quarta-feira, 2 de agosto de 2023

O DILEMA DE ANSELMO


              Havia um tempo em que a obra era pesada, naquelas urbes onde o asfalto seria uma companhia de todos, o caminhão, ou uma espécie de veículo da noite, não seria apenas as rodas, a cabine, mas um grande pressurizador para pintar sinalizações de tinta à base de solvente. A situação de Anselmo, no entanto, era um pouco delicada naquela segunda, mesma, no dia do seu ingresso no emprego... Estava na condicional, mas há duas noites estava dormindo embaixo de uma canoa, sua mulher o havia despejado de casa, nem que fosse bem a casa de pronto, uma casa bem boa, mas ele sentia um lar, e Dioclécio, seu melhor amigo, a havia roubado dele, seduzira-a enquanto ele estivera cumprindo a pena, por latrocínio, bom comportamento, crime que Dioclécio, traficante famoso na vila o havia conseguido para Anselmo, cerebrara o planejamento e mentira que sua mulher, Cleusa, pedira para assaltar a casa de José, pois, como afirmara Dioclécio, aquele teria abusado de sua filha de treze anos, Ana. Engraçado que tudo começara quando Anselmo havia, há seis anos, ingressado em um grupo de recuperação do alcoolismo, e Dioclécio, em suas entrelinhas sinistras, prometera vingança junto aos seus, posto antes Anselmo fazia aviões para ele na comunidade, um pouco que fora, mas não quisera, desistira antes de começar, sua adição era o álcool e novos companheiros surgiram, novos amigos, muitos limpos, aliás, em torno de oito, alguns com recorrentes recaídas, mas gente que não encontrava muito no portar-se de praxe na comunidade, aliás, conhecera gente que não era da comunidade, essencialmente, mas de outros e vários locais e distritos. Trocando em miúdos, Cleusa, Ana, Pedrinho, Cássio, perdera todos, e Dioclécio tornara a casa de sua ex um ponto de tráfico: estava confuso, e Cláudio, um tipo de funcionário da Prefeitura que conhecera no grupo de que o visitara no presídio, contara toda a verdade, e que o abuso sofrido por sua filha jamais houvera, tudo fora orquestra, e queriam queimar a vida de Anselmo que, roubara, lhe deram uma Rossi, ele reagiu ao senhor que assaltara, matando seu filho que também estava armado.

              No caminhão, Orlos, um forte operário, soube da condição do colega e da necessidade de se ter um pouso para ficar, posto sob a canoa estaria obviamente vulnerável perante o escopo da Lei. Orlos possuía um fiat antigo, um Uno e estaria disposto a, depois do turno, levar o colega a um abrigo, próximo a um grupo de recuperação, e aconselhou-o a aproveitar a liberdade e fazer tudo certo, e esquecer de tudo o mais... No que Anselmo, com os vincos de angústia no olhar enquanto levava a mangueira da pressurização, e ajeitava perto os cones na pista, deu com o acento na fala:

              - Caramba, estou a duas ruas da minha casa, que eu comprei...

              - Sei... Ajeita melhor a mangueira, deu um nó aqui, se o sub pega, estamos a refazer de tudo por aqui, depois falamos melhor... – disse Orlos.

              - Olhe, eu posso ir ali naquele bar, só comprar um corote, será rápido, não estou suportando, meu senhor...

              - Quer o emprego, Anselmo, ou quer voltar para a Cadeia Pública e agregar mais pena?

              - Na real queria tomar coragem para pegar o monstro...

              Orlos virou o rosto com um gesto, ajeitava a mangueira para Anselmo, este tremia quase convulso, no que Orlos se aproxima e olha Anselmo bem de frente, e diz, com um vinco forte no sobrecenho, aperta o braço direito, no punho de Anselmo, o faz focar no trabalho, dá um ronco, fala puta merda, merda, vermezinho do caralho, baixo e diz:

              - Tá vendo aquele senhor ali, o chefe do motor? – incisivo...

              - Sim, senhor...?

              - 1973, viu o pai no pau-de-arara, morrer frito. A mãe? Perdeu-a no manicômio de Juqueri, não sabe sequer onde está enterrada, os irmãos? Não sabe onde estão. Se bebe? Quase morreu, coma. Quatro, hoje não bebe: se liga, Anselmo, vai para o MP e resgata teus filhos, a gente sabe da história, mas muito peixe não se pega com anzol, mas com rede, deixa ele com sua rede reversa, a gente faz o cara. Está com gente em questão principal na investigação, o dele tá guardado, seus filhos voltarão para você, mas tem que reconstruir antes de unir-se aos seus filhos, viu, no seu caso em especial, quando é mais fácil unir antes...

              - Tá. Um abrigo tá bom, uma coberta, uma cama, um café, você me levando... Ok, a mangueira já deu um bom esguicho, já cobrimos a área da sinalização.

              Orlos riu um pouco, Anselmo apertou os olhos...

              - Lhe dou hoje cem pratas, dado. Do meu bolso, você continua depois no grupo, o abrigo é perto. Termina hoje só às cinco, descanse e só por amanhã, não beba e, quando acordar diga a si mesmo, só por 24 horas não bebo nada.

              - Tá certo, nunca gostei tanto de trabalhar como nesta noite. A propósito, Orlos, de onde você é?

              - Eu venho de muito longe...

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