quinta-feira, 17 de novembro de 2016

A LUA E O SONHO

            Lúcia de Sarmento vira a lua por acaso. Não era a lua que lhe prometeram todos os dias daquela primavera primeira e no entanto atualizada pelos calores recentes. De um frio que sentia, na verdade, em uma parte do corpo em que sabia haver: carente de  um toque, carente de um carinho a que deixasse o fremir de lado, pelo menos por uma pausa... Sua cabeça parecia que explodia. Todos os homens que passavam... E que não encontrasse nada, c’est la vie! Aquelas figuras conformadas, um seio de carcinoma que nunca existira nela, mas que sabia estar presente em muitos sítios, do muito se comer, dos celulares e suas radiações, do sol que não se podia mais, de uma água amarga de se beber, do ponto existencial, da literatura que lia, por não encontrar fora o dentro que observava existir desde há meses, em suas descobertas introspectivas.
            Ah, o lugar comum da literatura! Aquilo que nós nos permitimos ler, a auto ajuda, que ajuda a autoria... Não seria mais isso, posto por um realismo crítico! Sim, uma prerrogativa... A mais não saberia, era uma mulher e sabia disso, saberia abraçar sua vida com a coragem de poucas. Nisso de autoria era igualmente fêmea, no seu traço de criar que não coadunava com as mesmices de suas contemporâneas. Nela mesclavam-se a lua e o sonho, de forma que uma era luz em exposição, o sonho em nos encontrarmos sob o astro, e o outro a luz da noite que nos tece companhia, ou o vagar de uma estrela em nossos olhos quando estamos de sonhar acordados! Lúcia não distinguia muito, só saberia deles mais de perto, quando de se tornar matéria viva, lúcida, coerente, no altear-se de suas escaladas pelas intempéries dos sentimentos dos tempos...
            De luas e sonhos, era um sono escalar que entorpecia os mesmos sentimentos que destarte lembrariam quiçá uma vigília que esperasse o bem portar-se. Essa antiga questão de bem portar-nos, que abraça a civilizada forma de viver, trazendo aspectos positivos quando sempre nos adaptamos a um meio que podemos usufruir de certos modos, no que oferece de bom, sendo de uma televisão, quando apenas de seus cenários, se for a única vantagem no usufruir dessa estranha – ainda – máquina de entreter, vista como tele-visão os computadores igualmente, posto a diferença crucial é não sermos tele-guiados, um fator de alienação contemporânea, em um modal cada vez mais consentido como única forma de estarmos com a nossa pretensa – nessa visão – tecnologia ou tecnocracia em dia. A lua não contemplava isso na vida de Lúcia, bem porque conseguira ainda jovem ler toda a obra de Shakespeare em espanhol, a lógica de Hegel, o Capital de Marx, o Elogio da Loucura de Erasmo, entre literaturas clássicas, com autores diversos como Eça, Lima Barreto, Euclides da Cunha, Balzac, Zola, Dante, este em idade um pouco mais avançada, já beirando os trinta anos de primaveras que se tornavam pouco a pouco a experiência de vida intelectual paritária com a média de uma bagagem de latino américa do nível de Chile, Argentina e Uruguai. Por isso os computadores não faziam tanto sentido assim, de serem a suas únicas referências tecnológicas, já que para ela um bom coador de pano ainda passava o verdadeiro e insubstituível café, que fazia mais parte de sua vida do que uma máquina que sofre manipulações diuturnas. Muitos eram as pensadores, muitas eram as intelectuais. Aquelas que haviam por vezes casado e tiveram tempo para a leitura e que aproveitaram, mesmo em casamentos fracassados, possuíram estatura moral e intelectual de monta suficiente para ao menos existirem como expressão cabal de mulheres libertárias mesmo sendo de gerações onde os papéis eram desiguais ao olhar chauvinista de toda a sociedade, principalmente em certos colonialismos típicos do terceiro mundo...
            Lúcia de Sarmento escrevia como Marguerite Yourcenar, com a paixão pelas letras, mas com a experiência de agora, com mais de sessenta anos, uma profundidade quase titânica. E assim passava seus tempos, muito de observar, de onde colhia seus materiais na mesma sociedade que agora se transformara, em que os papéis não invertiam tanto, mas novas formas de dominação machista assumiam novos perfis, um tanto de modal genérico em que as pessoas se transformavam em classes e objetos, cada vez mais, com a integração dos sistemas e suas relações mercenárias. Porquanto fossem intelectuais, homens, mulheres, etc, essa variedade do pensar sofria o véu da inalcançável fama construída, com a expressão mais sincera talhada nas suas ainda raízes, no que não foi fincado e, com o poder das palavras na ponta de lança das sociedades, a admissão de frentes de nascentes intelectualidades teriam de ser abafadas pelo status quo do imperialismo, quando esses ensaios ou peças de filosofia ou literatura despontem a leitores alternados. Assim era a humanidade... Assim se processa a humanidade, e a lua é algo real, assim como o sonho concretizado por palavras deixadas em uma garrafa em mar de revelações, posto a posição de uma escritora ou de um escritor é sempre escrever aquilo que vem de seu imo: da profundeza de sua vivência cotidiana e de seu conhecimento pregresso, a se acompanhar nas ações do presente.

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