quinta-feira, 24 de outubro de 2024

OS DISCURSOS E A VIGÍLIA


       Como estando um pouco preocupado com o que acontecia ao redor do mundo, este que havia se transformado deveras, caminhei o dia todo praticamente, conversando com diversas pessoas, percebendo o meu entorno, a inquietação das gentes que, silenciosamente manuseavam seus displays e conversavam sobre o último negócio, sobre lucros, sobretudo sobre o que, sentira eu, fosse um egoísmo latente na raça humana, quem diria: uma semana do trabalho de Deus… O mundo, pensava eu, é um apanhado de máfias, uma espécie de todos por uma única questão, a sobrevivência, o se dar bem acima de tudo. Fiz minha ginástica na academia, fui à esteira ergométrica, pratiquei a musculação, depois caminhei e mudo como a sombra, escutava uma rádio que sobremodo me era boa de se ouvir, de música pop. Pensava sempre nas drogas, e como a coca havia se tornado tão presente nas sociedades, e como na verdade sempre arranjavam um jeito de comercializá-la, comprando e vendendo tal “produto”. E eu pensava que alguns tipos de cidadãos que não aceitavam a democracia acabavam por tomar atitudes de subversão à ordem minando com a droga os alicerces da normalidade, e deixando a situação pior, para lucrar e alimentar esse tipo de atitude contrária a um governo de cunho popular que tinha tudo para melhorar a vida da população em geral, comparando-se com outras situações pelas quais havíamos, no passado, sofrido, como a ditadura de 64. Esse tempo que vivemos em nossa história causava-me inquietações existenciais, como muitas coisas no mundo que estaríamos vivendo hoje, as coisas em si e como as pessoas queriam lutar por algo, se sentia essa beligerância, esse tipo de vertente quase cega da intolerância e da insensatez da era contemporânea.

        A certa altura da caminhada, estava sem a mochila, a deixara em um café, e fui até a orla da praia, onde os pássaros já estavam em revoada pela aproximação de nuvens da cor cinza escuro… Sabia de um camarada que estava seguindo em outra direção, chamei-o, era um andarilho, e estava com um saco com algumas latas de alumínio, era seu ofício. Nesse ato de chamá-lo passava uma mulher, já um pouco madura, que olhava com um olhar feroz para o andarilho e, vendo que eu o chamara, olhou de soslaio para mim, meio que não esperando encontrar um burguês com uma roupa normal e não as de um que qualificava certamente de “mendigo”, como se dito cidadão a ele não se-lhe fosse plausível estar caminhando por aquele distrito tão afeito às caminhadas dos tranquilos burgueses que sói estarem tranquilos quando esses ditos cidadãos somem… Comentei com ele: “viu o olhar da mulher? Parecia estar com o diabo no corpo, mais uma neurótica.” Ele não disse nada, apenas afirmava: “tô de boa.” Sentei ao seu lado e disse que não poderia ajudá-lo com nada, e se quisesse um cigarro eu tinha. Aceitou-o. No que na verdade ele não estava muito bem, assim eu achava, pois estava exposto na rua e esse tipo de gente enfrenta situações de vulnerabilidade social intensa, mas conversar, pensei eu, lhe faria bem.

        Eu não sabia o seu nome, nunca havia lhe perguntado, mas sabia que era profundamente místico, muito solitário, e certamente conhecia alguém de um tipo de coletividade, quem sabe em uma área mais empobrecida, quem sabe… Esse viés da aproximação, falávamos do tempo, das gaivotas, do mar, da vida, de Deus, dos mestres, da guerra e da paz. Os discursos eram concomitantes, e quem seria eu a criticar a visão que esse homem tinha da vida, se estava equivocado, apenas lhe falava recorrentemente que para mim associar a vida com drogas ou álcool era a causa de muitos problemas sociais, inclusive a doença mental, a falta de foco, de disciplina, a sujeira pessoal, tudo o que isso implicava. Ele olhava para o lado com o olhar meio desvairado, com um tique, um pouco – me parecia – com dose de sofrência, com alguma coisa errada. Perguntei se estava bem e me disse novamente: “tô de boa.” A certa altura, falamos sobre o caminho e os passos, e ele me falou que temia dar os passos, que teria que fazê-lo sob a indicação de si mesmo, que seria seu próprio mestre, assim como a bituca do cigarro aceso lhe falava, quando batia o vento, que a cinza estaria em outro lugar, e assim que falava tentando demonstrar, pegou do seu cigarro, já no fim, e colocou em cima do banco, e tentava explicar, mas o vento não deixava, pois mudava a posição do pequeno cilindro, até que o derrubou no chão e ele, resignado, levou-o à boca e fumou o resto.

        As coisas eram desconexas e insistia que maconha era algo de medicina, no que eu sempre insistia nesse assunto das drogas: “jamais”, disse-lhe, “um médico receitou um baseado para curar alguma enfermidade, pois se assim procedeu não era da medicina.” Falhei-lhe que para casos de epilepsia existia um tipo de extrato de cannabis, que se usava em gotas, mas sempre sob a prescrição e dosagem do profissional. Sem falar na possibilidade de outras drogas que acometem a vida desse tipo de ser humano que vive nas ruas, a coca, o crack, o álcool e etc… Obviamente os discursos meio que se entabularam buscar um entendimento, mas o homem tornava os caminhos supracitados extremamente complexos, e eu lhe falava sempre em simplificar, e ele me falava dos patrões, e eu lhe dizia que há bons e não tão bons, há inclusive patrões que não são nem humanos, quase. E ele falou-me que se tivesse de construir algo, conforme eu lhe dissera como exemplo concreto, como construir uma parede, ou como realizar algo de trabalho, e ele me falava um pouco obcecado que teria que obedecer um patrão, e assim o discurso dele foi ficando desanimado e ele se torna nesse momento exato meio nulificado e me pede mais um cigarro, e eu descobri que ele contaria com alguém, um ser humano, e me parecia que houve uma decepção profunda… Deixei para ele algumas palavras que esperasse um dia melhor, mas ele falava que tava de boa, e eu sabia que nem tudo estava tão bom e isso era mais exato do que a sujeira em suas roupas, e o modo quase exausto de seus trejeitos.

        Seguiu rumo e me falou uma coisa sábia: “está vendo ali as nuvens, vai começar a chover, tiozinho, se tiver mais um cigarro eu agradeço.” Deixei mais dois e nos despedimos, começou a desabar a água e eu estava em minha casa, mas pensei: a jornada do camarada está ainda no meio da tarde, daqui até a noite, estará mais cansado, a não ser que algo ou alguém o nutra de alguma porcaria, pensei, pois a droga possui essa estranha facilitação de aparentar ser um aditivo para algo ou alguém, mas não passa apenas do negócio sujo que vemos fazendo ou construindo o sofrimento nas ruas, todos os dias...

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