domingo, 20 de novembro de 2016

CRÔNICA VELHA

            Faltava um ano que fosse, mais um ano... Sempre faria essa falta de um tempo qualquer, no ramalhete de suas setenta primaveras: nos anos idos de Personae. Não que se dissesse de outros quaisquer, mas contar setenta pedia mais um, quando desfizera – a se lembrar – dos seus desconstruídos mundos dos cinquenta: de vinte por detrás de sua plataforma quase existencial. Seria muito confortável pensar que um ano passaria a um tipo de nuvem que olhamos plácida sobre uma colina, mas sabia que também faria o possível para que não passasse como uma tempestade, dessas que insuflam certas imaginações quando o coração de um fraco por grandeza teima em permanecer sincero. Esta era a questão: Amali, sua esposa, se mantinha incólume como sua eterna companheira, e era o fato de não saber bem quando o chamara com o codinome afetuoso, que esquecera, no entanto, mas que havia sido pontuado por um carinho em que se lembrava da vulnerável condição, enquanto embriagados pela vida. Essa embriaguez que pede a se beber de um cálice soberano, porquanto na serenidade que conforma uma visão mais límpida em todas as circunstâncias. Embriagar-se à vida, deixar que se leve a onda, a boa onda, aquela que não necessariamente quebra, mas como disse uma grande escritora, que deixa entrever através de suas carícias as algas e depois – subentenda-se – as oculta... Falava Personae, um homem muito experiente, de vida vivida bem consciente desde os três, quando começara a se preparar na plataforma de uma arte em viver, já contando 67 de ter acordado, mas que sempre dormira para acordar um dia, e o sono de breu tantas vezes o acometera que o despertar consequente viera mais profundo, sempre, sempre mais forte e radicular na terra, radicular na pedra! Vivera tanto que muito do que aprendera não viera de nenhuma fonte, a não ser nas suas conversas com um besouro grená que aparecera em sua vida, em que em seu sofrer desconforme conseguira o amparo suficiente, depois de compreender que uma barata abandona seu corpo quando assume sua posição com as patas para cima, entre outros segredos da Natureza que teimava em deixar em seus tesouros secretos. E que sabia, por serem tão ocultos, que muitos não gostariam talvez de rever antigas alquimias do tempo, entre outros que ditavam a supremacia humana sobre os outros seres, que revelava o fascismo contra a Natureza desde o nosso surgimento. As guerras não eram explicadas de todo: o Holocausto de 39, o da Escravidão Negra nas colônias, as guerras mais atuais pelo óleo, as torturas nas Américas, os golpes, as dominações, os impérios, tudo revelava sermos as cópias dos predadores, que o fazem por situação de equilíbrio e não por fatores determinados por conveniências geopolíticas. As apropriações indevidas, a noção de fronteiras e propriedades... Mas claro, temos nossos ninhos, mas sigamos com a história de Personae!
            Havia um seu amigo, Tótis, que vinha lhe dizer sempre das pedras semipreciosas que colecionava. Na verdade eram preciosas enquanto para si, e as cores igualmente lhe eram preciosas, mas Personae teimava em dizer que um seixo e uma pepita de ouro eram igualmente pedras, havendo diferença na beleza, e trazia uma pedra para Amali, que por sinal era a mais desprendida, pois a ela não importava o que acontecia, pois amava a tudo e a todos, mas igualmente com preferência particular pelos bichos, insetos, arbustos, a água soberana do mar, ou uma inibição de uma poça apenas, onde viveriam outros seres, mas que seu olhar não coadunava com tudo, não poderia viver igualmente na microscopia. O macroscópico naqueles anos de século vinte e um impressionava mesmo, e a própria definição dos limites aparentemente – ainda – era intermediado pelo olhar humano, como sempre seria, pois nada funcionava ou funcionaria sem o comando humano, nas coisas que são do homem, e que para estes contam, posto nas coisas naturais o desequilíbrio imposto voltava-se ao mundo como planeta infernal que se tornaria se assim continuassem. Os homens.
            Mas o pressuposto de se pensar nesse modo de se sentir os destinos de toda uma espécie predestinada, não mostrava, aos olhos de Amali tudo que se fizesse agora uma realidade que teria que ser abraçada, a um urso de grandes garras. Bastava a ela o serviço que fosse, fossem quais fossem atividades, na urgência de se capacitar a mente de algo que se aproximava do complexo mundo, tal como era conhecido por aqueles que na maior parte das vezes não o sentia na totalidade. E os nervos de Amali tinham sentido as investidas do que diziam ser genético. E sua cruz foi plantada de tal forma, que muitos alimentos que consumia vinham em forma de pílulas e gotas, entre os quais, entremeados, assim era, e não que contestasse a medicina, mas que nem toda ela – a medicina – deveria ser traduzida por genomas, a Amali pertencia esse modo de ver as coisas. Não seria humanamente possível assim, pensava, mas achava o mundo maravilhoso, igualmente pela evolução da farmacopeia psiquiátrica, pois havia passado maus bocados, apesar de ter tido igualmente uma evolução positiva, graças também pelo seu esposo Personae, que se revelava um eterno companheiro, mesmo que em crises que a assaltaram em suas caminhadas frente à libertação. Disso de se viver se amavam e não possuíam o egotismo em seu perfil de vida, no que não fosse propriamente o jargão perfil viciante dos meios mais atuais, a mais de se dizer de um codinome mais raro, mas mais maduro: o caráter. Ilibado nas suas tentativas de se viver nos conformes, dentro de uma camaradagem recriada a partir do espaço de que dispunham para tanto, que se ampliava na solidariedade entre as gentes, e não no modo sectário ou na conformação emblemática em se permitir o preconceito sem lutar para que o estigma fosse ao menos discutido sobre, em seus papéis pertinentes e recorrentes. O emblema estampado na vida de Amali fora sempre a não adaptação ao mundo, mas que este próprio mundo a adotara de uma vez, e a própria Terra era sua quase progenitora, Amali que contava então com sessenta e dois anos. Mais nova um pouco, obviamente, do que a Gaya que tanto amava, na vastidão desta que pode tanto incorporar a vida efêmera de um mosquito quanto o estalar de cem anos de outro ser, nos dedos do Criador. Ter-se-ia mais do que um dedo, do que uma autoria, quantas são as da humanidade, que não se ressente de abdicar do trono de seus longos e perenes confortos?
            A sentir-se, que algumas histórias começam em longas narrativas, outras são um desfecho sem nada causal, e o modo de vermos que se alonga para algumas direções onde sequer cremos, mas que a fé nos leve para um lugar que, se é de boa, nos leva! Se vamos, vamos a algum lugar, pois se estamos não indo a lugar algum sem que o registramos continuamos a ser apenas o lugar, e não nós mesmos, que não vivemos mais sem registros... Dia 20 de novembro daquele anos de 2016 havia sido um dia consagrador, pelo simples fato de ser um domingo dia de feriado nacional. Um dia que todos os Personaes, criados ou não por uma mente qualquer, todas as Amalis e todos os homens e mulheres tecem e rendem homenagem pelo povo mais nobre que aqui está. Que ergue, de óbices e preconceitos, um castelo concreto em cada encruzilhada, um humanismo que vem de nossa pátria, que é branca, negra, mulata, indígena e tudo o mais de se coexistir e mesclar não apenas na civilidade de gente grande, mas igualmente, na cultura riquíssima e ainda rica das nossas matrizes africanas, pois é de lá que vem a matriz de grande parte de nosso povo. Não há como não citar tantos e tantos que marcaram a nossa história, mas há um homem que merece o nosso respeito e de toda a nossa nação: Zumbi dos Palmares, que fez do Holocausto de nosso povo o signo imantado de libertação, como exemplo de algo tão grandioso como a poesia de Cruz e Souza, o samba, suas raízes libertárias e toda a luta nisso espelhada do povo brasileiro! Sem mais delongas, pois antes de pensarmos um farto de políticos indecentes, temos que pensar na luta, e que esta continue sempre, essa é a causa e a razão das linhas tecidas por um servidor da pátria. Não há como passar o dia de hoje em branco, companheiros... A luta continua!!!

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