Faltava um ano que fosse, mais um
ano... Sempre faria essa falta de um tempo qualquer, no ramalhete de suas
setenta primaveras: nos anos idos de Personae. Não que se dissesse de outros
quaisquer, mas contar setenta pedia mais um, quando desfizera – a se lembrar –
dos seus desconstruídos mundos dos cinquenta: de vinte por detrás de sua
plataforma quase existencial. Seria muito confortável pensar que um ano
passaria a um tipo de nuvem que olhamos plácida sobre uma colina, mas sabia que
também faria o possível para que não passasse como uma tempestade, dessas que
insuflam certas imaginações quando o coração de um fraco por grandeza teima em
permanecer sincero. Esta era a questão: Amali, sua esposa, se mantinha incólume
como sua eterna companheira, e era o fato de não saber bem quando o chamara com
o codinome afetuoso, que esquecera, no entanto, mas que havia sido pontuado por
um carinho em que se lembrava da vulnerável condição, enquanto embriagados pela
vida. Essa embriaguez que pede a se beber de um cálice soberano, porquanto na
serenidade que conforma uma visão mais límpida em todas as circunstâncias.
Embriagar-se à vida, deixar que se leve a onda, a boa onda, aquela que não
necessariamente quebra, mas como disse uma grande escritora, que deixa entrever
através de suas carícias as algas e depois – subentenda-se – as oculta...
Falava Personae, um homem muito experiente, de vida vivida bem consciente desde
os três, quando começara a se preparar na plataforma de uma arte em viver, já
contando 67 de ter acordado, mas que sempre dormira para acordar um dia, e o
sono de breu tantas vezes o acometera que o despertar consequente viera mais
profundo, sempre, sempre mais forte e radicular na terra, radicular na pedra!
Vivera tanto que muito do que aprendera não viera de nenhuma fonte, a não ser
nas suas conversas com um besouro grená que aparecera em sua vida, em que em
seu sofrer desconforme conseguira o amparo suficiente, depois de compreender
que uma barata abandona seu corpo quando assume sua posição com as patas para
cima, entre outros segredos da Natureza que teimava em deixar em seus tesouros
secretos. E que sabia, por serem tão ocultos, que muitos não gostariam talvez
de rever antigas alquimias do tempo, entre outros que ditavam a supremacia
humana sobre os outros seres, que revelava o fascismo contra a Natureza desde o
nosso surgimento. As guerras não eram explicadas de todo: o Holocausto de 39, o
da Escravidão Negra nas colônias, as guerras mais atuais pelo óleo, as torturas
nas Américas, os golpes, as dominações, os impérios, tudo revelava sermos as
cópias dos predadores, que o fazem por situação de equilíbrio e não por fatores
determinados por conveniências geopolíticas. As apropriações indevidas, a noção
de fronteiras e propriedades... Mas claro, temos nossos ninhos, mas sigamos com
a história de Personae!
Havia um seu amigo, Tótis, que vinha
lhe dizer sempre das pedras semipreciosas que colecionava. Na verdade eram
preciosas enquanto para si, e as cores igualmente lhe eram preciosas, mas
Personae teimava em dizer que um seixo e uma pepita de ouro eram igualmente
pedras, havendo diferença na beleza, e trazia uma pedra para Amali, que por
sinal era a mais desprendida, pois a ela não importava o que acontecia, pois
amava a tudo e a todos, mas igualmente com preferência particular pelos bichos,
insetos, arbustos, a água soberana do mar, ou uma inibição de uma poça apenas,
onde viveriam outros seres, mas que seu olhar não coadunava com tudo, não
poderia viver igualmente na microscopia. O macroscópico naqueles anos de século
vinte e um impressionava mesmo, e a própria definição dos limites aparentemente
– ainda – era intermediado pelo olhar humano, como sempre seria, pois nada
funcionava ou funcionaria sem o comando humano, nas coisas que são do homem, e
que para estes contam, posto nas coisas naturais o desequilíbrio imposto voltava-se
ao mundo como planeta infernal que se tornaria se assim continuassem. Os
homens.
Mas o pressuposto de se pensar nesse
modo de se sentir os destinos de toda uma espécie predestinada, não mostrava,
aos olhos de Amali tudo que se fizesse agora uma realidade que teria que ser
abraçada, a um urso de grandes garras. Bastava a ela o serviço que fosse,
fossem quais fossem atividades, na urgência de se capacitar a mente de algo que
se aproximava do complexo mundo, tal como era conhecido por aqueles que na
maior parte das vezes não o sentia na totalidade. E os nervos de Amali tinham
sentido as investidas do que diziam ser genético. E sua cruz foi plantada de
tal forma, que muitos alimentos que consumia vinham em forma de pílulas e
gotas, entre os quais, entremeados, assim era, e não que contestasse a
medicina, mas que nem toda ela – a medicina – deveria ser traduzida por
genomas, a Amali pertencia esse modo de ver as coisas. Não seria humanamente
possível assim, pensava, mas achava o mundo maravilhoso, igualmente pela
evolução da farmacopeia psiquiátrica, pois havia passado maus bocados, apesar
de ter tido igualmente uma evolução positiva, graças também pelo seu esposo
Personae, que se revelava um eterno companheiro, mesmo que em crises que a
assaltaram em suas caminhadas frente à libertação. Disso de se viver se amavam
e não possuíam o egotismo em seu perfil de vida, no que não fosse propriamente
o jargão perfil viciante dos meios mais atuais, a mais de se dizer de um
codinome mais raro, mas mais maduro: o caráter. Ilibado nas suas tentativas de
se viver nos conformes, dentro de uma camaradagem recriada a partir do espaço de
que dispunham para tanto, que se ampliava na solidariedade entre as gentes, e
não no modo sectário ou
na conformação emblemática em se permitir o preconceito sem lutar para que o
estigma fosse ao menos discutido sobre, em seus papéis pertinentes e
recorrentes. O emblema estampado na vida de Amali fora sempre a não adaptação
ao mundo, mas que este próprio mundo a adotara de uma vez, e a própria Terra
era sua quase progenitora, Amali que
contava então com sessenta e dois anos. Mais nova um pouco, obviamente, do que
a Gaya que tanto amava, na vastidão desta que pode tanto incorporar a vida
efêmera de um mosquito quanto o estalar de cem anos de outro ser, nos dedos do
Criador.
Ter-se-ia mais do que um dedo, do que uma autoria, quantas são as da
humanidade, que não se ressente de abdicar do trono de seus longos e perenes
confortos?
A sentir-se, que algumas histórias
começam em longas narrativas, outras são um desfecho sem nada causal, e o modo
de vermos que se alonga para algumas direções onde sequer cremos, mas que a fé
nos leve para um lugar que, se é de boa, nos leva! Se vamos, vamos a algum
lugar, pois se estamos não indo a lugar algum sem que o registramos continuamos
a ser apenas o lugar, e não nós mesmos, que não vivemos mais sem registros...
Dia 20 de novembro daquele anos de 2016 havia sido um dia consagrador, pelo
simples fato de ser um domingo dia de feriado nacional. Um dia que todos os
Personaes, criados ou não por uma mente qualquer, todas as Amalis e todos os
homens e mulheres tecem e rendem homenagem pelo povo mais nobre que aqui está.
Que ergue, de óbices e preconceitos, um castelo concreto em cada encruzilhada,
um humanismo que vem de nossa pátria, que é branca, negra, mulata, indígena e
tudo o mais de se coexistir e mesclar não apenas na civilidade de gente grande,
mas igualmente, na cultura riquíssima e ainda rica das nossas matrizes
africanas, pois é de lá que vem a matriz de grande parte de nosso povo. Não há
como não citar tantos e tantos que marcaram a nossa história, mas há um homem
que merece o nosso respeito e de toda a nossa nação: Zumbi dos Palmares, que
fez do Holocausto de nosso povo o signo imantado de libertação, como exemplo de
algo tão grandioso como a poesia de Cruz e Souza, o samba, suas raízes libertárias
e toda a luta nisso espelhada do povo brasileiro! Sem mais delongas, pois antes
de pensarmos um farto de políticos indecentes, temos que pensar na luta, e que
esta continue sempre, essa é a causa e a razão das linhas tecidas por um
servidor da pátria. Não há como passar o dia de hoje em branco, companheiros...
A luta continua!!!
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