Saíra
aquela tarde mais cedo do que o combinado, às quatro e meia, vestia eu uma
camiseta que ganhara de aniversário, modelo polo e um jeans casual. Estava já
farto com um cabelo que me sobrava, algo nas pontas um pouco grisalho, a aparentar
mais na barba de duas semanas. Antes de sair, aparei tudo, olhei-me no espelho
e os 48 me pareceram mais tardios... Amália me prometera encontrar comigo perto
de uma escada de acesso ao mar. Propriamente ao lado de uma canoa azul e
amarela, que estava presa em um cavalete, naquela pequena praia de baía.
Aproximei-me
e disse-lhe:
-
Parece que faz tanto tempo, e eu lhe encontro quase todos os dias. Serão estas
pedras que nos tornam parte de algo que talvez não saibamos?
-
Tom, eu não sei muito o que quer dizer com isso, parece que você está me
tomando com uma certa liberdade... Trato de lhe dizer que deve se comportar
melhor.
-
Parece que me falas como um autômato. Será que é sempre assim que vamos nos
entender, nessa já difícil e restrita existência de não sermos quem queremos,
Amália?
Pode
ser que a nós nos parecesse algo confusa a existência. Parecia que uma burla
eterna nos esperava, uma vida em que todos procuravam suas vantagens, uma
corrida com botões já magnetizados pela previsibilidade de sempre termos que
admirar as atitudes dos outros, sem a contestação simples e necessária, sem o
debate entre os desiguais, que deveria fazer parte não apenas de concessões de
retrocesso, mas a partir do que se pensasse de algo, de modo sincero, a ver que
nem tudo são flores no terreno da egolatria. Esse grande ídolo de enormes tetas
secas onde pensamos que esprememos nosso sucesso, em uma sociedade já
enormemente fracassada de retóricas pungentes que caem no desnível do descaso.
Espelhamento das relações de quem estaria acordado, ou mais consciente do que
realmente se passa? Talvez sim, há o que se pensar... Tentei de novo:
-
Amália, o que se passa na novela das oito? Não precisa ter visto, eu mesmo não
vi o que queria na TV fechada, e vim a descobrir uma equação importante em
Marx.
-
Não devias falar nesse poeta da filosofia, isso é um caminho para te pores mal
um dia. Só não quero que confunda o fato de estar contigo aqui e achares que
podes algo comigo em outro lugar. Seu perfil não condiz...
-
Com o que deva de ser realidade? Será muito pensar que dialogo sozinho quando
estou contigo, ou o que na verdade pensas que um homem como eu acredita ser
alguém na presença de uma mulher em que tem esperança que não seja como todos?
Tentava
eu, e as palavras pendiam para a evasão, a fuga simples, e me tornava cada vez
mais cônscio da verdadeira dimensão do cárcere espiritual de nós e nosso
planeta. Pensava nos presidentes das nações, seu modo de aceitar, e pensaria
que fosse realmente melhor a que fossem Brahmanes.
Não haveria outro modo. Como pensar que o grande administrador possível em Roma
e Judéia fosse Jesus, o Cristo, ele seria o melhor Rei. Mas na verdade falar
nisso agora a uma mulher que admirava e achava bela, pela austeridade nos meus
sentimentos com ela, nesse “padrão”, não seria válido, mesmo porque pensávamos
em ser indiferentes com tudo, os que pensassem, pois não seria assim de
qualquer forma. O circuito era desumano, seríamos robots das redes sociais,
seríamos pontos que creem ser donos do grande mentor abstrato da própria rede,
seja lá web ou outro tipo de conexão? Não haveria possibilidade de não estarmos
plugados em nossos traseiros por um subjugador nada sereno das possibilidades
de prazer, visto na década de oitenta as redes terem começado a impor o cárcere
florido da eletrônica? Não, seria pensar com uma possibilidade cretina das
sujeiras que muitos tem se permitido alcançar. Nada, por Deus que estivesse
errado, se uma nação existisse na não necessidade nada atávica em pretender
algo de mundo novo com o filtro minucioso da dominação tecnológica... Quem
seria eu a contestar modalidades ou fetiches no novo modal causal da
comunicação? Seu modal de êxtase, sua sintaxe algo ergonômica e hipertrofiada
nas letras? Tivesse eu mais tempo tentaria de outro modo, mas os segundos
inexoráveis de um encontro nunca nos dão uma chance maior na sinceridade de
nossas atitudes reflexas por ingênua antecipação congenial:
-
Amália, eu posso olhar em seus olhos, vê-los ao menos?
-
Acabei de receber um recado no Apps. Posso ver, ao menos?
-
Faça como quiser, tenho que ir, amanhã nos encontramos para nos
cumprimentarmos, como sempre, até.
Os
olhos dela, fixos, sabiam que esse recado era esperado por ela por mais tempo
do que os nossos dias, alguns sim, outros não. Não haveria mais tempo, e eu
vislumbrei aquele cabelo e o vi, em uma alienação proposital, se transformando
em um tipo de cerda plástica em que todo o corpo balançava como uma boneca que
traísse em si mesma algo que nunca a alcançaria nos novos tempos uma companhia
consciente de tal, que não funcionasse apenas sob o véu de Maya presente tão
fortemente nas sociedades contemporâneas. Esse lençol virado lona que nos
impedia de tocar-nos, essa rede feito plêiade que envolve um grupo ou uma
miríade deles e nos torna obcecados pela ideia de aceitabilidade, que eu me
tornara apenas um investigador da alma, apenas isso... Tornado isso, partia de
mim mesmo para as alturas e encontrava no voo de um morcego um parâmetro
indiscutivelmente mais verdadeiro, e posto que falasse, posto que gostassem.
Pensei em Balarama, sua parafernália, sua tez de ouro, que fizesse companhia a
Krsna, o menino negro, em seus Passatempos. Não haveria outro modal, a
circunspecção que me abraçava passava por aí, e eu queria apenas da mulher um
toque, um carinho, nada que fosse a pegada esperada, conforme o jargão do
milênio surgido, com toda a força imanente de Kali Yuga. Essa Era tornava-se o
esperado em todas as circunstâncias do planeta, a contar que a fixação bíblica
já tornava o fim algo próximo, mas não, estaríamos apenas no começo da era das
desavenças e da hipocrisia, a dura, a de ferro que nos espera em cada segundo
dos nossos crassos erros passados... Quanto à última questão: a hipocrisia, era
esta revelada de modo a tentarmos blindar nossas existências com o jogo de quem
nos coloca, qual marionetes, no jogo, a jogar o que não precisamos, pois não
precisamos participar desse colóquio amoroso com o destino que nos é imposto.
Na
síntese do processo em que me encontrava, tentava buscar ao máximo um encontro
com a minha espiritualidade, e chegava sempre à conclusão de que um outro
colóquio seria muito importante: o diálogo. Pois que este continua, como as
páginas de um bom livro de papel. Como quando recebemos um presente em forma de
livro e seguimos protegendo da chuva aquele tesouro que no novo século teimam
em fazer valer obra do regresso, mas que a validade do papel é tão imensa e
maravilhosa quando de seu surgimento no Oriente antigo! No entanto, o papel não
fazia sentido no midcult que se tornara o novo aspecto do Ocidente, com as
jugulares sistêmicas retraídas pela questão do nível geopolítico marcante dos
mundos orientais. A sim, o midcult, a atração pequeno burguesa pelo novo, pela
coisificação e polarização entre o ser e o objeto, o ser e o nada, como já
dizia um filósofo. A contestação pura e simples, de uma simplicidade tão
evidente se faz necessária. O laurel a dar esteio a linhas de consciência é o
nível de vivência particular e o estudo recorrente, por caminhos independentes,
que permitirá ao pensador melhor desempenho de suas ideias. Não podemos
continuar empenhados em querermos dizer algo através de meios em que as portas
não se comuniquem, não apenas conceitualmente, como no processo algo travado dos
nossos meios internos de concebermos certas frações apenas, comportando o nosso
dizer com o próprio conceito atávico e “novo” do atual recurso behaviorista. Esses
recursos que coisificam o homem, treinando-o a ser uma máquina feliz, próspera
e bem comportada, seja na coisificação religiosa com ganhos no seu viés de
interesses particulares, ou no próprio processo particular de oligopólios
divididos em terceiros e quartos e quintos aspectos fracionários,
caracterizando monopólios e ganhos fragmentados mas unidos por fábricas de
dominação ideológica ou técnica de pulverizadora do homem, este enquanto ser
social, manufator e fabril de suas próprias e necessárias liberdades e tempos
para si.
Talha-se
o tempo e adiciona-se a competição de serem aceitos os carentes para redes em
que um ícone de mãozinha pode vir a ser ou fazer a diferença para que continuem
no mínimo de bom humor, no aparente revelador nicho da existência humana, onde
o ser fabril vira agente fabricado de seus próprios afetos. Conceitualmente,
afora isso aparentemente não se revelará maiores possibilidades de que esse ser
seja aceito, justamente em que seu perfil pode ser visto por um virtual patrão
ou parceiro de negócios para saber se será aceito ou não no nomeado ou recém
criado e aparentemente idôneo grupo social em que pleiteia aceitabilidade. Uma
investigação se modulariza pelas informações que esse indivíduo expõe nas redes
sociais, e o que antes significava vida privada se torna uma grande vitrine
coletiva, impedindo o ser coletivo de se organizar melhor sem ter que enfrentar
contendores por vezes muito mais sérios, como setores sociais da extrema
direita, por um exemplo cabal, que manietam a identidade cultural, religiosa, étnica
e política de cunho progressista e reformador a bem do povo de uma nação, e não
em defesa das matrizes que fabricam esses meios que se impõem com seus modais
de fora para dentro e para dentro de seus centros localizados estrategicamente nas
entranhas dos serviços secretos de informações e suas agências espalhadas por
todos os cantos, com a facilidade de extração com cliques de botões.
São
fatos que ocorrem, e é a modalidade da sintaxe que passa a vigorar, no entanto
com seu próprio fracasso, onde as contradições já esperadas pelos sistemas que
apoiam essa dominação carecem de esclarecimentos cabais para que se remontem as
peças em variados jogos onde as luzes ou pontos focais por vezes trabalham
aleatoriamente, em um modo causal depois de starts e direcionamentos começados
a partir do combate aos pensamentos mais verdadeiros e fac-símiles originados
da tomada de consciência dentro dos padrões que visível e paulatinamente dispensam
a ética e passam a agir dentro do maquiavelismo padrão, aí sim, sem moderações
a partir do bem e do mal: passam a agir em nome do bem, passam a agir em nome
do mal, o mal pelo bem, o bem pelo mal, convencionados e apartados, perdendo
por aí abertamente no Tao ignorado, dentro do retorno a um cartesianismo que
sempre será gerado pelas dualidades das linguagens de máquina dos sistemas
computacionais. Esse modal cartesiano peca pela imbecilidade de tentar
construir um padrão universal, haja vista a polarização bíblica começar a se
acentuar entre o Velho e o Novo Testamento, entre outras sacralizações, na
grande mescla que leva ao homem carregar o fardo de si mesmo, como acontece com
Cristo, mas sem a salvação.
O
leme do barco deve ser aprumado. Não há salvação fora do Comunismo
Espiritual... Pelo menos a predisposição de vermos os necessitados como seres
que precisem de nossa atenção. O leme deve ser aprumado para que vejamos que os
insetos tem sua ciência infinita, que os pássaros tem o mesmo direito que os
humanos na Terra, que os nossos filhos não sejam educados a passar os outros
para trás, que a competição é desumana fora do esporte, mas que o esporte é
necessário para que possamos lutar contra a competição entre fortes contra
fracos, dessa desumanidade referida. Que tenhamos a coragem de mostrar aqueles
que pecam contra a justiça social aos olhos de Deus e dos povos, pois o homem
recebe um corpo aparentemente mais evoluído não para destruir o seu próprio
planeta, mas para ser mais justo com o seu próximo, seja ele homem, animal,
planta, inseto, ou seja, todos os seres vivos, pois estes vieram com uma alma –
atma –, a luz que imanta de cada ser. É tempo de mudarmos o rumo, pois se não
vier essa mudança a caminho da paz necessária e urgente, e da não violência com
outros seres, haverá problema grande na mesma geração que vos fala, de meio
século, para diante e para trás, e os que virão, de outros, para trás e para
muitos e muitos anos de sofrimento aqui onde residimos. Ainda temos um tempo
para refletirmos... O mundo não acabou, pois acabamos pagando esse mico a falta
de maiores luzes com relação ao próprio mundo que não nos pertence – nem um
lote de terra. Saibamos que o que nos pertence é a mesma inteligência que não
poderemos nunca desprezar quando aponta seu archote para que mudemos a situação
de algo para melhor: uma aldeia, uma cidade, um país e um continente; o que seja,
para melhorar nossa condição e daqueles que nos envolvem na vida que pulsa,
seja formiga, grão que nos alimente, pássaro que voe ou não. Quem sabe um cão,
que nos vê na estrada, e tece um abraço quando nos apoia quando queremos que
bem se alimente naquele dia. A empreitada é de todos! E, para isso tudo, a luta
sempre continua, pois a alienação não é faculdade de inerência.