sexta-feira, 10 de janeiro de 2025

O TRUNFO DA TRANSFERÊNCIA NEGATIVA

 

                Por vezes todo um rancor que prevalece no paciente com relação ao terapeuta pode estremecer o trabalho deste, mas na realidade pode igualmente permitir que este saiba melhor sobre os ruídos existenciais que norteiam a vida da psique do paciente, o que ele pensa a respeito do terapeuta e qual a natureza do citado rancor. As origens de humores que são próprios da relação entre analisando e analista vêm muitas vezes desde a primeira entrevista, vêm de certos preconceitos, por exemplo, como se dispõe o analista, sua postura, sua aparência, classe social, etnia, ou outros fatores externos que podem influir negativamente no início mesmo dos trabalhos.

                No entanto, o terapeuta pode se fazer valer das inquietações mais profundas do paciente, justamente quando este revele a ele, a partir do início dos trabalhos, já influenciados pela primeira impressão e seus prejulgamentos, nas relações intrínsecas do que acontece de verdade com a realidade inconsciente de questões como traumas ou coisas que digam respeito à natureza mais íntima do ser, porquanto entidade em mutação, porquanto diálogo constante consigo e com seus entornos, mesmo porque muitas vezes o paciente trás de fora do consultório toda uma carga emocional que não teve digerindo por vezes durante décadas a fio.

                Quando a dobradinha resistência e transferência se transformam na transferência negativa como um todo, o analista deve permitir que o paciente desenvolva suas expressões mais profundas da psique, na forma da linguagem, nos chistes, nos atos falhos, posturas, e etc, quando supostamente de qualquer modo seu inconsciente deve estar em sintonia com o inconsciente do analisando. Outrossim, essa aparente parafernália que consumiria uma terapia com o viés mais tranquilo pode se tornar efetivamente melhor, mais equilibrada, à medida em que o analista vai equalizando a neurose do paciente, de acordo com a elucidação de seus problemas recorrentes, de forma a equilibrar a inquietação do mesmo com o viés de sua intuição como psicanalista, a sua formação e a sensibilidade de fazer um movimento em favor do paciente, a partir dos pontos de negação, resistência e inquietações existenciais profundas em relação ao próprio analista, à vida como um todo e toda a preocupação que o toca. Nessa dialética consonante entre a resistência entremeada com a transferência, os sentimentos algo de rancor no imediatismo das primeiras sessões, algo pode mudar para uma transferência de viés mais positivo, abarcando uma sintonia entre o analista e o paciente. É nessas horas que se forma o par analítico, quando por vezes este é construído em questão de dias ou semanas...

                Quando a tempestuosa vertente da análise na relação inamistosa começa a ceder para que o analista possa melhor aplicar seu trabalho e o analisando expressar mais livremente seus pensamentos e conteúdos a serem interpretados, começa a fase onde a associação livre de ideias já não sofre tanto com a questão da resistência por parte do paciente, como nas primeiras sessões. É quando a trava da expressão começa a ceder espaço a um fluxo mais contínuo do paciente, na forma da linguagem, chistes e etc.

                Quando os fantasmas começam a surgir na mente do paciente, quando as coisas começam a tornar forma, lembranças vêm à tona, este se situa em relação mais verdadeira com o analista, tornando o trabalho proposto – por ambos – uma tarefa exequível. A partir dessa abordagem as coisas tomam uma forma em que o vínculo analista-analisando se torna mais concreto, e a pressuposição de que os traumas do paciente brotem de seu inconsciente na forma da citada linguagem, ou expressão verbal, sob a arguição e intuição do analista, a consistência do tratamento vira a possibilidade dentro do escopo da realidade. Quando isso ocorre, conforme cita Bion, o paciente já pode começar a pensar de forma mais organizada, a ter clareza nas suas ideias e compreender a natureza mais evidente de suas inquietações existenciais profundas, coisa que antes já não tinha mais condições de fazê-lo sem a ajuda do profissional.

                Em síntese, a transferência negativa, que na aparência poderia até mesmo fazer o paciente desistir do trabalho com o analista, vira uma espécie de vantagem, onde este se faz valer de seus aspectos negativos, fazendo um movimento oposto em direção à consecução de um trabalho que elucide paulatinamente o problema do paciente, não apenas em relação a si mesmo, mas no alicerce ao revés que depositara no analista, na forma de resistência, de tentar suportar negativamente as perguntas e fazer da hostilidade um tipo de moeda de troca. Assim sendo, o viés transformador e dialético do tratamento acaba tomando um rumo de mais positividade, mais produtivo, mesmo que se saiba que a permanência da transferência negativa e da ocorrência da resistência são coisas que vêm e vão no decorrer do tratamento. A questão não seria mais apenas a competência puramente profissional do analista, mas algo que transcenda um pouco esse lado, ou seja, a intuição, a perspicácia e a sensibilidade que funciona como um tipo de antena ligada diretamente na realidade do conteúdo inconsciente do analisando.

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