Havia um
tempo em que a obra era pesada, naquelas urbes onde o asfalto seria uma
companhia de todos, o caminhão, ou uma espécie de veículo da noite, não seria
apenas as rodas, a cabine, mas um grande pressurizador para pintar sinalizações
de tinta à base de solvente. A situação de Anselmo, no entanto, era um pouco
delicada naquela segunda, mesma, no dia do seu ingresso no emprego... Estava na
condicional, mas há duas noites estava dormindo embaixo de uma canoa, sua
mulher o havia despejado de casa, nem que fosse bem a casa de pronto, uma casa
bem boa, mas ele sentia um lar, e Dioclécio, seu melhor amigo, a havia roubado
dele, seduzira-a enquanto ele estivera cumprindo a pena, por latrocínio, bom
comportamento, crime que Dioclécio, traficante famoso na vila o havia
conseguido para Anselmo, cerebrara o planejamento e mentira que sua mulher,
Cleusa, pedira para assaltar a casa de José, pois, como afirmara Dioclécio,
aquele teria abusado de sua filha de treze anos, Ana. Engraçado que tudo
começara quando Anselmo havia, há seis anos, ingressado em um grupo de
recuperação do alcoolismo, e Dioclécio, em suas entrelinhas sinistras,
prometera vingança junto aos seus, posto antes Anselmo fazia aviões para ele na
comunidade, um pouco que fora, mas não quisera, desistira antes de começar, sua
adição era o álcool e novos companheiros surgiram, novos amigos, muitos limpos,
aliás, em torno de oito, alguns com recorrentes recaídas, mas gente que não
encontrava muito no portar-se de praxe na comunidade, aliás, conhecera gente que
não era da comunidade, essencialmente, mas de outros e vários locais e
distritos. Trocando em miúdos, Cleusa, Ana, Pedrinho, Cássio, perdera todos, e
Dioclécio tornara a casa de sua ex um ponto de tráfico: estava confuso, e
Cláudio, um tipo de funcionário da Prefeitura que conhecera no grupo de que o
visitara no presídio, contara toda a verdade, e que o abuso sofrido por sua
filha jamais houvera, tudo fora orquestra, e queriam queimar a vida de Anselmo
que, roubara, lhe deram uma Rossi, ele reagiu ao senhor que assaltara, matando
seu filho que também estava armado.
No
caminhão, Orlos, um forte operário, soube da condição do colega e da
necessidade de se ter um pouso para ficar, posto sob a canoa estaria obviamente
vulnerável perante o escopo da Lei. Orlos possuía um fiat antigo, um Uno e estaria
disposto a, depois do turno, levar o colega a um abrigo, próximo a um grupo de
recuperação, e aconselhou-o a aproveitar a liberdade e fazer tudo certo, e
esquecer de tudo o mais... No que Anselmo, com os vincos de angústia no olhar
enquanto levava a mangueira da pressurização, e ajeitava perto os cones na
pista, deu com o acento na fala:
-
Caramba, estou a duas ruas da minha casa, que eu comprei...
- Sei...
Ajeita melhor a mangueira, deu um nó aqui, se o sub pega, estamos a refazer de
tudo por aqui, depois falamos melhor... – disse Orlos.
- Olhe,
eu posso ir ali naquele bar, só comprar um corote, será rápido, não estou
suportando, meu senhor...
- Quer o
emprego, Anselmo, ou quer voltar para a Cadeia Pública e agregar mais pena?
- Na real
queria tomar coragem para pegar o monstro...
Orlos virou
o rosto com um gesto, ajeitava a mangueira para Anselmo, este tremia quase
convulso, no que Orlos se aproxima e olha Anselmo bem de frente, e diz, com um
vinco forte no sobrecenho, aperta o braço direito, no punho de Anselmo, o faz
focar no trabalho, dá um ronco, fala puta merda, merda, vermezinho do caralho,
baixo e diz:
- Tá
vendo aquele senhor ali, o chefe do motor? – incisivo...
- Sim,
senhor...?
- 1973, viu
o pai no pau-de-arara, morrer frito. A mãe? Perdeu-a no manicômio de Juqueri,
não sabe sequer onde está enterrada, os irmãos? Não sabe onde estão. Se bebe?
Quase morreu, coma. Quatro, hoje não bebe: se liga, Anselmo, vai para o MP e
resgata teus filhos, a gente sabe da história, mas muito peixe não se pega com
anzol, mas com rede, deixa ele com sua rede reversa, a gente faz o cara. Está
com gente em questão principal na investigação, o dele tá guardado, seus filhos
voltarão para você, mas tem que reconstruir antes de unir-se aos seus filhos,
viu, no seu caso em especial, quando é mais fácil unir antes...
- Tá. Um
abrigo tá bom, uma coberta, uma cama, um café, você me levando... Ok, a
mangueira já deu um bom esguicho, já cobrimos a área da sinalização.
Orlos riu
um pouco, Anselmo apertou os olhos...
- Lhe dou
hoje cem pratas, dado. Do meu bolso, você continua depois no grupo, o abrigo é
perto. Termina hoje só às cinco, descanse e só por amanhã, não beba e, quando
acordar diga a si mesmo, só por 24 horas não bebo nada.
- Tá
certo, nunca gostei tanto de trabalhar como nesta noite. A propósito, Orlos, de
onde você é?
- Eu
venho de muito longe...
Nenhum comentário:
Postar um comentário