terça-feira, 5 de dezembro de 2023

RAMPAS DE VELUDO


                Eram horas, haveria de guardar o carro, já passava das dez. Um dia como o outro, mas não sabia que dia exatamente teria sido o outro dia... Carros brancos passavam antes, na rua, e agora seria uma hora deserta, as rampas estavam com musgos, e quando voltei escalando-as, meus pés, reticentes, notavam a presença daqueles seres de ervas, daqueles repolhos minúsculos, já faziam parte da substância do cimento.

                Optara em não sair para comer fora, o mesmo cardápio não me esperaria, os seres noturnos, quais miasmas, fantasmas ao vento, que eu não os encontrava, estariam certamente vagando na noite, certeiros como alucinações de um desperto fracasso dos delírios da chuva fina. Havia começado meus estudos, confidenciara a poucos, mas a rádio difusão possuía seus estranhos mecanismos, onde porventura o estudo de um homem pode ser fato até curioso! Já não contava com a minha juventude, mas o afã de aprender nunca é faculdade tardia, então já aprendera na vida acadêmica, posto nos saleiros mais antigos os furos devem estar sempre abertos, pois o sal tempera igualmente como os de plástico...

                Estivera pousado em uma mesa de café pela tarde, vendo pela janela imediatamente ao meu lado duas belas mulheres, um pouco mais animadas do que o costume da sobriedade, estavam bem vitais, ao certo, uma morena, a outra loira, mas aquilo me pareceu artificial, tão somente. Era sobremodo fácil encontrar mulheres em padrões de beleza “ideais”. As belas, diriam, que fossem um pouco feras, mas não supunha, a minha experiência era observar, não mais, apenas, mais trejeitos por trejeitos, e eu não caminhava mais na chuva, para estabelecer um outro padrão de comportamento quase exaltado e rebuscado, pois não haveria mais em dias como hoje, uma noite à altura sequer de um sonho a mais de quase verão. Dito e feito, esperava sempre o sorriso de uma afeita a mim, estava mais gorda, trabalhava bastante, e se revelava meio triste, e eu inconscientemente ia a reboque, pois a tristeza de um mero afeto me contagiava deveras, mesmo que eu lutasse para manter-me esportivamente otimista. Mesmo porque eu não poderia ter sequer um envolvimento maior, quem estava ou era na situação me punha em palpos, não saberia dizer exatamente o porquê, talvez não criar vínculos, não usar das pessoas, não divagar sobre as ideias de alguns comandos de outrem...

                Realmente, eu não estava afeito a nenhum tipo de negócios, e passava bem, grato pela vida, e grato pelo que Deus me concedia, os meus órgãos, minha saúde, meus olhos e minha lucidez, que gostava de preservar acima de tudo, como bem mais precioso, pois era o que me mantinha vivo e coerente como homem. Sem devaneios maiores, pertencia a uma classe de gente que gostava de se comunicar, quiçá uma falha de caráter, quiçá um temperamento exacerbado em exagero, um tempo onde se conversava muito, mas sob o efeito de substâncias estimulantes, como o álcool e as drogas, que eu já não fazia mais uso, de data não muito mais recente de sobriedade contínua. Apenas via uma certa frieza naqueles olhos brilhantes, naquele afã de não deixar ninguém mais falar, mas já eram sobras do que havia sido, em termos de incidência casualmente corriqueira na ponta, nos restaurantes e lanchonetes, onde o negócio por vezes quiçá prosperasse nesse viés, igualmente. E as pessoas dita “caretas” já estavam frequentando seus lugares, outras mesas, outros modos, sendo que o que acontecia em alguns sítios não era mera aparência ou fantasmagoria, mas incidentes de fato.

                Por isso, subi as rampas, aquele tépido e pequeno veludo e suas texturas imperceptíveis nos pés, trancava sempre o portão com cadeado, entrava em casa e me preparava para dormir, agora mais afeito a bons estudos, pois gostava tanto das letras como ler os ventos ou prosseguir observando obsequiosamente a natureza humana. Dito e feito, em torno das dez e meia, a noite prometia ser solitária mesmo aos acompanhados, e eu com meus botões, pensando em escrever mais um capítulo de minha vida no dia que se encerrava, a solução mais nobre em prosseguir viandante de alguns fatos, ou carregador de fardos necessários, posto já havia procrastinado dois ou três para o dia seguinte...

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