domingo, 26 de janeiro de 2025

O MAR DA ILUSÃO


                Joel, taciturno, beirando os quarenta, se sentia mais velho do que o pai, Adroaldo, que contava então com sessenta e nove. Ambos de pele clara, descendência germânica, residindo como sempre nas vielas mais lúgubres, ambos, moravam juntos, praticamente inseparáveis, depois que Adroaldo perdera sua esposa e Joel separara de Alice, a mulher que não aguentou suas bebedeiras e drogadição. Seu pai o encaminhara para o serviço de saúde estatal, mas não adiantava muito, sobremodo estava perdido consumindo litros de corote e pedras de crack, com diletos “companheiros”, quiçá outrora de um partido alto, quiçá de rodas de música, enfeixado nos panos da rua, em cima de papelões, meio contrafeito a se recuperar, era a sua “vidinha...”

                Adroaldo, por sua parte, caminhava silencioso nos dias, usava remédios controlados, possuía psicose, e estava estável, apesar da vida ter sido dura durante todo o percurso, mas eles se acertavam de algum modo, e o pai sempre se envolvia com mulheres da vida, também afeito à cachaça, mas cria que tinha o momento certo para tudo, inclusive para gozar do que supunha ser uma relação a dois, sempre regada a dissabores, pois acabava se envolvendo com a vida das mulheres, e não sabia dizer não quando estas lhe demandavam “favores”, como pequenos mimos e presentes traduzidos por agregar fundos, ou revelar fotos que não lhe diziam respeito... De tudo o que Joel trazia consigo em suas jornadas, aquilo de mais importante ainda era a presença, posto família de dois apenas, era o que restara dos ferrolhos da vida.

                Saberiam tanto da existência como na crise da nação, onde outros, por sua vez, já caminhavam mais cansados, da aproximação com a cachaça, da luta em se sobreviver a partir do nada, de uma terapia que não existia, ou das medicações que lhes eram impositivas quando nos hospitais de refugo, ou mesmo nos sanatórios do nada. Na periferia onde eles viviam muitos passavam quase sonambúlicos, assim, de contrafeitos, sob a influência de uma droga mais sinistra, ou mesmo sofrendo as agruras da miséria visível a quem estava na rua, por onde os carros passavam, e essa horda se tornava invisível... Diziam que a nação emergia do caos, que tudo estaria melhor, mas notavelmente já se sabia que, mesmo com programas sociais, tudo voltaria à estaca zero depois que outras políticas estivessem envolvidas, e mesmo a desordem quase transparente no escopo daqueles becos, a criminalidade parecia que era mais sólida do que supunha a segurança das madrugadas. A continuidade da miséria de fato se fazia presente inclusive em muitos trabalhadores, que mal ganhavam para constituir família, ou estar em segurança em um lar, mesmo porque a grande parte também era afeita à drogadição, e o simples uso da erva que se dizia medicinal já havia levado muitos à alienação mental, posto mesclada muitas vezes com outras substâncias, condição sine qua non do tráfico para manter viciados os que supunha fazerem o uso mais continuado, quase por contiguidade.

                Aquele sábado fora um dia “daqueles”. Era janeiro, dia 27. Joel sumira, não voltara para casa desde cinco dias antes... Adroaldo já estava preocupado e não sabia o que fazer. Estivera na Saúde, falara com seu médico, ele lhe havia passado as receitas, e perguntou-lhe:

                - Seu filho, você não tem ideia de onde ele esteja?

                - Não faço ideia, doutor, penso que esteja por perto, mas já estava viajando muito, andou fumando algo esquisito...

                - Como? – perguntou o médico, curioso.

                - Disse ser maconha, mas também disse que era muito mais forte...

                - Falou mais alguma coisa sobre a droga?

                - Disse que era como que... ahn, K... alguma coisa assim, tinha um número, uma série, eu creio... Potente, forte, alucinante... – respondeu Adroaldo, tentando se lembrar de detalhes.

                - Sim - disse o médico -, acho que seu filho está em apuros... Você tem que me dizer onde ele compra as drogas, que biqueira, onde ele pode estar, que amigos ele tem nas ruas, por onde gosta de ficar de dia perambulando, que eu vou providenciar uma varredura policial e busca nos hospitais. Temo que seu filho esteja usando uma droga devastadora... Eu vou lhe dar um tranquilizante, passe a tomar clonazepam, algumas gotas bastarão, vá para a sua casa que eu lhe ligo quando tiver notícias. Chame um Uber, são agora sete horas, não saia de casa sob nenhuma circunstância e tranque a porta de sua casa. Se o seu filho aparecer chame a segurança, todo o cuidado é necessário, pois ele pode estar muito doente. Vou fazer uma busca nos hospitais das redondezas e logo pela manhã lhe dou um feed back. Vá agora e não me ligue a não ser que seja uma coisa relacionada a isso...

                Adroaldo ficou atordoado, a notícia lhe colocara um tipo de parede na frente de si mesmo. Ao menos possuía um médico para lhe dar o suporte. A sensação que tinha é que pisava no vazio, que não tinha chão. Tinha uma garrafa de cachaça à mão, mas algo maior lhe disse que não bebesse naquela noite e assim o fez. Quis ligar para uma amiga que morava em outro Estado, mas nada poderia ser feito, eram seu filho, o doutor e ele, a tríade de homens que estavam nessas condições de ajuda, amparo, de vulnerabilidade e de camaradagem, principalmente o médico, que lhe prestava imensa ajuda. Adroaldo não sucumbiria, certamente, já enfrentara das boas desde a morte da mulher, sabia que algo tinha que ser feito, pegou do frasco de remédio que o médico lhe dera e tomou as gotas receitadas, nem mais nem menos... Assim fez, tomou o remédio habitual de todas as noites e dormiu exausto, de um sono preocupado, contrafeito, sabia dos cuidados, sabia que nada poderia fazer então até o dia seguinte, pois Joel estava sumido já há dias.

                Na manhã seguinte o médico lhe ligou, avisando do internamento de Joel no Hospital Colônia de Carmelo, em uma cidade circunvizinha. Disse a Adroaldo que Joel estava com uma psicopatia desenvolvida pelo uso massivo da K9, uma substância altamente tóxica e estava medicado. Que o pai aguardasse e que a situação não era tão grave a ponto de não ser controlada à base medicamentosa. Já passara a fase de desintoxicação e entrara convulso, há três dias atrás, recolhido na praça onde ingerira grande quantidade do tóxico. Quando da alta hospitalar, o doutor se responsabilizaria também com esse caso, ou indicaria outro, e o paciente seria liberado para voltar através de traslado por ambulância até a casa de Adroaldo. Que havia reagido bem e que lhe fora indicado uma sala de recuperação em NA (Narcóticos Anônimos), e que já estava participando de reuniões, maratonando on line como experiência para não recair no vício. Toda essa atenção psicossocial fora muito alvissareira no caso de seu filho, e Adroaldo ficara mais tranquilo com a notícia, sabendo-se protegido por um sistema que merecia não apenas o respeito como instituição como alívio com essa dor que já lhe afligia há mais tempo, nas situações em que seu filho saía sem ele saber se retornaria, e se de fato estaria bem conforme o andamento de uma vida em que pudesse ser mais ativo, útil e sóbrio. O desfecho não fora trágico, mas a realidade é que as drogas desse quilate, entre tantas outras, apenas desfazem algo tão importante como é o próprio esteio de uma família, ou o que resta dela...

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