda
mais um homem vulnerável como você.
- Clara, todos somos um tipo de
braço, um tentáculo que serve a algo, mesmo que indiretamente. Se somos da
ciência, temos por vezes que fazer vista grossa a muitas pesquisas. Quando
professores, obedecemos por vezes a grades curriculares arcaicas, ganhando uma
miséria no exercício.
- Óbvio, são poucos os que querem
mais dedicação e possuem tempo para algo de arte, da expressão, posto faltar uma
atenção maior a essa disciplina nos colégios. Quando públicos, pois não se dá
muita atenção às matérias humanas, ou mesmo o ambiente não proporciona muitos
avanços.
- Clara, não comece a dizer sobre
avanços que posto-me com rancor, de tantos avanços da ciência e o cacete que
não saímos do tombo e continuamos a morrer aos poucos, como sempre. Melhor, a ciência fala mal da
velhice, como um descarte, em suas
entrelinhas ocidentais, mas eu creio mais na velhice, pois mostra o buril da
experiência no ser que porventura possa ser humano.
- Ah, sobre isso conversáramos tanto
em um ano de primaveras, em que flores brotaram e você me mostrou no lago em
que ficamos juntos na primeira vez. Você nem era casado... Um tempo feliz, sem
muitas as ilusões de que falamos tanto hoje no almoço, sem esse neurótico modo
de acharmos espiões em nossas casas ou em nossos celulares. Você veja, no
íntimo das máquinas, elas não são factíveis no erro, se repetem, mas as rotinas
servem, existem servidores, e essas outras máquinas possuem os eixos da verdade
na comunicação entre os povos. Se você não tomar ciência desse fato, que você
mesmo me alertou, não estaremos suficientemente alocados no que possa se chamar
mundo real. Esse novo mundo, essa quase farsa do novo, em que os velhos que não
se conectam parecem mortos nessa visão mecanicista e autoritária... Nisso de
expor os fatos existe uma simplicidade de gargalos, pois o mundo em rede, por
mais que estejamos conectados, temos apenas um gargalo em cada país, em cada
nossa realidade, que se chama nossa cultura, nossas tradições, nossas artes, a
identidade de nossas populações e, convenhamos, a neve aparece onde neva, a
chuva é a mesma desde sempre, com a pequena diferença de que agora, enquanto
estamos conectados, a Natureza se conecta mais e mais com os nossos próprios
desastres existenciais.
O breve e universal e quase infinito
encontro pontuou sobre beijos e carinhos a verdade em se saber reais. O homem e
a mulher ainda podem ser reais, podem trocar correspondência com suas
caligrafias, podem se beijar sem ter que postar no face, podem existir como um
direito inalienável sem a máxima de que se não estamos plugados não somos ou
fazemos parte do “mundo novo” ou da “supra consciência”. Esse é o fator humano,
a pequena diferença entre o ostracismo da interdependência, quando por ventura
nos tornamos interdependente dela. O que vem de ser demandará dependências
forjadas? Teremos uma política à altura? A história não será nunca descartada e
a publicação remota merece destaque por fazer vir à tona dentro do mesmo
sistema computacional uma abelha que fabrica o mel da tolerância tecnológica,
do bom senso verdadeiro, do respeito aos povos que ainda estão na fase do
necessário alimento, ou daqueles que urgem desesperadamente pela paz, como
acontece hoje no Médio Oriente. Saber do gesto sincero talha uma performance
mais adequada com qualquer jogo que se pretenda, ainda que se passe o gesto já
sem timbre, posto jogo, posto hipocrisia: a União dos povos sem hipocrisia faz
de uma humanidade com menos desavenças, em qualquer país, em qualquer
fronteira...
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